Além de Irmandade escrita por Dricca


Capítulo 15
Tempestuoso


Notas iniciais do capítulo

Oi, eu voltei. NOSSA. Vou deixar a justificativa pras notas finais.
Só tenho a agradecer a todos que comentaram durante o tempo que estive longe. Cada comentário chegava notificado na minha caixa de e-mails, então eu lia todos, sempre. E toda feliz, pensando no dia que eu iria conseguir voltar. Vocês não puderam saber, mas cada elogio foi como um empurrãozinho de volta pra cá. Eu dei um passo de cada vez e eu consegui chegar bem aqui, hoje.



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Encarar Daniel beijando outra pessoa era arrebatador, como ter o coração arrancado do peito à força. Um estilingue emocional que me lançava para um tipo de tristeza diferente. Algo que, além de triste, era decepcionante, cortante, minguante. Uma dor grande demais para um instante tão pequeno. Meus ombros murcharam e meu peito se apertou, como se eu fosse encolher até sumir dentro do meu próprio coração despedaçado.

Dos lábios grudados dos dois, meus olhos fizeram caminho até as mãos de Daniel, aquelas exageradamente atraentes. Elas estavam apertadas ao redor da cintura fina da garota. Os longos dedos de Daniel tocavam a pele bronzeada de sol, exposta por conta do top exageradamente curto. E em um segundo eu já não enxergava mais nada, porque tudo tinha se transformado em um borrão úmido que aglutinava todas as luzes ao redor em uma coisa só. Meus olhos iam marejando num de repente muito rápido.

Não podia ser verdade. O primeiro garoto que eu beijei, o primeiro garoto que eu me permiti gostar...

Me forcei a desviar a atenção daquela cena ardida e encarei o teto, piscando várias vezes depressa, na intenção de fazer as lágrimas secarem antes que eu começasse a chorar na frente dos meus amigos. Eu não podia simplesmente desabar com eles ali. Eu só precisava esconder aquela pequena tempestade interna até que eu soubesse o que fazer.

Cruzei os braços numa tentativa de me confortar, volvendo a atenção para o nosso quarteto – que era basicamente Nando e Mei interagindo –, e quase pude me sentir aliviado. Nando estava tão entretido na conversa e nos olhos puxados de Mei que provavelmente não tinha nem reparado em mim. Mas meu alívio não durou quase nada, porque quando desviei os olhos do casal, peguei Vitor me encarando. E travei. Senti como se tivesse sido pego no flagra cometendo um crime. Ele me encarava com um olhar novo, como se estivesse muito surpreso, mas, ao mesmo tempo, como se tudo estivesse finalmente fazendo sentido para ele.

Sem reação, eu encarava Vitor enquanto ele parecia montar mentalmente as peças do quebra-cabeça que deveria ser toda aquela situação na perspectiva dele. Em dois segundos ele suspirou, olhou para onde Daniel estava com a garota e, quando voltou a me encarar, seu olhar já não era de surpresa ou qualquer sentimento de novidade, como antes. Era um olhar de pesar. Vitor apenas comprimiu os lábios e eu senti nos ossos o efeito daquela expressão em seu rosto. Ele estava com pena de mim.

Vitor tinha entendido tudo. Ele sabia.

No mesmo instante em que Vitor me lançou aquele olhar de compreensão penosa, eu entrei em pânico. Era como se ele tivesse invadido a minha mente sem permissão. Além de mim e do próprio Daniel, não havia mais ninguém que soubesse como eu me sentia.

Ficamos nos olhando por alguns segundos, eu com vergonha demais para confirmar qualquer suspeita, e talvez ele estivesse sentindo a mesma coisa, porque também não disse nada. E como nenhum de nós falava ou fazia qualquer coisa, eu tive alguns instantes para ir absorvendo a ideia de que finalmente alguém tinha percebido a minha paixão supersecreta por Daniel, e aquilo me levou a níveis altíssimos de desespero em poucos instantes. Tanto que eu devo ter ficado pálido, porque Vitor arregalou brevemente os olhos e se aproximou com uma expressão preocupada, como se eu fosse cair duro do chão a qualquer instante.

— Fica calmo, Luca — Vitor olhou sério para mim; talvez ele estivesse tentando passar alguma tranquilidade ou segurança com aquele olhar expressivo, mas eu estava com tanto medo por ter sido descoberto que, naquele momento, Vitor parecia assustador.

Ele apertou um dos meus ombros, me abraçando de lado, e chamou a atenção de Nando e Mei.

— Nós vamos buscar algo pra beber, vocês querem alguma coisa?

— Na verdade, eu tô com fome — Mei contou.

— Eu também — Nando disse.

— Eu vou ver algo pra vocês comerem — Vitor foi me puxando para fora dali, seu aperto no meu ombro sempre firme. — Nós já voltamos.

Nando assentiu e Mei agradeceu gentilmente. Vitor me arrastou até a cozinha, que, para minha sorte, estava vazia – eu estava a ponto de chorar e seria terrível ter espectadores. Enquanto Vitor procurava pacotes fechados de salgadinho nos armários, eu me sentei em uma das banquetas de frente à bancada. Apoiei meus braços sobre o granito e deitei a cabeça sobre eles, escondendo meu rosto.

Tentei respirar fundo, tentei não chorar para não passar mais vergonha na frente de Vitor, mas as lágrimas só foram saindo, e com as lágrimas alguns poucos soluços.

Alguns instantes se passaram enquanto eu tentava me concentrar no barulho dos armários abrindo e fechando, o som dos pacotes de salgadinho sendo amassados, a letra da música pop-chiclete que tocava alta, propagando-se por toda casa. Eu tentei fazer de tudo para evitar repetir, mentalmente, a cena de Daniel beijando aquela garota. Mas foi totalmente inútil.

Vitor chegou ao me lado e cutucou minhas costas. Levantei a cabeça e observei enquanto ele empurrava um dos copos de plástico vermelho sobre a bancada na minha direção, ao mesmo tempo em que se sentava na banqueta ao lado da minha.

— O que é isso? — olhei para o líquido claro dentro do copo, minha voz saindo embargada.

— Água com açúcar — ele explicou. — Minha mãe sempre fazia pra mim quando o Vinícius brincava de me assustar.

— Eu não levei um susto — falei enquanto limpava o nariz na manga comprida da minha blusa.

— Tem certeza? — Vitor me encarou com as sobrancelhas erguidas.

