The D.C. Sleeps Alone Tonight escrita por Miss America


Capítulo 1
Capítulo Único




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/608695/chapter/1

Você parece tão fora de contexto nesse complexo de apartamentos espalhafatoso.

Um estranho com a chave da sua porta explicando que eu estou apenas visitando...

E estou enfim vendo por que eu era o único que merecia sair.”

The D. C. Sleeps Alone Tonight, Birdy

 

 

 

 

— Hm... Sr. Percy Jackson?

A figura espremida atrás da porta entreaberta era alta, esguia e de cabelos ruivos presos em um coque alto. O laço que o segurava no lugar era de um vermelho escuro, quase bordô, que combinava com seu paletó e saia justos ao corpo. Os saltos pretos causavam nela pernas levemente flexionadas e aparentemente cansadas de se equilibrar de forma tão precária. Carregava consigo um pequeno retângulo de papel — papel! Que coisa rara ultimamente! — estendido ao ar, obviamente escrito às pressas com caneta preta. As sobrancelhas estavam erguidas e os olhos azuis buscavam atentamente na sala quem poderia ser o homem representado por aquele nome.

O homem no caso não se tratava de um homem. Tratava-se de um jovem. Um jovem relutante e tímido, escondido entre cadeiras de espera ocupadas por verdadeiros homens e senhores de idade — todos aguardando aquela mesma moça. Estavam ali há minutos, horas. Parecia quase injusto que aquele garoto que acabara de chegar seria atendido tão rapidamente, antes de todos os outros.

Alguns resmungos descontentes ecoaram pela sala, deixando claro esse sentimento compartilhado.

Percy não se levantou imediatamente. Não queria abandonar o pequeno mundo que criara, em uma vã tentativa de afastar o nervosismo e se preparar par ao que viria. Nesse pequeno mundo, tudo funcionava: sua vida, sua cidade, suas conquistas, seu Acampamento. Agora, naquele mundo para o qual a funcionária o chamava... Lá, nada funcionava.

— Sr. Jackson? — ela repetiu, confusa.

As mãos de Percy buscaram a cadeira. Em vez de dar o impulso para se levantar, os dedos se prenderam ao plástico e lá se mantiveram, teimosos. Os rostos ao seu redor balançaram, olhos buscando quem se dava ao luxo de ignorar o atendimento privilegiado. Percy inspirou profundamente, fechando os olhos e os abrindo pouco tempo depois. Ergueu-se.

— Sou eu — declarou, movendo a mão direita para indicar a si mesmo. Sentia-se tonto, frágil, despreparado. — Desculpe. Sou eu.

A funcionária — Paolla, agora seu crachá era compreensível — analisou-o por alguns segundos antes de lhe sorrir. Reconhecera o garoto de vinte e poucos anos que frequentava o asilo com mais frequência do que deveria.

— Por favor, acompanhe-me — convidou, a voz macia como veludo.

Percy lutou com o espaço entre as cadeiras até se ver livre. Fez seu caminho até a porta entreaberta, inconscientemente levando a mão esquerda ao braço direito, acariciando o antigo ferimento. Apesar de há muito cicatrizado, ainda parecia doer e latejar com violência sempre que se aproximava daquela porta, daquele corredor.

— Como ela está? — a pergunta simplesmente saltou de seus lábios.

— Ela acabou de acordar — Paolla continuava sorrindo. — Mal pode esperar para vê-lo.

A porta foi fechada atrás deles e o corredor surgiu. Era largo e comprido o suficiente para comportar o movimento que ali havia. Pessoas em roupas de enfermeiros empurrando cadeiras de rodas, idosos caminhando com dificuldade e adultos em meia-idade com olhos marejados. Aquela era a Casa de Recuperação e Repouso de Brooklyn, Nova York, onde pessoas desesperadas deixavam seus queridos familiares quando não conseguiam mais cuidar deles, fosse por idade ou debilidade. Para Percy, tudo isso eram palavras bonitas tentando enfeitar o que não era enfeitável para ele. Aquilo era um asilo, e ponto. E doía nele não poder colocar Annabeth em outro lugar.

De ambos os lados do corredor surgiam portas, e cada porta guiava a salões espaçosos. Às vezes eram cobertos por estantes, outras vezes, por instrumentos de Pilates. Uma dessas portas abria-se para o jardim. Ela ficava no fim do corredor. Outra porta, um pouco antes dessa, guiava aos quartos.

Para lá se dirigiram Percy e Paolla.

— A tosse havia cessado, mas agora retornou com força — relatava a moça, talvez seis ou sete anos mais velha que Percy. — As enfermeiras voltaram a registrar episódios de pesadelos e delírios. Ontem foi um desses dias. Ela parecia estressada. Não quis se alimentar. Chamou por alguns nomes. Balbuciava coisas estranhas, assustando outros pacientes. Tivemos de sedá-la.

Um arrepio desceu pelas costas de Percy.

— Isso é preocupante?

Paolla escolhia as palavras.

— Não é o melhor diagnóstico para ela nesse exato momento — disse. Então suspirou. — Por outro lado, devemos considerar que ela continua lendo. E muito. Se apenas os livros conseguissem mantê-la distraída o suficiente...

— Entendo — Percy murmurou. Estava explicado o telefonema às seis da manhã. — Tentarei conversar com ela.

— Isso com certeza será excelente.

— Você disse que ela... hm, citou nomes.

— Ah, sim. Ela costuma fazer isso ao acordar. Acreditamos serem amigos de juventude.

— Claro, claro. Mas... quais seriam esses nomes, exatamente?

Paolla riu, dando um soquinho amigável no ombro de Percy.

— O que foi? Ciúmes?

Percy corou.

— Apenas curiosidade.

— Foi brincadeira. Se me recordo, ela cita repetidas vezes uma Thalia, um Luke e um Grover. E também alguns nomes da mitologia grega, como Quíron ou Atena. Pensávamos ser influência dos livros que lê.

— Pensávamos?

— Bem, ela não lê sobre mitologia há pelo menos oito meses.

Percy sentiu a boca amarga.

— Oh, não se preocupe! — continuava a alegre e alheia a tudo Paolla. — Seu nome ainda lidera o ranking da Sra. Chase.

