Isso não é sobre você escrita por scarecrow


Capítulo 1
Eu juro.


Notas iniciais do capítulo

Bom, esse conto foi escrito em menos de uma semana durante uma chuva de ideias e inspirações cabulosas que eu tive, OU SEJA ~ perdão se estiver confuso, corrido ou repentino demais IEUOHAISUD Eu não escrevia há tanto tempo que acabei me empolgando demais. Anyway:divirtam-se durante a leitura!



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Isso não é sobre você (eu juro)

A primeira vez em que te vi, acreditei não ser possível.

Não era possível que todas aquelas pessoas com que eu tanto briguei, explicando mil e uma vezes, com tantos argumentos pesados e cientificamente comprovados, estavam certas; e eu, insuportavelmente errado.

Eu estava errado a ponto de te olhar no portão, de longe, no primeiro dia de aula, e confundir sua chegada à escola com algum filme água com açúcar bobo, em que o personagem principal é sempre rodeado dos melhores cenários. Porque aquele cenário era perfeito.

O Sol da manhã combinava com o tom pardo de sua pele, e seus lábios finos não demonstraram alguma emoção desde o primeiro minuto que você chegou até o último. Ainda assim eu senti, sim, eu senti algo em meu peito até então por mim desconhecido, avisando-me que havia algo de estranho ali. Ali, em mim, em você, naquela escola inteira.

E eu juro que não havia me apaixonado exatamente naquele instante, apesar de que, mesmo com toda nossa proximidade torta, nada mudou desde então. A paz, que tanto me acomodou por inteiros dezoito anos, foi para o ralo de uma vez só.

E você, calmo e simples, caminhou em linhas retas até a entrada, ignorando as dezenas de grupos que se juntavam inconscientemente no meio do pátio. Você andou em silêncio até minha sala de aula, no terceiro andar, de onde eu te observava pela janela, lá do último lugar. E como se já conhecesse toda a escola, escolheu o melhor lugar, lá na frente.

Foi então que eu percebi como éramos diferentes. E, partindo desse pressuposto, venho desde então formulando mil quinhentas e sessenta e duas hipóteses e teorias comprovadas sobre você. Passei então a lotar minhas últimas páginas do caderno de matemática, até então reservada apenas para meus contos românticos, com ideias bobas e manias suas. Ainda assim, eu juro que não acreditava no amor.

Naquele primeiro dia de aula, você passou o intervalo conhecendo pessoas novas, e eu não estava no meio delas. Eu estava lá atrás, comendo qualquer coisa, conversando com minha melhor amiga sobre qualquer assunto, enquanto pensava na textura de seus cachos escuros.

“De qualquer forma, você não acha que o novato lá da frente é uma graça?” Fernanda, minha melhor amiga, perguntou-me como sempre fazia ao ver algum rosto novo. “Ele é bem o meu tipo.”

“Ele é bem bonito mesmo” respondi sincero. Os grandes olhos claros de minha amiga se abriram em espanto, e sua boca suja de batom não agüentou segurar um sorriso. Eu sabia o que viria pela frente, apesar de ter contato o que realmente acho.

“Não pode ser, finalmente algum cara nesse colégio é bonito o suficiente para você, é isso mesmo? Nossa, Léo, fala sério!” e caiu na gargalhada. “Eu não ‘tô nem acreditando. Vou chamá-lo para minha festa de aniversário.”

“Por quê?” perguntei, terminando meu lanche. “Você sequer o conhece.”

“Porque você gostou dele, oras. E devo chamar a sala toda mesmo, você sabe disso. Quem sabe você não tem uma chance, ein?”

“Claro que não tenho, estúpida.” Respondi, xingando-a, espreguiçando-me na cadeira pouco confortável do colégio. “Ele tem jeito de hétero. Tá escrito na testa dele.”

Ela terminou nossa conversa com um enorme e pouco significativo discurso, explicando-me uma meia dúzia de vezes como eu não era o único gay no meio de tantos alunos e, muito menos, que eu poderia sair rotulando a sexualidade das pessoas em menos de um dia, sem um trocar de palavras.