Fiz uma tentativa de suspirar enquanto pegava o copo, mas meu nariz estava trancado por causa do choro, e eu apenas funguei de um jeito patético.

— Obrigado — falei, depois de tomar uns bons goles da água doce; eu não estava esperando que funcionasse, mas, milagrosamente, aquilo ajudou a me acalmar um pouco.

— Você quer conversar? — Vitor sugeriu meio incerto.

— Na verdade, não — encolhi um pouco os ombros; eu ainda não estava pronto para desabafar todas as minha inseguranças. — Eu só queria te pedir pra não falar nada pra ninguém.

— Eu não vou contar, não se preocupe — ele me tranquilizou. — Mas é uma questão de tempo até que comecem a notar, sabe.

— Você acha? — perguntei preocupado.

Vitor fez que sim com a cabeça.

— Não sei como não percebi antes. Você é meio óbvio às vezes.

— Sou? — fiz uma careta.

— Quando você olha pro Daniel é como se estivesse escrito na sua testa que você gosta dele.

— Você tem certeza? Quer dizer, você é quieto e percebe as coisas. Talvez as outras pessoas não prestem tanta atenção — eu tentava convencer a mim mesmo enquanto falava, mas sabia que minha voz denunciava o quanto eu mesmo duvidava daquilo.

Vitor exalou o ar, um tanto impaciente.

— Qual é o problema se as pessoas perceberem?

Dei mais um suspiro-fungada.  Vitor parecia não ter entendido a parte que eu não queria conversar. Mas uma hora ou outra eu teria que explicar as coisas para ele. E talvez aquele fosse mesmo o melhor momento, quer dizer, nós já estávamos ali.

— Alguém pode contar pro meu pai — respondi.

— Seu pai é preconceituoso?

— Mais ou menos — levei a minha mão até as argolinhas na minha orelha, nervoso; Vitor era a primeira pessoa para quem eu tentava contar os problemas da minha família. — O problema real é com meu avô. Ele era militar, e de alguma forma ele trouxe isso pra vida pessoal. Os valores dele são todos muito tradicionais e ele é muito cabeça-dura. E, bom, ele, sim, é preconceituoso.

Eu tinha arrepios só de pensar em contar ao meu avô que eu gostava de garotos. Ele fazia atrocidades comigo desde pequeno se apenas desconfiasse que eu estava prestando atenção mais que necessária nos meninos, ou “agindo como uma garota” em alguma situação aleatória, como quando eu preferia brincar com giz de cera ao invés de jogar futebol com os moleques da rua. Como se esse tipo de coisa definisse o quão garoto se é.

— Mas e se seu pai não contar nada pro seu avô? — Vitor questionou.

— Não existe um mundo no qual meu pai não conte algo pro meu avô. Tá fora de questão. — neguei com a cabeça, limpando mais algumas lágrimas fujonas com as costas da mão. — E como meu avô educou meu pai do mesmo jeito que fazia com os soldadinhos dele no exército, não tem ordem que meu pai desobedeça.

— Que merda — Vitor torceu os lábios enquanto eu assentia e terminava de enxugar as lágrimas das bochechas com as mangas.

— Ele é uma boa pessoa, o meu pai — tentei defendê-lo; querendo ou não, eu não gostava quando alguém pensava qualquer coisa ruim dele. — É só o jeito como ele foi criado que complica as coisas.

— E o Daniel?

— O que tem ele? — perguntei, meio contrariado; eu não queria falar sobre aquele imbecil traidor mentiroso.

— Vocês tinham alguma coisa? Ou você só tá mal porque descobriu que não tem chance?

— Bom, nós... Ficamos duas vezes. E ele disse que gosta de mim. Aí quinze minutos depois tava beijando aquela garota.

— Nossa — Vitor arregalou os olhos. — Será que ele disse que gostava de você só pra te pegar?

— Eu não sei, não quero saber, não quero nem pensar nisso agora, Vico.

Respirei fundo, tentando me controlar para não voltar a chorar. Vitor era legal, mas talvez não tão sensível. Quer dizer, eu já tinha dito que não queria conversar e ele vinha com uma frase daquelas. Mesmo que tudo me fizesse pensar que era o que tinha acontecido, eu não queria ter que admitir que Daniel tivesse me enganado “só pra me pegar”. Não queria mesmo.

— Vai ficar tudo bem, esse tipo de coisa acontece — Vitor dava batidinhas nas minhas costas. — Já perdi a conta das vezes que chorei por causa de desilusão amorosa.

Olhei para ele e funguei. — Mas foi por garotas, não foi?

Vitor revirou os olhos. — Não faz diferença. Garotas, garotos... Se apaixonar por gente babaca é sempre uma merda. Isso sempre vai ser igual pra todo mundo.

— Mas... — tentei dar uma de pessimista de novo, mas ele me interrompeu.

— Eu sei, tem o seu pai e o seu avô... Mas por enquanto ninguém sabe disso. Agora você não tá chorando porque o Daniel é um garoto, mas porque ele é um babaca sem coração.

Soltei uma risada fraca.

— É, você tá certo.

— É claro que eu tô — ele sorriu. — Primeiro supere sua decepção amorosa pra depois se importar com o gênero da sua decepção amorosa, tá bom? Senão, vai ser muita coisa pra você pensar de uma vez só.

Apenas assenti, ajeitando os cabelos atrás da orelha, enquanto acabava de tomar a água com açúcar que tinha restado no copo plástico.

— Bom, eu vou levar os salgadinhos pro nosso mais novo casal faminto, antes que eles resolvam vir atrás de nós — Vitor pegou os salgadinhos da bancada enquanto se levantava. — Você vem?

— Eu só quero lavar o meu rosto antes, já alcanço vocês — falei, me levantando também.

Antes de sairmos da cozinha, puxei levemente a camiseta de Vitor e o fiz olhar para mim.

— O que foi? — ele franziu o cenho, esperando que eu dissesse algo.

— Obrigado — eu estava verdadeiramente agradecido pela maneira com a qual ele me apoiou e foi gentil comigo.

— Não precisa agradecer — Vitor sorriu. — Somos amigos, eu só quero te ver bem.

Assenti com o melhor sorriso que eu pude dar nas condições em que eu estava e, enfim, saímos da cozinha.