— Fico feliz por isso — respondeu ele, quase de forma automática. Agora entendia por que nunca era chamado por Perseus dentro do asilo.

— Eu também. É raro que familiares se preocupem com seus avós e parentes. Ainda mais raro um amigo da família — dizia ela, pousando a mão sobre a maçaneta do quarto 6. Sua expressão passou de risonha para apenas simpática. — Gosto muito de você, rapaz.

Percy sorriu. Ela e também todos os outros funcionários do asilo gostavam dele. Restava saber se Percy gostava de si mesmo.

Paolla abriu a porta devagar, enquanto o menino encarava o 6 metálico refletindo a luz branca da lâmpada. Havia escolhido especialmente para ela, há oito anos. Aquilo agora lhe parecia algum tipo de boa ação atrasada, sem valor. Quase uma piada de mau gosto.

O aroma de lavanda que emanava da sala despertou Percy. Paolla mantinha a porta aberta e seu costumeiro sorriso de mãe de comercial de margarina.

— Qualquer coisa, toque a campainha.

Ele a encarou mais alguns segundos, esperando um “boa sorte, babaca”, mas é claro que jamais viria. Paolla tem por volta de 32 anos. É impossível que alguma vez tenha lido qualquer jornal de quase setenta anos atrás.

— Obrigado.

— Com licença.

 

 

 

 

O quarto era um convite ao esquecimento. As paredes brancas, a cortina levemente cor-de-rosa e a luz fraca emolduravam um quadro silencioso, melancólico, quase deprimente. A brisa leve batia na janela, dando à cortina um movimento suave que combinava com o balançar das flores que havia em um vaso. Pela janela, apenas a visão dos jardins nos terraços dos outros prédios. Ao se encostar a porta do quarto, o mundo lá fora se silenciava por completo, restando apenas o bip repetitivo dos aparelhos e, em volume muito baixo, o respirar carregado da senhora que ocupava a cama do quarto deprimente. Nem mesmo o tapete redondo e felpudo, a poltrona azul bebê ou a pequena estante de livros eram capazes de tornar o ambiente acolhedor.

Ou talvez o ambiente só não fosse capaz de acolher Percy e sua maldita consciência.

Annabeth se mexeu na cama. O cheiro de lavanda inundou o ar, alcançando Percy. Ele sorriu.

— Ta... Talissa? — chamou ela. A voz era um sussurro dolorosamente esforçado.

— Não — Percy respondeu, um pouco chateado. Annabeth o havia confundido com sua enfermeira pessoal. — Sou eu, Percy.

As palavras ecoaram solitárias pelo quarto. Annabeth abriu os olhos com dificuldade, inspecionando o espaço como se tentasse certificar-se de que não era um sonho. Os olhos ainda eram daquele cinza tempestade: astuciosos, mas gentis.

Percy — ela repetiu com estranheza. O menino não se surpreendeu.

Custou-lhe mais tempo para reconhecê-lo agora do que da última vez. E assim se seguiria, gradativamente, até ela o apagar completamente da memória.

— Isso mesmo — ele incentivou, aproximando-se da cama e se sentando na poltrona azul que ficava ao seu lado. — Isso mesmo.

Annabeth abriu um sorriso, sentando-se na cama. O rosto enrugado ficou ainda mais marcado, os olhos se tornaram finas linhas alegres e a cicatriz que ela tinha na testa desapareceu sob a pele.

— Ah, Percy! Meu Percy!

Sua mão magra e trêmula alcançou a dele, fechando os dedos ao redor da palma do menino. Ainda era o mesmo toque de tantos anos.

Percy sentia aquele velho embrulho no estômago subir até a garganta. Ver Annabeth alegre em reconhecê-lo causava-lhe a pior das sensações, o desconforto mais frio e irritante que poderia existir. A inocência dela o acusava. A felicidade dela o sentenciava. E o amor dela o destruía.

— Como está minha Sabidinha?

Um longo suspiro.

— Como eu poderia estar, meu querido?

Ah, aquela língua afiada.

Percy baixou os olhos para as mãos unidas e apoiadas sobre seu colo.

— Desculpe a demora em vir.

— Não se preocupe com isso, querido. O que importa é que está aqui.

Ele voltou a olhá-la nos olhos. Eram bondosos, pacientes. Em noventa e dois anos de vida, deveriam ser poucas as coisas que a incomodariam de verdade.

Já Percy era um ninho de demônios internos. Sua última visita havia sido uma semana antes, mas Annabeth estava dormindo. A visita anterior a essa, no entanto, havia sido cinco meses antes. Uma crise no Olimpo o manteve preso ao mundo dos imortais, apesar de todos os seus argumentos de que precisava voltar para ver Annabeth. Até mesmo Atena intervira, mas nada foi feito.

Estranhamente, em algum lugar sombrio no fundo da mente de Percy, existia certo alívio em poder evitar essas visitas. Um lugar que ainda era cheio de lembranças, perguntas sem respostas e fantasmas que o acordavam com frequência no meio da noite.

Agora, ver-se cheio de um perdão imerecido fez seus olhos marejarem.

— Oh, não, querido, não — Annabeth repetia em um tom um pouco mais alto, mas sempre gentil. Soltou sua mão da de Percy e a ergueu para o rosto do menino, enxugando uma lágrima rebelde. — Não chore. O que me importa é que esteja aqui, porque sempre que você vem, eu esqueço todas as coisas que me entristecem. Você leva embora minha solidão. Não chore.

— Não vou chorar — disse ele, sorrindo genuinamente. — Prometo.

Annabeth afastou a mão e analisou o rosto de Percy, procurando mais lágrimas. Certificando-se de que não havia mais nenhuma, sorriu.

— Acho que um passeio faria bem a nós dois — falou ela, em um misto de carinho e pedido.

 

 

 

 

Acho que um passeio faria bem a nós dois — uma Annabeth estressada diria, sem o ânimo na voz que a frase propunha. Os olhos estariam fixos no porta-luvas à sua frente, o cotovelo apoiado na janela fechada do carro. A cabeça repousaria sobre a mão direita, enquanto a esquerda tamborilaria a perna com impaciência. Ela havia acabado de encerrar temporariamente a discussão que já durava a tarde inteira. Parecia exausta.