Quando o dia terminou e você saiu da sala às pressas, eu te vi correr lá no pátio até o portão, como se esperasse alguém. E, a partir daí, isso se tornou um infeliz hábito meu. Te observar, até nos mínimos detalhes, era a única forma que eu conhecia de nos aproximarmos.

Foi assim que, logo na primeira semana, te vi entrar para o clube de natação. No primeiro mês, se candidatar para representante de sala. No segundo, ser facilmente eleito. Durante a semana de provas, te vi se tornar o melhor aluno do terceiro ano. No fim de março, ser convidado para a festa de aniversário da garota mais popular da escola. Duas semanas depois, comparecer a ela.

E eu juro que procurar pelo seu olhar durante toda a festa não era uma tentativa fraca e mal planejada minha de tentar iniciar algum tipo de diálogo. E depois de muitos cigarros e goles incertos de vodca, você apareceu do meu lado, sóbrio, fingindo não achar toda aquela baderna um porre.

“Você está bem, Léo?” me perguntou. Sua voz tão perto parecia mais veluda do que o normal. Fosse pela quantidade de álcool no meu sangue ou pela distancia que sempre havia entre nós dois (você no tablado do professor dando explicações sobre a esperada formatura e eu na última carteira) havia algo doce em sua fala que eu não conseguia sentir apenas pela audição, mas minhas incertezas me impediam de qualquer tentativa de toque.

“Como porra você sabe meu nome?” retruquei. Estávamos sentados no sofá largo, mais próximos do que deveríamos.

“Sou representante da sala, devo saber o nome de todos os alunos.” Respondeu-me de forma direta, sem explicações desnecessárias ou achismos. Aquilo, possivelmente, também estava em minhas anotações – a sua capacidade ímpar de tornar todas suas atividades parecerem fáceis, por ser tão melhor em tudo que fazia.

“Certo, certo. Estou muito bem, obrigado. E você?” disse tentando enxergar alguma coisa em meu relógio; minha visão estava bêbada e os ponteiros pareciam vários.

Juro, juro mesmo, com todas as minhas forças, que sua risada depois disso não foi a surpresa mais graciosa em toda minha vida. Que algo tão fútil como a gargalhada de alguém poderia ter tanta força em meus poucos e ressentidos sentimentos, a ponto disso ficar guardado para sempre em minha memória.

“Você é realmente muito engraçado, sua amiga tinha razão” comentou, ainda entre risos. “São duas da manhã, caso você queira saber.”

O olhei sem entender. “Você não tem cara de quem dá uma gargalhada tão espontânea como essa, quando fala lá na frente sobre o comitê de formatura.” Tomei o último gole que havia no meu copo e o coloquei cuidadosamente no chão dançante.

“Eu não tenho cara de fazer muitas coisas, Léo” disse contente, como se algo divertido passasse por sua cabeça, “Você ainda tem muito o que descobrir sobre mim” pareceu sussurrar por estar mais perto e a música mais alto, e foi a última coisa que você me disse durante a festa inteira.

Durante um tempo que se tornou eterno para toda minha ansiedade. E, nesses outros dias na escola em que nós sequer conversamos, algo estranho começou a remoer em meu peito e doer em meu cérebro. Algo intenso, informal, incômodo, interno demais para conseguir explicar à Fernanda o que tanto acontecia comigo.

Ela me perguntou durante todos os intervalos por uma semana inteira, se eu estava bem. Eu jurei que sim. Então, ela se cansou. Perguntei-a, em uma dessas vezes que ela costumava dedicar seu tempo a mim e não às fofocas e esmolas de sua popularidade, o que raios ela havia dito sobre mim ao representante de turma.

Fernanda me olhou surpresa.

Nada demais, respondeu, “quando o chamei para ir a minha festa, tomei a liberdade de dizer que você havia me dado a ideia de convidá-lo, porque ele parecia legal” justificou-se, terminando de amarrar firme seu cabelo em uma trança bem feita.

“E onde eu ser engraçado entra nisso tudo?” perguntei já um pouco nervoso, voltando a olhar lá pra fora.

“Você sabia que no próximo fim de semana vai ser o campeonato de natação? Rodrigo vai representar a escola em uma das modalidades do medley. Você deveria vir comigo pra assistir.”