Enquanto Vitor caminhava até Nando e Mei, fui até o lavabo, andando com a cabeça baixa para que ninguém prestasse atenção em mim ou no meu rosto inchado. Quando cheguei lá, encontrei uma garota retocando o batom de frente ao espelho. Ela disse que já estava saindo e não demorou muito para guardar a maquiagem em sua bolsa, deixando o banheiro livre para mim.

Só quando tranquei a porta atrás de mim foi que percebi o quanto eu estava precisando ficar sozinho, mesmo que trancado no banheiro da minha própria casa. Por alguns instantes, ali dentro, eu não precisava ver ninguém e ninguém precisava me ver. Isso me confortou quase como se eu estivesse sendo abraçado.

Lavei meu rosto na pia e passei a fitar as gotas de água pingando do meu queixo no porcelanato branco, criando coragem para encarar o meu reflexo no espelho. Olheiras, cílios molhados e uma expressão que misturava cansaço e decepção. Naquele momento eu só quis abraçar meu próprio eu refletido e dizer que tudo ficaria bem, porque de repente eu estava com tanta pena de mim mesmo que doía.

Alcancei a toalha para enxugar meu rosto, me forçando a pensar que eu deveria ser forte e ir procurar meus amigos. Quem sabe eles poderiam me ajudar a pensar em outra coisa além do Daniel beijando aquela garota, pelo menos até que aquela maldita festa acabasse e eu pudesse me esconder em meu quarto pelo restante da vida.

Assim que devolvi a toalha ao gancho na parede, senti meu celular vibrar no bolso traseiro do jeans. Talvez fosse Vitor me ligando para saber se eu ia ficar muito tempo lamentando sozinho no banheiro.

No entanto, quando peguei o celular e vi aquele nome brilhando na tela de bloqueio, tive uma surpresa que quase me fez derrubar o aparelho no chão.

Atendi a ligação como se minha vida dependesse daquilo. — Matheus?

Luca — ouvi a voz embargada do meu melhor amigo, e, logo depois, um soluço quase desesperado. Então, eu mesmo me desesperei.

— Matheus, onde você tá?

Eu... Eu não sei — a voz dele estava muito embolada para alguém que estava apenas chorando; ele, com certeza, estava bêbado.

— Como não sabe? — falei exasperado. — Matheus, você precisa me dizer onde você tá!

Eu só... Tava tentando dirigir pra casa e... Parei num posto de gasolina — ele respondeu devagar. — Não consigo nem sair do carro, eu... Acho que bebi demais — escutei outro soluço e senti meu coração apertar no peito. — Eu tava me sentindo muito culpado, Luca... Me desculpa, por favor! Eu não sei o que eu vou fazer se você ficar bravo comigo.

Suspirei, nervoso, passando a mão entre os cabelos. Matheus tinha tentado ir para casa bêbado e eu não suportaria se algo acontecesse a ele. Eu iria me culpar para sempre. Era uma sorte tremenda ele ter resolvido estacionar o carro.

— Eu não tô bravo com você, Matheus — tentei acalmá-lo. — Nem nunca ficaria, você é meu melhor amigo independentemente de qualquer coisa, tá bom? Eu só preciso que você fique aí e não se atreva a dirigir, entendeu? Eu vou te encontrar e te trazer pra casa.

Mas, Luca, nem eu sei onde é aqui — Matheus soava como uma criança assustada. — Minha cabeça dá voltas toda vez que eu tento ler alguma placa. Tô muito tonto.

Respirei fundo e tentei pensar em alguma forma de resolver aquela situação.

— Você tá com o carro dos seus pais? Qual carro é?

Um sedã preto.

— E como é esse posto onde você tá? — comecei a andar em círculos no espaço mínimo que havia entre a pia e a porta, roendo a unha do dedão.

Hm... Amarelo. Tem uma placa com um sol e um... — ele demorou alguns segundos para continuar. — Um troço inflável gigante em formato de... Um pacote de Doritos?

— Tem certeza que é um Doritos?

Eu não sei, não consigo ler direito!

— Tá — esfreguei minha testa com a mão livre. — E... Você lembra a rua que você pegou pra ir embora?

Eu só segui a primeira opção do GPS.

— Você passou por algum posto antes desse?

Eu... Acho que não.

— Ok, eu vou dar um jeito de buscar você — afirmei, tentando soar seguro. — Fique aí, entendeu? Não ouse pensar em dirigir de novo!

Tá bom, já entendi...

— Promete?

Prometo.

Me despedi de Matheus e saí as pressas do lavabo. Precisava encontrar alguém que pudesse dirigir para mim, já que eu ainda não sabia nem o básico de direção para arriscar sair de casa. A primeira pessoa que veio à minha mente foi o Daniel, em um pensamento automático. No mesmo instante, frustrado comigo mesmo, revirei os olhos. Não queria nem pensar no maldito àquela hora.

Corri na direção em que imaginava que Vitor estaria, onde tínhamos deixado Nando e Mei antes de irmos até a cozinha. Estava pensando em pedir para que ele convencesse seu irmão mais velho a fazer o favor de ser meu motorista. Porém, no meio do caminho, esbarrei sem querer em alguém e, quando fui me desculpar, dei de cara com um Cadu me encarando de cenho franzido. Ao que parecia, ele estava indo ao banheiro do qual eu tinha acabado de sair.

— O que aconteceu, Luca? — ele tinha uma expressão de quem estava achando engraçada a minha pressa afobada. — Tá fugindo de quem?

— Cadu! — ignorei completamente a piada sem graça dele. — Você conhece alguém que saiba dirigir e que esteja lúcido o suficiente pra fazer isso? Não precisa nem ter a carteira de motorista.

— Hm... Eu?

— Você?

— É — ele deu de ombros, naturalmente. — Meu pai me ensinou a dirigir nas férias. Só não tenho a licença ainda.

— Será que você pode me levar em um lugar? É urgente. Caso de vida ou morte.

— Esse caso de vida ou morte pode esperar eu ir ao banheiro?

Suspirei. Não podia reclamar, ele já ia fazer o favor para mim.

— Tudo bem, eu vou te esperar na garagem. Vai rápido, por favor.

— Tá bom, já te encontro lá.

Corri para a saída e, um pouco antes de chegar até a porta, senti alguém me segurar pelo punho. Olhei para trás e encontrei Vitor com cara de assustado.

— Pra onde você tá indo correndo desesperado desse jeito? — ele me soltou assim que eu me virei de frente para ele.

— Esperar o Cadu na garagem.

— E por que você vai esperar o Cadu na garagem?