Percy recorda a cena em assustadores detalhes. Ocupa o banco do motorista, tendo os pulsos cerrados e observando Annabeth pelo canto do olho. Sente-se fracassado. Fracassado, sim, porque havia dito a si mesmo onze horas atrás que esse dia não terminaria como todos os outros. Seria uma tarde agradável, em que ele lutaria com todas as suas forças para manter tudo bem, como sempre fora no Acampamento.

Mas, olhe só onde eles estavam. De novo.

Quando saíram do Acampamento Meio-Sangue, há cinco anos, ambos tinham plena consciência de que estariam expostos a monstros pelo resto da vida. Entretanto, estavam juntos: unidos por uma aliança formada no mesmo local em que se conheceram.

Percy não tinha exatamente ideia de quando tudo começou a desmoronar. Não foi no primeiro ano, nem no segundo e muito menos no terceiro. Foi... de repente. De repente descobriu que Annabeth era alguém difícil de conviver. De repente, descobriu que poderia ser arrogante e estúpido ao mesmo tempo — segundo a própria Annabeth. De repente, descobriu que sua casa não era bem o lugar mais pacífico da terra.

De repente, os monstros gregos que enfrentou junto com ela durante toda a adolescência não passaram de meras brincadeiras. Descobriu que os monstros da vida real eram bem mais cruéis e difíceis de derrotar.

Ninguém os avisou disso no Acampamento.

— Muito bem — diz ele, voltando seus olhos para o volante e acelerando o carro. Annabeth bufa ao seu lado. Com violência, o carro sai do estacionamento para a noite nova-iorquina.

Não leva muito tempo até estarem presos no engarrafamento das 22h30. É quando Annabeth finalmente quebra o silêncio perturbador.

— Percy — sussurra, aquele tom urgente avisando que uma enxurrada de palavras impiedosas está para chegar. — Percy, me escute.

O menino não consegue evitar um revirar de olhos em desdém. Annabeth explode.

— Percy, qual é o seu problema?

— Escutar. Meu problema é escutar. Acho que já escutei demais, não acha?

— Por que você sempre tem que me culpar de tudo? Sou algum tipo de carrasco agora?

— Eu não estou... Argh! — Percy fecha os olhos e bate contra o volante. Queria poder fugir dali, fugir para qualquer lugar... Fugir para quando Annabeth não o cercava de perguntas como aquela. — Me deixe em paz, por favor.

— Assim que eu descobrir o que significa paz para você, eu o deixo lá — a loira retorque, mas não é tudo. — Porque parece que o meu conceito de paz nunca é o suficiente para você.

Percy ri amargamente. Annabeth estreita os olhos.

— Estou errada?

— Você sempre faz tudo ser um drama. Parece até que eu matei alguém.

— Perseus Jackson, você invadiu uma missão de outros semideuses! O que quer que eu...

— Eles estavam fazendo do jeito errado!

— Isso é problema deles, Percy! Nós somos adultos agora, di Immortales!

— E daí? — disparou ele, fixando os olhos nela. Annabeth fica sem reação. — E daí?! O que você quer dizer com isso? Que nós não somos mais semideuses? Que nem o Olimpo e nem o Acampamento importam mais?

— O que quero dizer, Percy — ela fala pausadamente, sem notar que se colocava em posição de defesa —, é que você não pode voltar no tempo. Você foi herói uma vez. E agora não é mais. Aceite.

Carros buzinam atrás deles. O engarrafamento havia começado a andar.

Percy engole em seco, vira-se para frente e afunda o pé no acelerador.

 

 

 

 

Foi o quick de um passarinho ali perto que o despertou.

— ...e Talissa fez a melhor salada de frutas do ano. Ela finalmente seguiu minha dica de cortar as frutas em triângulos. Se ela apenas soubesse disso desde sempre...

— As pessoas não podem voltar no tempo — repetiu Percy em um tom monocórdio, enquanto empurrava a cadeira de rodas de Annabeth.

— Como?

Ele se flagrou.

— Ah, nada — sorriu sem graça. Não percebeu quando as memórias o tiraram da realidade. — Só... hm, brinquei que, ahn, Talissa não sabia disso antes... Mas agora sabe. É isso que importa. É isso que...

— Eu entendi, querido — riu Annabeth. Sempre inteligente Annabeth. Sempre compreensiva Annabeth. — E concordo plenamente. — Sempre fazendo-Percy-se-sentir-inteligente Annabeth.

Eles passeavam pelo jardim do asilo há aproximadamente meia hora. Ela adorava os passeios, mas Percy nem tanto. A sensação de segurar a cadeira de rodas, a consciência de que a vida de Annabeth estava em suas mãos — mesmo que metaforicamente — sempre levavam Percy de volta àquele carro, àquela noite.

Ela esteve em suas mãos naquela noite.

— Aqui já está ótimo, não é? — perguntou ele, esperançoso. Estavam diante da grade branca do asilo que os separava do “lago” — uma porção de água de vinte metros quadrados que era o único contato com a natureza que se tinha naqueles dias.

Annabeth inspirou e expirou lentamente, sorrindo. Percy a observou por longos segundos. Contra o sol de inverno ela parecia ainda mais serena. Os antigos cachos louros agora eram grisalhos e finos, cortados curtos. Uma mecha mais cinza que as outras sempre chamava sua atenção e o fazia sorrir.

— Sim, está ótimo.

Os ombros eram magros e um pouco inclinados para frente. Ela vestia um cardigã rosa e, por baixo dele, um moletom florido. Parecia não sentir o frio que Percy sentia. Tinha as mãos enrugadas unidas, e sorria sempre que a brisa invernal a tocava. De alguma forma, tudo isso fazia Percy ver apenas a garota de dezesseis anos que correu com ele pelo Acampamento, rindo e beijando a ponta de seu nariz todas as vezes que ele demorava a entender o que ela dizia.

 

 

 

 

O carro dobra de velocidade em questão de segundos. Annabeth imediatamente muda sua expressão irritada para uma genuína preocupação.

— Percy...