Lembro-me de ter perguntado porque raios ela iria, se eles se quer eram próximos, mas sua resposta provavelmente nunca veio. Fernanda sempre sabia se esquivar bem de minhas indagações desnecessárias. Isso, de alguma forma, era saudável para nossa amizade. Assim, ela poderia viver sua vida com toda a liberdade do mundo, e eu, poderia fazer o que sempre fazia.

E lá da última carteira, vendo-o tão longe de mim, eu senti aquela sensação incômoda crescer cada vez mais todo segundo que passava. Era tão intrínseco e verdadeiro, que chegava a me cansar. E toda vez que esse sentimento bizarro surgia em meus silenciosos pensamentos, eu me sentia doente.

Pensar em você, Rodrigo, na maioria das vezes, era como ter febre muito alta (algumas vezes, tinha certeza que chegava a ser pior) sem ter remédio algum para aliviar a dor.

Eu precisava de alguma pílula, algum soro, alguma vacina. Eu precisava de uma cura, ou isso me mataria de fora para dentro toda vez que eu te visse.

Foi por essa razão que eu apareci naquele campeonato de natação no fim de semana seguinte. Ainda era abril, e o Sol da manhã batia forte na piscina, esquentando as raias calculadamente separadas. Mesmo a competição tendo início as nove da manhã e sua participação estivesse marcada para as dez horas, eu acordei ainda mais cedo do que fazia para ir às aulas.

Não consegui dormir direito – a vontade irracional de te perguntar qual era o maldito antídoto para toda essa minha angústia sobre você me impediu de ter uma boa noite de sono. Eu queria te ver, fora da escola, praticando o esporte que você parecia amar e que, aparentemente, tinha tudo a ver contigo.

E, as dez e cinco daquela manhã clara de abril, eu jurei para mim mesmo, bem baixinho, que você não tinha o corpo mais lindo de todo o meu limitado universo. Você, seus cabelos escuros para dentro da touca apertada, os óculos engraçados e seu tronco largo.

Dentro do medley, sua categoria era nado livre. Surpreendi-me de primeira; você tinha cara de quem gostava de nadar costas, olhando pro céu e evitando a respiração dificultosa. Perguntei-me se esse detalhe idiota fazia parte da sua listinha de muitas coisas que eu ainda preciso descobrir sobre você.

Pensei em ir embora quando você subiu para segurar o prêmio de segundo lugar na frente de todos, mas lá de cima, nossos olhares se constrangeram ao se encontrarem. Como se houvesse algo para ser dito, mas toda aquela gente atrapalhasse.

Todas aquelas pessoas te cumprimentando antes de você caminhar até mim, calado, com cara de pouquíssimos amigos.

“Você não está com cara de quem está contente com a colocação” brinquei ao te ver próximo o suficiente.

“Eu estou incrivelmente feliz, para ser sincero” respondeu-me, com as poucas palavras de sempre. “Principalmente porque você e a Fernanda vieram. Então...” começou a falar, secando seu cabelo com a toalha branca extremamente limpa, daquele jeito que, mais tarde, eu descobriria ser um costume. “Vocês querem vir para a festa de comemoração? É aqui perto.”

“Acho que a Fernanda tem um compromisso mais tarde, então provavelmente vai ficar pra próxima.” Respondi olhando para cima. Foi então que você me encarou, torto, curioso, como se me desvendasse. E eu juro que meu coração não parou dois segundos seguidos ao te ver, ao te sentir daquela forma.

“E você não pode ir sem ela?” você me perguntou, cheirando à cloro. Respirei fundo antes de responder, absorvendo cada gota que escorria por seus braços com o olhar fraco.

“Não”

E eu realmente não poderia. Afobava-me a ideia de ter um lugar imenso, repleto de pessoas que não conheço, exceto por você; que eu conhecia apenas por meus mirabolantes preceitos. Angustiava-me, só por isso passar pela minha cabeça, ficar com você em um mesmo diálogo por mais de dez minutos, por ter certeza que aquilo faria qualquer espaço se tornar nulo, e a minha vontade de explodir, infinita. Eu tinha tanta certeza, céus, eu poderia morrer por essa certeza, que você me faria sentir tantas bobagens ao mesmo tempo, que eu me sentiria mínimo.