— Ele vai me levar em um lugar.

— Que lugar? — Vitor ergueu uma sobrancelha.

— Buscar o Matheus, que bebeu muito e não pode dirigir.

— Quem é Matheus?

— Meu amigo. Aquele que eu tava conversando mais cedo.

— Posso ir junto? Não quero ficar de vela pro Nando e pra Mei.

Assenti. — Claro. Vamos.

Segurei Vitor pelo pulso e o puxei, apressadamente, na direção da garagem. Chegamos em frente ao carro azul de Amora e, enquanto Cadu não aparecia, pesquisei no Google como era um sedã, porque eu não entendia nada de modelos de carros. Depois, coloquei no GPS do celular a rota para sair da cidade, como imaginei que Matheus havia feito antes de sair com seu carro por aí. Logo que o GPS me deu o caminho, procurei os postos de gasolina que ficavam pelas ruas que teríamos que passar. Havia cerca de quinze postos até a avenida principal que nos colocaria para fora da cidade, e eu, sinceramente, esperava que Matheus estivesse no primeiro deles, assim como ele tinha falado ao telefone.

Quando bloqueei a tela do celular e fui abrir o carro, na intenção de ir logo me sentando para economizar tempo, percebi que eu tinha me esquecido de pegar a chave. Antes que eu pudesse começar a surtar de nervosismo, Cadu surgiu do meu lado.

— Vamos com seu carro? — ele perguntou quando me viu largar a maçaneta da porta.

— Sim, mas esqueci da chave lá dentro! E o pior é que eu não sei onde tá, porque quem guarda a chave é o Daniel — olhei para o Vitor, um tanto desesperado.

— Cadu — Vitor chamou, entendendo o meu pedido de ajuda silencioso. — Você já avisou a Madu que vamos sair?

— Não. Inclusive, preciso fazer isso.

— Por que você não liga pra Madu e pede pra ela trazer a chave pra gente? Aí você aproveita e já avisa.

— Ok — Cadu tirou o celular do bolso e já foi logo ligando para a namorada.

Olhei para Vitor agradecido e ele apenas sorriu para mim, sem mostrar os dentes. No fim das contas, era bom ter alguém que soubesse dos meus segredos e pudesse me salvar em um momento como aquele. Se não fosse por Vitor resolver a situação, eu provavelmente teria que ir pedir a chave para o Daniel e eu definitivamente não estava preparado para falar com ele ou para ver aquela cara dele.

— Por que tá tão preocupado? — Vitor perguntou para mim enquanto ouvíamos, em silêncio, a conversa de Cadu com a namorada. — Não é só buscar o seu amigo e trazer ele pra cá?

— É que nós meio que discutimos antes de ele ir embora — cocei a nuca, meio sem graça ao pensar que meu melhor amigo realmente gostava de mim. — Então eu tô com medo de que ele mude de ideia sobre eu ir buscar ele e simplesmente decida ir pra casa, bêbado do jeito que tá.

Vitor assentiu, as sobrancelhas levantadas numa expressão preocupada. No mesmo instante, Cadu se juntou a nós, dizendo que Madu estava perto de Daniel quando ele ligou e que ela já estava trazendo as chaves do carro.

Em metade de um minuto expliquei a situação para Cadu, que ainda estava perdido, e não demorou muito mais do que isso para Madu surgir na garagem, a chave balançando barulhenta em suas mãos.

— Aonde vamos? — ela perguntou animada, claramente um tanto bêbada; suas bochechas estavam coradas e os sorrisos, mais soltos.

— Resgatar o amigo bêbado do Luca — Vitor respondeu.

— Uh, missão de resgate em plena madrugada! — ela riu enquanto Cadu pegava as chaves da mão dela.

— Menos, Madu — Cadu olhou para namorada como quem dá bronca. — O Luca tá preocupado.

— Tudo bem — falei, dando de ombros.

Assim que Cadu destravou as portas com o controle do carro, abrimos as portas e entramos. Madu fez birra para ficar no banco da frente, ao lado do namorado, e eu fiquei atrás com Vitor. Me ajeitei entre os dois bancos da frente para que pudesse falar com Cadu conforme o guiava pelas ruas, de acordo com o GPS do celular, e Vitor sentou-se à esquerda.

À medida que saíamos da garagem, tomei um tempo para olhar para os meus amigos ali, comigo, e me senti feliz por um instante. Era engraçado como eu precisava apenas de uma única pessoa que estivesse disposta a me levar até o Matheus, e, de repente, éramos quatro pessoas em um carro.

— Só vou avisando que, tipo, eu não sou muito bom motorista — Cadu falava conforme ia manobrando o carro até a rua em frente de casa; não foi preciso nem dois segundos depois de ele terminar de falar para que a traseira do carro batesse com tudo na lata de lixo que estava ali fora na calçada, ao lado do portão.

Todos olhamos para trás, por causa do impacto barulhento. As sacolas de lixo ficaram espalhadas pelo chão, algumas rolaram da calçada para o asfalto. Madu começou a gargalhar sozinha enquanto Cadu me olhava como se quisesse se desculpar.

— Nós vamos sair pra juntar o lixo? — Vitor perguntou.

— Não temos tempo pra isso agora — respondi e encarei o motorista. — Vamos, Cadu!

— Pra onde?! — ele parecia nervoso. Provavelmente, nunca tinha saído com o carro na rua desse jeito, afobado.

— Pra frente, reto. Eu te aviso quando tiver que virar.

Ele assentiu e começou a dirigir rua a frente. Pelo menos, não havia muitos carros aquela hora da madrugada, o painel do carro indicava duas e quinze da manhã em números acesos em cor laranja.

— Você ligou os faróis do carro? — Vitor perguntou.

— Opa, esqueci — Cadu puxou algum dos dispositivos no painel, mas, ao invés dos faróis, foram os para-brisas que começaram a funcionar, o que fez com que Madu tivesse outra crise de risos enquanto o namorado parecia aflito, apertando aleatoriamente os botões no painel. — Que merda, onde fica o negócio dos faróis?

— Na esquerda do volante — Vitor falou, me empurrando mais para o lado para que ele pudesse se colocar entre os bancos da frente também. — Ali — ele apontou para que Cadu pudesse encontrar o dispositivo certo. — Tem o desenho de uma luzinha.

— Achei, obrigado — ele acendeu os faróis, finalmente, e Madu bateu palmas para o grande feito. — Eu aprendi a dirigir de dia, sabe.