Ele pisa mais fundo. Queria que o barulho do motor o ensurdecesse o suficiente para não ouvir a voz dela. Mas não funciona.

— Então é isso? — ela questiona, autoritária. — Vai descontar suas frustrações no carro?

— “Um passeio nos faria bem” — Percy repete. — Um passeio, uma noite, uma viagem, uma pizza. Você sempre quer resolver as coisas assim. Como alguém normal.

— Porque é isso que estou tentando ser! — Annabeth agora apenas grita. — Eu quero que sejamos só um pouco normais, Percy! Quero que quando nossos filhos nasçam, eles se sintam normais! Quero que a minha vida dure mais do que apenas trinta anos!

O carro continua em alta velocidade, ultrapassando um, dois, três outros automóveis.

 

 

 

 

— Conte-me sobre seus dias — pediu Annabeth.

Percy deu de ombros, sentado no chão ao lado dela.

— Ah, o de sempre — Destruí alguns monstros, respondi a algumas orações e compareci a algumas reuniões chatas no Olimpo. — Um monte de crianças querendo aprender a nadar.

— Não fale assim. Querem ser bons atletas. Sorte a deles ter um professor tão dedicado.

Ele riu.

— Nem tanto.

— Mas você gosta disso, não gosta?

O riso parou. Ele gostaria que fosse assim. Uma rotina, uma profissão. Coisa de gente normal.

— Sim, gosto.

Gosto dessa fantasia.

 

 

 

 

— Filhos? Você acha mesmo que estamos com estrutura suficiente para filhos? — retruca Percy, olhos fixos na estrada.

— Queria que estivéssemos — a voz de Annabeth soa mais dolorida dessa vez. Ele sabe que ela está chorando. De novo. — Na verdade, eu queria tanta coisa... Percy, desacelere esse carro.

Ele não conseguia. Sentia que, caso parasse, entraria em combustão.

— Eu sei o que você quer — Percy admite. — Mas... Annabeth, não é tão fácil.

Ela alternava olhares entre a estrada e ele.

— Por favor, Percy, deixe isso para trás — implora. — Ninguém se lembra mais. O Acampamento já o perdoou. Quíron o perdoou.

— Eu fracassei, Annabeth! E ninguém me dá a chance de consertar isso!

— Não há o que consertar, Percy! Você quer o quê? Reconstruir o avião e ressuscitar aqueles semideuses? Ir até o Submundo e arrancá-los de lá?

Percy chora. As luzes se confundem à sua frente, tamanha a velocidade em que estão. Ao seu redor, apenas borrões. Annabeth... um borrão.

— Percy, por favor, pare esse carro!

O pedido ganha uma resposta contrária. Os sons de freadas e pneus raspando contra o asfalto terminam de compor a atmosfera de terror.

— Eu só queria...

— Olhe o que você está fazendo! Perseus, pare! Pare, pare!

Ele tira uma das mãos do volante para enxugar as lágrimas. O carro se vira bruscamente para a direita. Annabeth grita.

— Você não entende!

— Eu juro que entendo, Percy! Agora, pare esse carro!

— Você não entende!

Um cruzamento se aproxima. Annabeth se desespera.

— Percy, olhe o que você está fazendo! — sua voz é quase encoberta pelos gritos dos pedestres lá fora. — Você se culpa por uma tragédia, mas está quase cometendo outra!

Não era assim que ele via as coisas. Em sua cabeça, Percy estava apenas fugindo... fugindo de si mesmo.

— Eu só... Eu não consigo mais lidar com isso, ok? Eu estou exausto, Annabeth! Exausto!

— Percy... — Annabeth pede e soluça mais uma vez, e então o choro a invade. — Percy, por favor... pare... pare o carro...

As mãos dele estão presas ao volante. Os nódulos estão brancos de tanta força investida. Exausto. É como ele se sente. E é quando ele percebe que atingiu o limite de novo. Então as mãos relaxam. Os pés relaxam. E o carro perde um pouco de velocidade.

Os soluços de Annabeth mexem com ele.

— Tudo bem. Tudo bem.

— Percy, pare o carro...

— Tudo bem!

Todavia, o carro não está parando. A velocidade ainda é alta, e Percy começa a ter dificuldade em freá-lo. Sua mão direita voa para o câmbio. Troca a marcha. O carro ainda está veloz.

— Percy... — ela pousa sua mão na dele.

— Calma, calma — repete ele, mais para si mesmo do que para Annabeth.

— Percy, o carro!

Ele tentou evitar a todas as custas não pisar no freio com violência. Mas não restam opções.

Percy pisa no freio.

 

 

 

 

— Um dia, Talissa entrou no meu quarto com um pedido estranho.

— Que tipo de pedido estranho?

Annabeth tinha o olhar um pouco caído. Percy imediatamente se preocupou.

— Pediu se eu queria escrever uma carta de despedida.

A frase veio como um soco no estômago dele.

— Ora, mas por quê?

Ela olhou para ele e deu um sorriso triste, conforme o vento balançava seus cachos cinzas e seu cardigã rosa. Percy automaticamente repreendeu a si mesmo.

É claro. Ela tem noventa e dois anos. Detestava ser tão impulsivo. Nunca falava a coisa certa.

— Desculpe — murmurou.

Annabeth soltou uma gargalhada.

— Você se preocupa demais, Percy! Não foi nada.

Mal sabia ela. Percy era feito de preocupação.

 

 

 

 

O carro patina. Começa a dar voltas, voltas, voltas. Agora Annabeth já não era audível. Nada mais era.

Em um volta, ele viu os prédios.

Outra volta, faróis.

Mais uma volta, o caminhão negro.

Última volta. Percy apenas se lembra da mão de Annabeth apertada à sua, e então uma pancada forte.

Escuridão.

 

 

 

 

Annabeth suspirou.

— Não tenho medo de escrever uma carta de despedida. Tenho a quem endereçar — completou, olhando ternamente para Percy.

Ele odiava quando ela falava assim.

— Você é muito dramática às vezes, sabia?

— Ah, querido, você que exagera demais.

— Preocupado, exagerado... Você sempre me encheu de adjetivos.

Annabeth riu mais uma vez. Uma risada gostosa, adolescente.