Eu me sentiria frágil, risonho, inseguro e medroso.

Eu me sentiria estúpido a ponto de poder me tornar seu.

Por isso eu sabia, sem precisar pensar duas vezes, que eu não poderia ir sem a Fernanda junto com você para onde quer que fosse.

E apesar da minha covarde resposta, você sorriu, me agradeceu por ter ido te ver ganhar o segundo lugar e saiu mais contente do que eu pensei que você ficaria após receber um não. Não entendo até hoje o porquê disso. Acho que você, com toda essa sua perspicácia, conseguiu identificar minha falta de coragem naquele pouco sonoro não, e isso se tornou um belo motivo para nos aproximarmos.

Porque na segunda-feira seguinte, você veio falar comigo. Você, seu sorriso cheio de dentes e o lanche completamente bem balanceado que você comia todos os dias. Isso também está lá na minha última página. Sua alimentação saudável foi uma das outras várias ideias que, ao te conhecer melhor, eu tive que riscar por não serem tão verdadeiras assim.

“Fique a vontade” Fernanda respondeu convidativa quando você a perguntou se poderia se juntar a nós.

Eu o olhei de canto. Você percebeu e riu da minha cara.

Desde então, um dos seus intervalos era ocupado com a minha presença, e eu juro que não foi aí que eu comecei a contar os segundos para que esse maldito tempo entre as aulas viesse. Passar vinte minutos todos dias com você e com a Fernanda foi o meu maior prazer em todo o terceiro ano. Até hoje não me lembrei de te agradecer por isso.

Foi nesse tempo que passamos juntos que eu descobri como a maioria das ideias que eu tinha sobre você estava errada. Você passava horas estudando para conseguir as melhores notas; você nunca quis ser representante de turma e nunca teria sido se não fosse por seus pais; você detesta comer barras de cereal, mas precisa manter a forma para conseguir competir nos campeonatos. Você ama a natação mais do que tudo nesse mundo, e trocaria tudo por uma boa piscina.

E em cada intervalo que passávamos juntos, algum item da minha lista era desconsiderada.

O grande único obstáculo para tornar tudo ainda mais agradável, era aquela sensação estranha que parecia crescer cada dia mais dentro das minhas artérias. Ver o seu sorriso parecia fazer uma grande quantidade do meu sangue inverter a circulação, causando redemoinhos engraçados em meu estômago. Por isso, no segundo intervalo que Fernanda sempre se ocupava em uma convivência social de maior porte, eu corria para o pátio e fingia ler algum livro denso debaixo da árvore.

Tudo para evitar demasiado contato.

Até o dia em que eu te encontrei lendo a última página de meu caderno nos minutos finais do segundo intervalo, e eu tive que inventar uma desculpa boba sobre ser um conjunto de características possíveis sobre o personagem do meu futuro livro.

Você me perguntou se eu tinha costume de escrever, e eu logo respondi que sim, muito, o tempo todo, mas você não tirou os olhos daquela página em momento algum. Continuou ali, sentado no meu lugar, encarando minha letra ridiculamente redonda.

“Quero ler algum texto seu um dia”

Expliquei-lhe que era bobagem.

Argumentei contanto que não conseguia mais colocar em palavras nada o que me acontecia, e que até mesmo esse personagem que me ocupara tanto tempo eu já havia largado para trás. Mesmo em meus melhores dias, tinha completa consciência de que meus dotes como romancista são bastante limitados, e fazê-lo ler qualquer invenção minha só me traria mais angústia. Arranquei a última página dos seus olhos e de meu caderno, e amasse-a com toda a minha timidez. Você me olhou surpreso e chateado e, por incrível que pareça, eu não me incomodei.

De todo modo, eu não iria mais escrever tão cedo, e estava certo disso enquanto esse sentimento não parasse de dilatar dentro de mim.

Porque no fundo, eu sabia que se fosse tentar escrever qualquer coisa, eu só conseguiria contar sobre isso aqui. Todo esse caos incansável que você, Rodrigo, tem me forçado a sentir.