— Sei — Vitor falou, tentando segurar o riso.

— Não se esquece de desligar os para-brisas, Cadu — falei, acompanhando o movimento deles de um lado para o outro, deslizando com um barulho irritante por sobre o vidro seco.

Depois de ele desligar os para-brisas, as coisas pareceram se acalmar um tanto. Paramos no semáforo, no sinal vermelho, e eu avisei Cadu que ele precisaria virar na próxima rua à esquerda.

Vitor voltou a se ajeitar no banco e começou a mexer no celular enquanto eu permaneci acoplado entre os assentos da frente, apoiando a cabeça no banco onde Madu estava sentada e brincando de abrir e fechar o vidro.

— Amor, não coloca a cabeça pra fora da janela, é perigoso — Cadu disse para a namorada, que fez um bico e cruzou os braços.

Escutei Vitor rir e olhei para ele. Acabei rindo também.

Em quinze minutos estávamos chegando ao primeiro posto de gasolina do caminho. Pedi para Cadu ir com o carro mais devagar enquanto analisava os arredores, procurando pelo sedã preto.

— É esse aqui? — Cadu perguntou, olhando através do vidro da janela para o posto.

Era, de fato, um posto amarelo e tinha uma logo com um sol poente, mas não parecia ser aquele.

— Tá faltando o pacote de Doritos inflável gigante — falei. — Não é esse o posto.

— Sua referência é um Doritos gigante? — Cadu me encarou com cara de quem estava me achando o maior maluco.

— Pode ser que não seja um Doritos, mas outro salgadinho — completei. — O Matheus não tava conseguindo ler direito.

— Se ele não consegue ler, pode nem ser um salgadinho. — Vitor pensou alto conforme deslizava o dedo sobre a tela do seu celular, relaxado no banco ao meu lado.

— De qualquer forma, o posto em que ele tá tem uma... — pensei um pouco. — Coisa inflável gigante e vermelha. Não deve ser difícil de identificar.

Cadu suspirou. — Tá bom, então. Pra qual lado fica o próximo posto de gasolina?

— Vira à esquerda na próxima quadra e depois é só ir reto.

— Espero que o seu amigo esteja lá — Cadu disse ao mesmo tempo em que trocava a marcha do carro e acelerava pela rua.

— Eu também — voltei a apoiar minha cabeça no banco do passageiro, pensando em como estaria o Matheus, sozinho e bêbado.

Ficamos em silêncio durante o restante do caminho até que, finalmente, depois de dez minutos, avistamos o segundo posto de gasolina. Logo de primeira, o que chamou minha atenção foi a coisa inflável gigante e vermelha que adornava exageradamente a entrada de veículos.

— É um Doritos mesmo — ouvi Vitor comentar, enquanto eu varria com os olhos o estacionamento da loja de conveniência, o único lugar onde havia alguns poucos carros.

Quando reconheci o modelo do carro que eu estava procurando, comecei a dar pulinhos no assento, ansioso. — Ali! — apontei para que Cadu também visse. — É o carro do Matheus!

Cadu entrou no posto e estacionou o carro a duas vagas de distância do sedã preto. Antes mesmo de o carro ser desligado, eu já tinha destravado e aberto a porta para sair. Com um misto de alívio e preocupação permanente, corri até o carro do Matheus.

Cheguei até a porta do motorista e tentei espiar janelas adentro, mas o vidro era muito escuro. Isso me deixava um pouco inseguro, já que eu não tinha ideia se era mesmo o Matheus que estava ali dentro ou se aquele era o carro de um estranho. Dei batidinhas no vidro com os nós dos dedos, sentindo-me apreensivo, mas nada aconteceu.

Tentei, então, abrir a porta. Eu estava tão convicto de que ela estaria trancada que acabei usando força demais para testar a maçaneta, e quase caí para trás quando a porta se abriu prontamente.

Olhei para dentro do carro e, finalmente, uma onda de alívio se derramou sobre meus músculos tensos. Matheus estava ali, atrás do volante, dormindo feito uma criança exausta depois de brincar a tarde toda.

Me aproximei dele e fitei seu rosto adormecido, pensando se deveria acordá-lo ou simplesmente tentar carregá-lo até o carro de Amora. Optei pela primeira opção, porque, com aqueles meu braços, eu não conseguiria sequer tirar o Matheus do assento, quiçá carregá-lo pela distância de duas vagas. Sem chance.

— Matheus — chamei, admirando seus cílios compridos e escuros sobre as maçãs do rosto coradas.

Sem resposta, cutuquei sua bochecha com o indicador, chamando por seu nome mais uma vez. Ele franziu o nariz e se virou o rosto para o outro lado.

— Matheus! — eu praticamente gritei em seu ouvido, sacudindo-o pelos ombros. — Acorda!

Ele resmungou alguma coisa qualquer e, em seguida, abriu os orbes verdes com lentidão. Quando notou que eu estava ali, franziu o cenho.

— Luca? — a voz do Matheus estava um tanto melhor, em comparação ao que ouvi pelo celular; talvez o sono tenha feito com que o efeito do álcool aliviasse um pouco.

— Oi — sorri de lábios fechados. — Vim te buscar.

— Mas... — ele olhou para os lados, parecendo confuso. — Eu acabei de te ligar. Como você chegou aqui tão rápido?

Soltei uma risada pelo nariz. Ele estava meio perdido no tempo.

— Eu usei meu poder de supervelocidade — respondi. — Agora, levanta daí. Vou te levar pra casa.

Matheus arregalou os olhos para mim enquanto eu tentava puxá-lo, pelos braços, para fora do carro.

— Por que você não me contou que tinha um superpoder?!

Dei risada. — Porque faz parte de ter uma identidade secreta e tal — consegui puxá-lo para fora do carro e coloquei seu braço sobre meus ombros, para sustentá-lo. — Consegue andar? Tá muito tonto?

Ele apenas me encarou com uma careta de genuína confusão. Me senti levemente culpado por estar brincando com Matheus no estado em que ele estava. Mas era meio inevitável, eu estava feliz em vê-lo bem, apesar de muito bêbado.

— Estou brincando — falei, cansado. — Eu não tenho supervelocidade, vim de carro. Agora, anda. Eu não consigo sustentar seu peso por tanto tempo.