— Então foi nisso que ficou pensando? — ele perguntou, olhando para a linha do horizonte. Tentava não fazer isso soar como uma última conversa. — No que pretende escrever?

— Talvez.

— E...?

Um pacote de papéis dobrados caiu em seu colo. Ao olhar para cima, Percy viu Annabeth sorrindo.

— Fiz alguns rascunhos.

 

 

 

 

Luz.

Uma luz branca, forte e não natural flutua sobre Percy. Ele mantém os olhos fixos nela, transformando tudo o que está ao seu redor em sombras embaçadas.

— Ela não está morta — a voz de Sally ecoa pelo quarto branco e solitário.

— Está o quê, então?

— Ela está... — Sally pausa para suspirar. Percy tem sido quase incomunicável desde o acidente, três semanas antes. E custa até mesmo para Sally travar um diálogo com o próprio filho. — Ela está em coma.

— Pré-morte.

— Ela não está morta, Perseus! E não vai morrer. Não vai.

— É o que a senhora repete para si mesma todas as manhãs?

A voz de Percy não muda de tom, já que falar com a mãe era um entediante sacrifício para o garoto. Pelo canto do olho ele percebe quando Sally fecha os olhos, provavelmente fazendo o possível para manter a calma. O único barulho na sala é o constante bip dos aparelhos.

— Coma, mãe — continuava o garoto. — Coma. Pré-morte. Não insista.

— Ela pode acordar a qualquer momento, Percy.

— E se ela não acordar? — ele enfim se altera, ainda com os olhos fixos na lâmpada. — E se levar quarenta, cinquenta anos para ela acordar? Quem eu vou ser lá? Um velho assassino?

Sua mãe se aproxima com cuidado. Se segura nas barras da cama, procurando apoio. Parece a ela o momento ideal para alguma coisa.

— Você será o mesmo, Percy. O mesmo.

— Obrigado, mãe.

— Você ainda terá 24 anos. E Annabeth terá o dobro disso.

Pela primeira vez, Percy baixa os olhos da lâmpada para o rosto de Sally, que está umedecido por lágrimas. Suas sobrancelhas se franzem lentamente.

— O que... o que a senhora está querendo dizer?

Tinha a fria sensação de já saber a resposta. Sally é inexpressiva.

— Você é um deus agora, Percy. É imortal. Esse foi o último pedido de Annabeth.

 

 

 

 

— Acha muito clichê eu deixar um último pedido na carta? Depois, claro, de agradecer a todos os meus amigos e tudo o mais.

— É claro que não. Vá em frente.

Annabeth murmurava para si mesma algumas palavras e fazia algumas anotações em um pequeno bloco de folhas e capa dura. Enquanto isso, Percy segurava o pacote de cartas com a mão esquerda, sentindo a aspereza do papel e buscando coragem para lê-los.

 

 

 

 

Annabeth tinha um segredo com Atena.

Pela insegurança que sentia desde a tragédia causada por Percy, ela deixou um pedido em aberto no Olimpo para a própria mãe. Lá, ela pedia que, caso algo muito ruim acontecesse a eles, Atena deveria interferir e tornar Percy imortal. Devido ao casamento dos dois, Annabeth poderia tomar essa decisão pelo garoto.

E foi o que ela fez.

E é claro que Percy não recebeu bem a notícia.

Deixou o hospital no mesmo dia, descobrindo que podia se regenerar. Saiu sem olhar para trás, deixando médicos e funcionários confusos durante muitos meses.

Enquanto isso, ele invadia o Olimpo com sua recém-conquistada autoridade divina, exigindo explicações decentes e que alguém revertesse seu estado, tornando-o apenas um semideus outra vez. O que encontrou, na verdade, foi uma deusa da sabedoria furiosa, que culpou Percy de todas as maneiras que conseguiu pelo estado atual de Annabeth. Atena também fez o juramento de que Percy jamais retornaria a ser um mero mortal, e que seria obrigado a relembrar o que fez pelo resto de sua vida eterna.

Assim o caos instalou-se no Olimpo e obrigou Percy a fugir de lá, seguindo o conselho de seu pai. Pensou em se esconder no Acampamento, mas não teve a coragem de voltar até lá. Então limitou-se a vagar os oceanos durante quase quatro anos. Foi o tempo de se redescobrir como deus, arrepender-se de erros e imaginar um futuro... um longo futuro.

O fim do exílio foi decretado também pelo Senhor dos Mares. Percy foi recebido de volta, mas não trocava sequer olhares com Atena. Aprendeu os ofícios e responsabilidades necessárias de sua nova natureza, acostumando-se aos poucos à rotina apropriada.

Mas sua mente nunca se afastou de Annabeth. Nem por um segundo.

Ele sabia que, em algum lugar lá embaixo, em Nova York, Annabeth permanecia em coma.

 

 

 

 

— Não vou lê-los.

Annabeth parou e se virou para ele, curiosa.

— Posso saber o motivo?

Percy suspirou.

— É só que...

— Sim?

Ele pegou os envelopes e colocou todos dentro das mãos dela.

— Prefiro ouvir. Vamos criar uma carta de despedida juntos, ok?

Ela o encarou por mais alguns segundos, e Percy sabia que estava tentando ler nas estrelinhas do que ele dissera. Mas logo depois uma risadinha surgiu. Ela lhe entregou o bloco de anotações e começou a falar.

Percy preferia assim. Tinha medo de quando não pudesse mais ouvir sua voz.

 

 

 

 

Não foram quarenta ou cinquenta anos. Foram doze. Doze anos em coma.

Acordou em uma manhã de março, surpreendendo a enfermeira que estava em seu quarto. A notícia chegou para Percy poucos minutos depois.

Ele estava no Olimpo, ocupado com diversos afazeres que pareciam nunca ter fim. Hermes trouxe a mensagem em primeira mão.

— Ela acordou — disse, simplesmente. Duas palavras que imediatamente silenciaram o topo do Empire State Building.

Atena recusava-se a conversar com Percy desde o acidente, mas agora não havia escapatória. Ambos foram obrigados a fazer as pazes no corredor do hospital, antes de entrar no quarto de Annabeth transfigurados de médico e enfermeira.