“Eu vou te ajudar a encontrar uma boa inspiração qualquer dia desses” você me contou sorridente, antes de levantar singelo e ir para o seu lugar.

Acontece que esse famoso qualquer dia veio antes do que eu esperava.

Algum trabalho desses que eu normalmente não daria grande importância foi sugerido e votado pela sala inteira para ser feito em grupo de quatro pessoas. Como sempre fiz, esperei um grupo com um número a menos ou alguma alma de boas vontades oferecerem para mim um lugar naquele convívio forçado. Não que eu não tenha amigos ou colegas na sala de aula, até mesmo porquê, Fernanda sentava logo do meu lado. O fato, é que eu sempre gostei dessa oportunidade para conhecer mais as pessoas com que eu passo meu ano letivo, e ficar escolhendo a dedo com quem eu faria os raros trabalhos em grupo não me ajudaria nisso. Até então, não havia nada de anormal.

Nada de anormal porque, por míseros minutos, sequer passou pela minha cabeça que você me chamaria para entrar em seu grupo. Você e mais duas garotas que eu me recusei a aprender o nome de primeira, por serem bonitas demais para o meu gosto. E eu não consegui dizer não a sua proposta, mesmo me odiando por isso.

“Na casa dele?” Fernanda me perguntou, ajeitando os cabelos, querendo saber detalhes sobre o tal trabalho em grupo. “Acho que isso é um convite e tanto, ein”

“Ah, claro, claro. Eu, ele, e mais duas garotas lindas o suficiente para qualquer um se manter bem hetero.” Suspirei nervoso. “Sarah é a segunda garota mais desejada dessa sala e você realmente acha que eu tenho alguma chance?”

“Óh, estou surpresa, achei que você nem tinha esperança alguma” ela me respondeu, insinuando fatos que eu não queria ouvir.

“Eu não tenho. Eu nem estou pensando nisso.” Resmunguei, olhando lá para baixo. Nesse intervalo, você não estava. O comitê de formatura tem ocupado cada vez mais do seu tempo, desde que maio acabou. “Se eu não precisasse tanto de nota em física, eu nunca faria esse troço

E essa é uma das verdades que eu não preciso jurar para você acreditar em mim. Eu não iria, por céus, nunca com boa vontade participar daquele maldito dever de casa. Na sexta-feira da semana seguinte, combinamos de ir à sua casa às três horas da tarde. Você nos ofereceu fatias gulosas de torta e fanta laranja. O trabalho terminou cerca de quatro horas depois – já a confusão desnorteante que embaçava minha visão toda vez que eu te vi com a Sarah demorou dias para ir embora. Até hoje, se me permite dizer, eu ainda sinto essa pequena e acumulável raiva, que me faz roer as unhas e puxar meu próprio cabelo.

E eu juro que o nome disso é qualquer coisa, menos ciúmes.

Quando as meninas foram embora, eu fiquei mais uns instantes para te ajudar a arrumar cozinha. Você estava com um papo qualquer coisa, uma lentidão quase proposital para lavar os poucos copos usados, um sorriso infantil no rosto.

Naquele dia, com as mãos molhadas, ásperas, cheirando à detergente líquido, você puxou meus cabelos curtos e mal cortados para selar-nos com um beijo.

Eu não vi de onde o beijo veio. Só sei que, junto dele, subiu uma quantidade inimaginável de cargas elétricas por todo o meu corpo, fazendo-me descontar em ti um belo tapa no rosto. Aquela foi a primeira das várias vezes que você me deu um motivo para te bater, mas foi a única que estalou forte em suas bochechas.

“Você está brincando comigo, certo? Pode parar já com essa porra toda. Foi a Fernanda que te contou, não é mesmo? E você está usando isso contra mim agora?” gritei tudo de uma vez, escandalizando toda minha mágoa inflável que estava acesa dentro do meu peito, segurando meu fôlego.

“Léo, me escute um instante, eu...” não me lembro ao certo quais foram as palavras que você disse depois disso, por estar tão cego de ideias que sequer existiam.