Começamos a andar juntos até o outro carro. Quando já estávamos bem perto dele, eu enjoado com o cheiro forte de bebida que vinha, principalmente, da mancha molhada na camisa de Matheus, vi Cadu e Madu abrirem as portas e saírem do carro. Olhei para o Cadu, confuso.

— A Madu quer sorvete — ele disse, revirando os olhos. — Só vamos ali na conveniência rapidinho.

Assenti para ele ao mesmo tempo em que Vitor abria a porta traseira e saía do carro para me ajudar com o corpo quase morto do Matheus, que estava quase cochilando no meu pescoço.

— A coisa tá feia — Vitor comentou enquanto tentávamos fazer Matheus entrar no carro; tudo indicava que ele tinha se esquecido de como dobrar as pernas.

Por fim, o garoto bêbado caiu como um saco de batatas no banco do carro. Ao mesmo tempo em que Matheus se ajeitava melhor sobre o assento, olhei para dentro da loja de conveniência, avistando Madu debruçada sobre o freezer de sorvetes enquanto Cadu a segurava, evitando que ela caísse de cabeça lá dentro. O rapaz que estava no caixa, usando um boné com a logomarca do posto de gasolina, olhava para os dois fazendo careta. Deixei uma risada escapar.

— Vico — olhei para o moreno em pé ao meu lado, encostado na lataria do carro, olhando com divertimento a mesma cena dentro da loja.

— Hm? — ele desviou os olhos até mim.

— Você pode cuidar dele por um minuto? — apontei com o queixo para o Matheus. — Vou ver se ele trouxe alguma mala com roupa extra no carro.

— Ok, vai lá — Vitor assentiu.

O sedã estava fedendo a álcool. No assento traseiro, encontrei uma mochila com algumas roupas, desodorante e um carregador de celular. Não achei nenhuma escova de dentes e deduzi que ele havia se esquecido de trazer uma. Suspirei. Matheus sempre se esquecia de alguma coisa importante quando ia dormir na minha casa ou em qualquer outro lugar que exigisse que ele fizesse uma mala de viagem.

Peguei a mochila, as chaves do carro e da casa dele e, por fim, a carteira no porta-luvas. Tranquei o carro com o controle remoto e levei tudo para o nosso carro. Fiquei com a carteira e, depois de conferir se tinha algum dinheiro dentro, fui até a loja de conveniência atrás de uma escova de dentes. Eu até compraria com meu dinheiro para não gastar o de Matheus, mas eu sequer tinha pensado em dinheiro quando saí de casa. Além do mais, era justo que ele pagasse pela própria escova.

Dentro da loja, o ar condicionado parecia estar ajustado para dois graus negativos. Enquanto eu caminhava entre as prateleiras, dei uma olhada no casal perto do freezer de sorvetes. Madu estava indecisa sobre qual dos sorvetes levar, ou talvez quisesse todos eles. Cadu estava ficando impaciente com a namorada e aquilo era mesmo engraçado de se ver, já que ele, normalmente, era bem tranquilo com qualquer coisa que estivesse acontecendo.

Depois da seção de salgadinhos, Cup Noodles e afins, encontrei as prateleiras de produtos de farmácia. Passei pela parede de shampoos e tintas para cabelo e, assim que avistei um enxaguante bucal numa das prateleiras mais à frente, andei apressado até lá.

Procurei uma escova barata, já que estava comprando com o dinheiro do Matheus sem que ele soubesse. Não havia muitas opções, e a menos cara era uma escova infantil com um adesivo do Vila Sésamo. Peguei aquela mesmo e fui em direção ao caixa.

— Boa noite — o atendente me cumprimentou, assim que eu coloquei a escova de dente sobre o balcão.

Cumprimentei o rapaz, em retorno, ao mesmo tempo em que abria a carteira do Matheus para pegar o dinheiro.

Cadu se aproximou do caixa com três sorvetes em mãos, Madu vinha logo atrás com seu sorvete já aberto e um sorriso de satisfação em seu rosto bonito, lambuzado de chocolate.

— Peguei esses aqui pra nós — Cadu jogou os sorvetes sobre o balcão.

— Pode cobrar tudo junto — falei para o atendente, que assentiu conforme passava a embalagem da escova de dentes pelo leitor de código de barras.

— Vai pagar pra gente? — Cadu me encarou, contente.

— O Matheus vai — respondi, com um sorriso.

Cadu deu risada, olhando para carteira em minhas mãos. Ele sabia que não era a minha, já que sempre íamos juntos comprar algo para comermos durante o intervalo das aulas.

— Ele nos deve uma, mesmo — Cadu comentou e eu concordei, assentindo.

— Algo mais? — o rapaz do caixa me perguntou.

— Você incluiu o dela? — apontei para a Madu, entretida com seu sorvete, ao lado do namorado.

Ele assentiu e, logo então, entreguei a quantia certa de dinheiro para ele.

— Tudo bem se o carro do meu amigo ficar a noite toda aqui? — perguntei para o rapaz de boné enquanto ele separava o meu troco.

— Acho que sim, isso já aconteceu antes — ele respondeu, despejando algumas moedas em minha mão direita. — Ele tá bêbado demais pra dirigir?

Fiz que sim com a cabeça. — Viemos buscar ele, mas só temos um motorista — olhei para o Cadu; ele estava mais para um meio-motorista.

— Bom, acho que não tem problema, não — ele nos deu um sorriso de lábios fechados enquanto me entregava a sacola de plástico com nossas compras.

— Ok, então — peguei a sacola. — Obrigado.

Voltamos para o carro e, já dentro dele, distribuí os sorvetes entre nós. Não estava muito seguro sobre Cadu tomar sorvete enquanto dirigia, mas ele disse que tinha tudo sob controle, então apenas confiei nas habilidades dele, embora a lembrança da lata de lixo caindo sobre a calçada de casa tivesse surgido na minha mente como um alerta.

Conforme tomava meu sorvete de chocolate, observei Matheus cochilando ao meu lado, com sua bochecha prensada contra o vidro da janela. Madu insistiu em ligar o rádio e Vitor abaixou o vidro de sua janela, alegando que Matheus estava deixando o carro com cheiro de bebida.

Eu apenas me larguei sobre o assento, sentindo a brisa da madrugada circular dentro do carro. Fechei os olhos, descansando a cabeça no encosto. Madu cantava no banco da frente a música de refrão enjoativo que tocava no rádio, e, de certa forma, aquilo me fez bem. Eu não queria pensar em nada e toda aquela agitação divertida tinha um efeito estranho e contraditório que me acalmava.