Ao entrarem, viram uma Annabeth de 36 anos de idade deitada no leito, olhando ao seu redor como se fosse a primeira vez que via o mundo. Os deuses tinham sorrisos no rosto, ansiosos para encontrá-la. Porém, nada os preparou para o que realmente veriam.

Annabeth olhou para os dois como se olha para uma vitrine vazia. Três segundos depois, começou a chorar e esconder o rosto nas mãos... como um bebê.

— Ela é incapaz de se lembrar de coisa alguma — Atena contou para os deuses ao voltarem para o Olimpo. — Não sabe falar, andar, ler. Muito menos reconhecer algum rosto.

Os olhares se voltaram para Percy. Ele encarava o nada, ainda em choque. Escutou em silêncio quando Atena explicou aos outros, preocupados com ele:

— Não. Nem mesmo Perseus.

 

 

 

 

— Queridos amigos — começou ela —, espero que não haja lágrimas enquanto estiverem lendo essas palavras. Quero sorrisos, afinal, sinto-me uma das pessoas mais sortudas da terra por ter alcançado a idade a que cheguei rodeada de tantas pessoas amorosas.

Uma pausa. Um olhar para Percy, em busca de segurança. Ele fez um meneio positivo, embora um gosto amargo já estivesse subindo pela sua garganta. Pessoas amorosas. É.

Annabeth fechou os olhos para pensar durante alguns segundos. Então os abriu outra vez.

— Não haverá aqui uma ordem de preferência, não se preocupem. Meu coração não faz distinção entre vocês. Vocês foram a família que nunca mais encontrei. Vocês foram aqueles que estiveram ao meu lado durante Natais e Páscoas, quando pensei que estaria sozinha. Muito obrigada.

Percy escrevia as palavras ao modo antigo — caneta e papel, como ela preferia —, e de vez em quando olhava para a linha do horizonte. O sol começava a se pôr, deixando o ambiente em um tom de sépia como um filme antigo. Ele queria poder ficar ali. Para sempre.

 

 

 

 

Agora Annabeth estava acordada. E Percy ganhava um novo objetivo em sua vida.

Ela foi encaminhada para uma clínica de tratamento intensivo para pacientes que também sofreram perda de memória em acidentes. Annabeth teve que reaprender a andar, falar, ler e escrever como uma criança. Foram necessários nove anos de recuperação para que ela voltasse a se integrar na sociedade sem dificuldades.

Durante todo esse período, Percy transformou-se em enfermeiro, paciente, jardineiro, faxineiro — sempre uma nova identidade apenas para encontrar a moça dos cabelos louros. Seu favorito era o jardineiro, pois foi assim que ele descobriu quais eram as novas flores favoritas dela.

Após a recuperação, Annabeth conseguiu entrar na faculdade. Dona de uma inteligência acima da média — e sem jamais descobrir a procedência de tais dotes —, cursou Arquitetura e teve um pequeno escritório no ramo, sem grande notoriedade.

Uma vida comum.

Percy já estava preparado para a ideia de ver Annabeth ao lado de uma nova pessoa, mas isso não aconteceu. Apesar de ter sido mesmo uma mulher muito bonita, Annabeth viveu cada um desses dias sozinha em seu apartamento em São Francisco. Ela ainda tomava fortes remédios decorrentes de seu débil estado de saúde e, esporadicamente, tinha lapsos de memória que a obrigavam a retornar ao centro de tratamento e praticar alguns exercícios cerebrais. Além, é claro, de séries anuais de exames e exames.

E Percy continuava encarnando personagens para poder simplesmente conversar com ela, acompanhar seu dia a dia. No entanto, ao longo de quase vinte anos, Percy ainda se sentia terrivelmente distante dela.

Cada vez mais.

 

 

 

 

— Começarei por Yeda, minha primeira acompanhante assim que despertei do coma. Situou-me em São Francisco, explicou-me que havia perdido meus parentes mais próximos no acidente. Obrigada por me ensinar a viver novamente. Nunca poderei agradecer o que fez por mim. Você e aquela querida moça que a auxiliava... — Annabeth parou, claramente esforçando-se para recordar o nome. — Ahn... Percy, ajude-me. Tenho quase certeza de já ter contado dessa moça. A dos olhos azuis.

A caneta quase caiu de seus dedos. Ele mordeu o lábio.

— Thalia. Thalia Grace.

— Isso! Isso mesmo, querido. Thalia.

Percy lutava para conter os olhos marejados. Ouvir Annabeth repetir o nome de Thalia lhe partia o coração. Thalia soubera imediatamente o que aconteceu e, estando na mesma situação de imortalidade que Percy, decidiu que faria parte da nova vida de Annabeth enquanto pudesse aparentar sua juventude eterna. Vários outros semideuses fizeram o mesmo, mas em idades diferenciadas. Clarisse aos 42, Piper e Jason aos 45, Leo e os Stoll aos 48...

O único que permanecia igual e distante era Percy.

Enquanto refletia, Annabeth continuava ditando sua carta.

— Oh, eu não poderia deixar de citar Nico. Frequentou diversas vezes meu escritório. Sinto saudades de nossas conversas. E ainda temos... claro, Paolla. Paolla, tão dedicada e sempre tão gentil. Obrigada pelas boas notícias que costuma trazer quando vem ao meu quarto. Que você seja muito feliz e rodeada por amigos. E Talissa, claro! O que posso dizer de minha enfermeira favorita? Eu a amo, mocinha. Muitíssimo. Você e seus dois gatinhos, de quem sempre me fala. Você terá uma carreira de sucesso, eu acredito. Sempre tão empenhada e disciplinada. Nunca deixe de ser assim. Você tem um lugar no meu coração. E... bem, acho que consegui citar todos.

Subitamente, um pensamento ligeiro ocorreu a Percy. Uma leve carga de arrependimento pesou em seus ombros.

— Na verdade, acho que ainda falta um nome.

Annabeth franziu o cenho, pensativa.

— Tenho quase certeza que vasculhei todos, querido.

— Não — insistiu Percy, mordendo a ponta da caneta. — Esse nome... Bem, talvez eu nunca tenha falado dele antes.

A curiosidade que a tomou era visível.

— Qual?

— Luke Castellan.