“Você acha que eu sou cego? Eu vi como você ficou um amor com a Sarah o dia todo hoje!” retruquei com força, tentando te empurrar pra longe. E você, com seus fortes braços e intensos toques, me encolhia dentro do seu aconchego, diminuindo o tom da minha voz. “Não é porque eu sou gay que você pode sair me beijando, Rodrigo, por céus! Logo agora que eu –“

“Céus, Leonardo, me escute, por favor” sua voz saiu doce, calma, e sua serenidade era tão grande no meio de minha gritaria, que eu precisei segurar a respiração para te ouvir falar:

“Você precisa parar de tentar ver o que eu pareço ser e começar a enxergar aqui, ó” e puxou minha mão trêmula para perto de seu peito, e encostou meus dedos magros em seu coração extenso, forçando-me a sentir suas batidas, seus compassos. Eu senti, naquele dia, que a sensação estranha que tanto me atormenta desde a primeira vez em que nos vimos, também estava presente em seu organismo. Seu coração pulsava rápido, em uma freqüência bizarramente idêntica a minha. “Viu? Viu o quanto meu coração está acelerado só por te tocar, mesmo que um pouco?”

“Eu não...” sibilei, mas nada saiu de meus lábios. Só então que eu notei as lágrimas salgadas escorregarem dos meus olhos densos, levando consigo uma quantidade imensa de emoções que estavam trancafiadas em meu metabolismo. E vieram, gotas após gotas, e eu não tirei a mão de você por um instante qualquer.

“O nome disso é paixão, Léo. E isso arde, dói, cresce e me ocupa todo por dentro. Isso é o que eu sinto por você desde a primeira vez em que te vi e só tem piorado quando eu percebo que te quero muito e você não me deixa te tocar” seu suspiro caiu pesado me meus cabelos, devida a nossa diferença notória de altura. Você correu os dedos em meus fios claros, e voltou a falar, um pouco mais baixo, no canto da minha orelha esquerda: “Por isso, por favor, seja meu, mesmo que só por hoje”

Você sempre teve esse insuportável dom de me fazer ceder às suas frases barangas e românticas, derretendo-me de baixo para cima. E mesmo que você afirme que eu tenho um jeito singular de tratar as palavras, você sempre soube colocá-las do jeito certo para me fazer cair.

E eu caí, para sempre, dentro desse sentimento estranho que você teve a coragem absurda de chamar de paixão.

Nós fizemos amor pela primeira vez naquela noite, em que seus pais voltaram mais cedo para casa e eu engoli todos os sons sensíveis que fugiam de minha garganta. Você me abraçou forte e me completou por inteiro. Todas as vezes em que fomos para cama juntos, você me fez notar como esse sentimento estranho que parecia sempre quando estávamos juntos, nunca iria deixar de fazer cócegas em minha garganta, e eu teria que aprender a viver assim.

Fernanda caiu na gargalhada quando a contei sobre todos os acontecimentos ridiculamente clichês do nosso primeiro beijo, repetindo várias vezes que sabia, sabia que nós dois daríamos certo, porque ela sempre sabe ler muito bem o que o coração de alguém diz; e os nossos sempre sussurraram em seu ouvido que foram feitos um para o outro.

Se o amor de fato existe, nós dois estávamos indo em passos largos em sua direção, de mãos dadas e sorrisos suspeitos.

O mais impressionante disso tudo, é que minha inspiração de fato voltou. Meu caderno de matemática voltou a ser ocupado por meus contos de finais felizes, sendo este texto apenas um dos vários que você encontrará sobre nós dois aqui.

“Agora que você vive escrevendo, eu posso ler seus textos?”

“Acho que não tão cedo, Rodrigo, não decidi ainda se quero que você leia algo meu”

“Por quê? Ah, aposto que você está escrevendo sobre mim”

“Não! Claro que não. Não adianta olhar para mim com essa cara, não vou te mostrar.”

“Eu sei que é sobre mim, anda, me deixa ver o que tem aí que você tanto esconde.”

“Teimoso, não tem você aqui no meio, já te disse.”

“Você quer mesmo que eu acredite nisso?”

“Sim! Isso não é sobre você.”

Eu juro.


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