Senti um ombro encostar-se ao meu e abri os olhos, encontrando Vitor ao meu lado, me olhando como se tentasse ler meus pensamentos.

— O que foi? — perguntei.

— O seu sorvete vai derreter se você ficar aí viajando.

Olhei para o picolé de chocolate. Eu já tinha dado três mordidas e, ainda assim, parecia sem gosto para mim.

— Eu não estou muito afim de sorvete agora — olhei de volta para o Vitor. — Você quer?

Ele negou com a cabeça. — Nem terminei o meu ainda.

Olhei para o Matheus do meu outro lado. Ele provavelmente iria querer o sorvete se estivesse acordado, deveria estar a muito tempo sem comer. Desviei os olhos para a Madu cantante, ela já tinha tomado todo o dela.

— Madu, quer meu sorvete? Eu não quero mais.

Ela direcionou seus olhos brilhantes para mim, contente, e pegou o picolé da minha mão estendida.

— Obrigada! — ela disse, com um sorriso, e depois se virou para frente outra vez, continuando a cantar.

Suspirei. Eu queria estar feliz como ela. Mas, se eu bebesse, provavelmente acabaria destruído como o Matheus, e não bobo-alegre como a Madu. Então era melhor nem pensar em beber quando eu voltasse para a festa em casa. Precisava me ocupar em cuidar do Matheus para distrair a minha mente e depois... Eu veria o que fazer.

Voltei a olhar para o Vitor e ele continuava a me encarar enquanto tomava seu sorvete.

— O que foi agora?

Ele soltou um pequeno riso, mas seus olhos estavam sérios enquanto olhava para mim.

— Como você tá? — ele perguntou em voz baixa, encarando Cadu pelo espelho retrovisor, por um segundo, antes de fixar seu olhar em mim.

— Ah — pensei, encolhendo os ombros. — Não sei.

— Vai ficar tudo bem, você vai ver — ele sorriu e eu tentei retribuir, assentindo.

Eu realmente não sabia ao certo como eu estava. Talvez inteiramente muito triste, ou meio triste e meio decepcionado. Um pouco assustado com tanta coisa acontecendo, muito provavelmente. Mas havia algo diferente que, aos poucos, estava colorindo meu peito de um jeito forte de certeiro. Eu não sabia que sensação era aquela. Tentei compará-la com qualquer outra coisa que eu já havia sentido, e, entres tantas cenas competindo dentro da minha cabeça, me lembrei de algo em especial.

Quando eu era menor, costumava passar as férias com meus avós. Meu avô frequentava um clube esquisito para velhos que já tinham feito parte do exército e que não conseguiam superar o fato de não serem mais necessários por lá. Ele ficava o dia todo fora falando sobre a guerra e, durante o café da manhã, antes de sair, sempre me dizia o que eu deveria fazer enquanto ele estivesse fora. Jogar futebol com os meninos da rua era prioridade. Ele dizia para a vovó que me proibisse de desenhar com meus lápis de cor ou de ajudá-la a cozinhar, porque eu deveria crescer “como um garoto de verdade”.

Eu passava o dia todo desenhando. E, à tarde, vovó me deixava fazer bolinhos com o formato das letras do meu nome e de animaizinhos. Quando o meu avô chegava do clube e me perguntava o que eu tinha feito, vovó sempre me acobertava, dizendo que eu tinha ficado o dia todo chutando bola e me sujando como um porco na lama. O vovô ficava orgulhoso de mim e nós três jantávamos felizes.

Em um dia ensolarado e fresco, enquanto eu terminava minha obra-prima de tinta guache, debruçado sobre os papéis no chão do meu quarto, meu avô chegou em casa mais cedo. Ele não me viu brincando com os outros meninos na rua em frente a casa, e, já irritado, subiu as escadas até meu quarto.

Foi uma bronca e tanto. Ele me disse muitas coisas que eu nem mesmo entendia para a pouca idade, sobre coisas certas e erradas que um garoto deveria fazer. Enquanto ele cuspia seus gritos sobre mim, com a vovó me olhando cabisbaixa da porta do quarto, eu encarei aquele meu último desenho, sobre o piso de madeira. Era tão lindo. A essa altura, eu já nem me lembrava do que eu havia desenhado, mas tinha tons claros de rosa e lilás que faziam meu coração se aquecer, e lembravam o céu à tardinha e algodão doce.

Naquele instante, eu tapei meus ouvidos para o meu avô e me permiti sentir orgulho de mim mesmo, por fazer uma pintura tão incrível. Eu não me importei com ele, só comigo. Eu sabia que eu gostava das tintas coloridas, que mais tarde, naquele dia, foram queimadas na lareira pelo vovô, e sabia que aquele que preferia pintar e fazer bolinhos com a vovó era eu mesmo. As farpas que o vovô lançava sobre mim naquela bronca apenas me ajudavam a perceber isso.

Apesar de estar sendo criticado por gostar do que eu gostava, eu continuava sendo verdadeiro comigo mesmo. Não saia para jogar futebol com os outros garotos só para agradar o vovô.

E, naquela madrugada, eu sentia algo parecido com o que tinha sentido durante aquela tarde difícil na infância. Se estava doendo, era porque eu estava sendo eu mesmo e, isso, de vez em quando, poderia machucar mesmo. Mas, ao mesmo tempo, trazia uma sensação de verdade.

Era verdade que crescia no meu peito.

— Chegamos — ouvi Cadu anunciar, assim que estacionou o carro na garagem de casa, e só então eu acordei dos meus pensamentos.

Olhei para trás, através do vidro do porta-malas, e enxerguei, na calçada, a lata de lixo caída. Suspirei e pedi para o Vitor levar o Matheus para o meu quarto enquanto eu ia limpar a bagunça do nosso excelentíssimo motorista que, apesar dos apesares, tinha salvado a vida do meu melhor amigo.

Depois de ajeitar todas as sacolas de lixo, com os pensamentos meio avoados ainda, voltei para casa.

Estava me sentindo levemente aliviado por não ter esbarrado ou sequer vislumbrado Daniel durante o difícil caminho até meu quarto. Seria mais rápido chegar até lá se não fosse a quantidade de pessoas bloqueando a passagem, insistindo em dançar como se ainda fossem dez da noite.

Meu quase alívio durou pouco. Assim que terminei de subir as escadas e me virei no corredor para chegar ao meu quarto, me deparei com Daniel na porta, acompanhado de Vitor e Matheus. Este, que já estava bem acordado, encarava Daniel como se quisesse matá-lo.