 

 

 

 

Aos 64 anos, Annabeth teve uma recaída.

Foi levada ao hospital pela vizinha. Ficou internada duas semanas, sendo finalmente enviada à instituição de longa permanência municipal, já que não tinha parentes conhecidos. Percy assistiu a todo o processo de longe.

Quando já devidamente instalada no asilo — o primeiro de muitos —, Percy foi visitá-la, ainda sob codinome. Logo à primeira vista detestou o lugar. Queria tirá-la dali a todo custo, enviá-la para uma nova instituição onde ela seria cuidada com muito mais zelo. Aquele em que estava a sufocava entre centenas de outros idosos. Permanecia esquecida em um canto quase o dia todo.

Porém, para movê-la de lá, Percy precisava alegar que era pelo menos próximo a ela.

E assim, 40 anos após o acidente, Percy finalmente voltava a se aproximar de Annabeth sendo apenas ele mesmo.

Era estranho. Ele se sentia mal e falava pouco. Graças aos deuses, Annabeth era só sorrisos. Simpática, doce, engraçada. Se alguém foi o responsável pelo crescimento da amizade, esse alguém foi ela. Por causa de tamanha intimidade entre os dois reconhecida até mesmo pelos médicos, em questão de meses Percy recebeu o direito de transferi-la para outra instituição.

Porém, havia um problema. Um grave problema. E Percy notou isso quando, ao quinto ano frequentando a nova casa, uma das enfermeiras o abordou:

— Nossa, o que você usa?

— Desculpe-me?

— Essa sua cara.

— O que tem a minha cara?

— Ela não muda. Você tá sempre igualzinho. Depois me passa o nome desse creme, hein?

Então Percy soube que era hora de partir de novo.

E assim seguiram-se quase trinta anos, vagando de asilo em asilo até se esgotarem os de São Francisco e eles terem de se mudar para Nova York outra vez.

Já Annabeth parecia não se importar com o fato de Percy não envelhecer. Sempre que ele a encontrava, ela estava sorrindo de volta. Sorrindo, sorrindo, sorrindo... Porque sua memória se apagava com o tempo, mas Percy continuava o mesmo.

 

 

 

 

— Luke Castellan, obrigada por ter sido meu ami... oh, apague isso. Meu melhor amigo de infância. Não sei por onde andas hoje, mas ainda o agradeço por ter me salvado aos sete anos de uma queda quase fatal. Sim, eu lembro disso — completou, dando uma piscadela para Percy. Annabeth adorara saber que teve um amigo de infância. E a salvação... bem, esse foi o jeito mais mortal de simbolizar o que realmente Luke fizera no Olimpo, quando Percy e ela tinham apenas 16 anos. — Sinto saudades.

A sensação de arrependimento já o havia abandonado. Não havia muito mais que ele pudesse fazer, a não ser entregar a Annabeth a melhor lembrança possível de um dos maiores heróis que ele já conhecera.

— Finalmente... acho que só me resta uma pessoa.

Percy ergueu o olhar para ela. O pôr do sol já estava quase no fim e a noite se anunciava, mas onde estavam não era frio. O aquecimento moderno presente no lago do asilo os mantinha confortáveis. Além disso, nenhum funcionário tinha pressa de tirar Percy de Annabeth.

Ela tinha uma expressão quase infantil no rosto, se parecendo agora com uma criança que pretendia aprontar.

— Ah, não — sorriu ele. — Não precisa.

Isso a fez se emburrar.

— Como assim, “não precisa”? Por que eu não mencionaria meu melhor amigo sentado bem ao meu lado em minha carta de despedida?

O rapaz abriu os lábios, e logo os fechou. Ele sabia muito bem a resposta para sua pergunta, mas não poderia dizê-la. Tudo se resumiria apenas em culpa, saudades, culpa, desmerecimento, culpa.

— Ah — gaguejou. — Você sabe... sabe como é.

Annabeth era impassível.

— Não. Eu não sei.

— Eu não fiz nada muito... hm, especial por você.

A última frase pareceu chocá-la. Ponderou por vários segundos o que ele dissera, como sempre fazia quando Percy falava qualquer besteira impensada.

Por fim, sacudiu uma mão no ar em direção à carta que Percy redigia.

— Vamos, escreva o que eu disser.

— Annie, espere...

Caro Percy Jackson, — iniciou, a voz autoritária, ombros retos. Uma vez falando, nada a impediria de terminar. — Eu ainda posso me recordar com clareza do dia em que nos conhecemos.

Um nó se formou na garganta dele. Ele também lembrava, Sabidinha.

Disseram-me que eu tinha uma visita desconhecida. Seu nome era Perseus, mas eu preferi o apelido, “Percy”. Fazia-me imaginar um garoto vivaz, doce e genuíno. E foi isso mesmo que encontrei. Você vestia tênis, calças jeans e uma camiseta alaranjada. Tinha cabelos negros mal penteados e inocentes olhos verdes. Trazia um buquê de petúnias na mão direita. Apresentou-se como um amigo. Alguém que me faria companhia. Mas algo dentro de mim me dizia que você era mais do que apenas esse amigo. Você era minha própria esperança encarnada.

“Eu adorava como, ao passar dos dias, você ficava mais tempo e conversava cada vez mais abertamente. Eu poderia recitar cada assunto que discutimos, cada boa lembrança que você me ajudou a formar... mas creio não ser necessário, pois prefiro assumir que você também é capaz de se lembrar desses momentos. Não sei o que fiz para merecê-lo, porém espero sinceramente tê-lo recompensado por tamanho carinho. À beira dos 70 anos, não há muita coisa que possamos oferecer a um jovem — ainda mais quando precisamos renascer aos 36.

Podem chamar-me de louca, cega ou fantasiosa, eu não me importo. Mas, para mim, você esteve em todos esses momentos, acompanhando-me de asilo a asilo. Recuso-me a acreditar em outra coisa, mesmo que Talissa insista no contrário. Ela costuma me dizer que você só me conheceu há três anos, mas eu sei a verdade. Sei que sempre esteve ao meu lado, e é incapaz de envelhecer porque a esperança também é.

Por fim, só posso e devo lhe dizer que, Percy, eu o amo de todo meu coração. Você sempre foi e sempre será a parte favorita de minha vida. Minha melhor lembrança. Minha visita mais especial. E por tudo isso, meu último pedido é para você: quando eu me for e não ser mais necessário que você me acompanhe, peço que leve sua esperança para outra pessoa, e depois outra e outra. Pois é isso o que você é: esperança viva, que verte dos olhos e preenche a alma de quem for abençoado o suficiente para encontrá-lo.

Percy, permaneça assim: sempre o mesmo. Não envelheça suas virtudes. Nem jamais deixe de ser meu querido.

Annabeth Chase.”

O silêncio voltou a reinar no pátio. Annabeth o observava sem pressa. E ele era agora um rosto completamente avermelhado, com lágrimas por todos os lados e um pedaço de papel molhado em uma das mãos. Não importava o quanto tentasse, Percy era incapaz de dizer coisa alguma.

— Tem certeza de que não quer incluir nisso na carta? — ela perguntou, de forma doce.

Ele se limitou a sorrir.

— Obrigado.

— Não agradeça. Apenas escreva — completou, reclinando-se na cadeira e pousando os olhos nas estrelas.

A carta estava incompleta. Percy nem sabia como continuá-la. A caneta tremia em sua mão.

— ...Annabeth?

— Sim?

— Você é minha melhor amiga — confessou, com os olhos fixos na carta não terminada e duas bochechas coradas. — Eu te amo... tanto, eu... Eu te amo. Obrigado por ter existido na minha vida. Obrigado.

Ele escutou uma risadinha.

— De nada, querido.

Percy também riu. Olhou mais uma vez para ela. Annabeth refletia a lua cheia nos olhos cinzas.

— Você é minha melhor amiga. E eu... ahn, vou manter a promessa. Seu pedido é minha promessa. Vou mantê-la. Você sabe disso, não sabe?

— Eu sei, Percy. Eu sei.

Seu coração batia forte. As palavras sumiam sempre quando ele mais precisava delas.

— Eu... eu nunca vou te esquecer, Annie. Nunca.

Um farfalhar de folhas das árvores foi a única coisa que se ouviu durante alguns minutos. As lágrimas já haviam cessado, e Percy sentia-se feliz. Completo. Pela primeira vez em quase setenta anos, ele dissera as palavras que estavam presas em sua mente, acorrentadas a um passado de remorso e arrependimento.

Agora, no entanto, ele estava livre delas. Disse a Annabeth que a amava. Era um amor diferente, um amor genuíno e compreensível, suave e agradável. E era assim que se sentia quando terminou de escrever a carta, escrevendo cada palavra com a maior atenção e cuidado que conseguia encontrar.

— Nunca — repetiu, e riu. Annabeth sempre ria da forma que ele demorava para encerrar as ligações telefônicas, os assuntos já há muito terminados. Riu esperando um retorno.

Mas o retorno não veio.

Percy olhou para cima, preocupado. Annabeth estava na mesma posição, mas algo nela o incomodou. Tampou a caneta rapidamente e se colocou em pé com a carta em mãos. Restava apenas sua assinatura, coisa que Annabeth ainda era capaz de fazer sozinha.

Ao ficar em pé, porém, sentiu-se ligeiramente fraco. O pescoço de Annabeth não estava firme. Seus olhos, fechados. Ao tocar sua mão, não houve resposta.

— Annabeth? Annabeth?

Silêncio.

Percy engoliu em seco. Acabava ali. Tudo acabava ali. Annabeth, em frente a um lago, olhando para as estrelas. Essa seria sua última lembrança dela.

O desespero momentâneo deu lugar a uma súbita paz interior. Percy sentiu-se mais leve. A culpa fora levada embora com Annabeth.

Ele lhe deu um último beijo em sua testa. “Nunca”.

O quarto número 6 dormiria sozinho naquela noite.

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Versão 2k20. Upgrade em 01.07.20.


Parabéns, vocês acabaram de ler 21 páginas de puro drama.
Obrigada. ♥
.
Pra quem não me conhece, eu sou a Amanda e ando sumida do Nyah faz bastante tempo. Agora que a escola acabou e ainda não entrei na faculdade, decidi retornar ao site aos poucos. Passei por alguns cursos *intensivos* de escrita e estou tentando adaptar minhas histórias às estruturas e arcos que aprendi. Por isso, por mais que tenha prometido voltar a atualizá-las, isso vai demorar um pouco. O processo é um bocadinho complexo.
A história que vocês acabaram de ler existe na minha cabeça desde meados de 2012. Era um original sobre um cara que visita a senhora com quem ele se casou e extorquiu todo o dinheiro dela. Aí ela dava uma lição de vida nele. Maaaaas eu achei meio tediosa pra se escrever na época e arquivei.
Retornou com força quando assisti Capitão América 2 (a cena com a Peggy, lembram?), exato um ano atrás. Como são poucas as situações onde só um dos cônjuges envelhece, fui levada outra vez a adaptar um original para Percy Jackson. Somei com uma das minhas músicas prediletas da srta. Birdy e boom: eis o resultado.
Estava planejada para ser postada dia 09/04, no meu aniversário de três anos aqui no Nyah, mas bem nesse dia minha inspiração foi dar uns rolês e eu não consegui terminar. Comecei até a editar um trailer pra ver se ela voltava, mas não surtiu efeito.
Terminei agora e estou tão feliz que postei imediatamente. Perdoem-me caso encontrem algum erro que possivelmente passou despercebido durante minhas 1000 revisões.
Também me perdoem pela história trágica. Eu sou #TeamPercabeth para sempre, mas também sou escritora de drama. Então, esses dois raramente escapam de minhas tragédias. Outra razão é que gosto de inserir alguma reflexão em minhas histórias, e, nesse caso, a reflexão seria sobre o quanto podemos negligenciar o futuro por mágoas do passado. Não permitam que isso aconteça.
Desculpe segurá-los aqui no final, mas eu adoro escrever notas. São probleminhas psicológicos que não pude consertar no passado.
Podem conversar comigo se quiserem, prometo que não sou metida. Novamente, obrigada pela leitura e me desculpem pelo final triste.
Adoro vocês.
:)
.