Somos dois.                                        

Pensei em dar meia volta e fugir da presença de Daniel pelo resto da noite e pelo resto da vida, mas eu precisava ajudar o Matheus e livrar o Vitor de tanto trabalho que eu estava dando a ele.

— O que estão fazendo aqui na porta do meu quarto? — perguntei, já irritado, ao me aproximar. Não olhei para Daniel porque, se fizesse, talvez acabasse com minhas mãos em seu pescoço. Não no bom sentido.

— Estava trancado — Vitor me olhou como se quisesse se desculpar por ter chamado o Daniel até ali. — Precisei chamar o Daniel porque ele tem as chaves.

— Vou deixar todas as chaves com você agora, é mais prático — Daniel disse a mim à medida que tirava as várias chaves que tinha nos bolsos.

Não disse nada sobre isso, não queria dirigir à palavra ao demônio. Aquele perfume dele estava me irritando tanto.

Enquanto Daniel abria a minha porta, parei para analisar o estado do Matheus. Ele parecia meio tonto ainda, um tanto irritado ou incomodado, talvez.

— O que foi? — Matheus me perguntou, notando meu olhar.

— Tá tudo bem? Ainda tá tonto?

— Hm — ele pensou um pouco, franzindo o cenho. — Não tanto quanto antes.

— Você já tá falando menos como um bêbado e mais como uma pessoa normal — falei, amainado. — Você só precisa de um banho e vai ficar melhor.

Entramos no quarto e eu fingi que não percebi quando Daniel quis deixar as chaves comigo, me ocupando em deixar as coisas do Matheus sobre a bancada de estudos. Prontamente, Vitor pegou elas para mim e as deixou sobre o criado mudo. Depois, seguiu Daniel para fora do quarto, de volta para festa, depois de me lançar um olhar de me-chame-qualquer-coisa.

Reuni tudo o que Matheus precisava para um banho e o levei até o banheiro do corredor.

— Consegue tomar banho sozinho sem problemas? — olhei, hesitante, para o Matheus em sua camisa manchada de bebida alcoólica. — Não quero que escorregue e bata a cabeça.

— Eu tô bem melhor, não se preocupe — sua voz era baixa, quase tímida; imaginei que Matheus já estivesse voltando a si e, consequentemente, estivesse envergonhado com aquela nossa conversa tensa que foi, basicamente, ele se confessando para mim.

— Ok, vou te esperar lá no meu quarto — me virei para sair do banheiro.

— Você devia ir lá aproveitar o resto da festa com seus amigos — Matheus claramente estava se sentindo um peso.

Me virei para ele novamente.

— Eu não aguento mais essa festa — esfreguei o rosto, cansado. — Eu realmente prefiro te esperar no meu quarto. Na verdade, é uma desculpa pra eu não precisar voltar pra lá.

Achei que falando aquilo eu faria o Matheus se sentir menos culpado, mas ele pareceu ainda mais pesaroso ao juntar as sobrancelhas numa expressão de angústia.

— Desculpe — ele mordeu os lábios. — Eu estraguei tudo.

Sacudi a cabeça em negação — Você não fez absolutamente nada de errado, as coisas estão assim por causa do Daniel que...

Interrompi a própria fala quando percebi que estava falando do garoto que eu gostava para o garoto que gostava de mim. Isso, de todas as formas, parecia estranho e errado.

— Eu quero que você fale comigo como sempre falou — Matheus me pediu, quando percebeu que eu fiquei sem jeito ao citar o Daniel. — Seria uma droga se você parasse de contar tudo pra mim, sério.

Sorri brevemente para ele. — Vamos conversar depois, tá bom? Agora só tome o seu banho e fique cem por cento lúcido.

Ele assentiu e, logo então, o deixei sozinho no banheiro, voltando para meu quarto.

Assim que fechei a porta, me atirei na cama. Eu, definitivamente, estava exausto. Física e mentalmente. Queria simplesmente pular para a parte em que eu me sentiria feliz outra vez, sem que eu precisasse me sentir tão destruído assim.

Foram coisas demais para uma única noite.

...

Finalmente, o silêncio. O DJ tinha acabado de sair pela porta da frente e deixava para trás o zunido da música alta nos meus ouvidos. Meu estômago estava embrulhado e meu corpo, dolorido. Sem falar na dor de cabeça, que começava com pontadas nas têmporas e se espalhava na região dos olhos. Eu odiava passar a noite em claro porque sempre me sentia como se tivesse sido atropelado por um rolo compressor. E, aparentemente, estava todo mundo compartilhando da mesma sensação, já que, para onde quer que eu olhasse, só via pessoas estiradas nos sofás e até mesmo no chão, dormindo, beijando ou apenas conversando. Felizmente, a maioria já tinha ido embora, e o pessoal que restou apenas estava bêbado e sonolento demais para fazer como os outros.

Depois de passar pela sala, que mais parecia com uma zona pós-guerra, fui até a cozinha a fim de pegar uma garrafa de água gelada e uns comprimidos para dor de cabeça. Com meu andar preguiçoso, meus chinelos estalavam no piso. Eu tinha tomado um banho depois de deixar Matheus bem acomodado no meu quarto e, finalmente, troquei de roupa por uma bem mais confortável para dormir.

Assim que passei pela porta aberta da cozinha, duas cabeças se viraram em minha direção, interrompendo uma conversa. Eram duas garotas, de aparência cansada, que estavam sentadas nas banquetas altas em frente à bancada e balançavam seus pés descalços de unhas bem-feitas no ar. Assim como era com a maioria das pessoas que estavam em casa nessa noite, eu não fazia ideia de quem eram elas.

— Oi — eu disse, notando que elas haviam colocado seus sapatos sobre o granito da bancada e aquilo era meio nojento.

— Oi, Luca — uma delas falou e ambas sorriram, simpáticas.

Tentei retribuir o sorriso, mesmo que eu estivesse incomodado com aqueles sapatos sujos no balcão da minha cozinha. Fui até a geladeira, escutando a conversa das garotas sem realmente prestar atenção no que diziam. Eu estava me sentindo estranho com o fato de não fazer ideia de quem eram aquelas meninas e, mesmo assim, ser reconhecido por elas. Geralmente acontecia o contrário comigo. Principalmente antes de conhecer o Matheus e ser o tipo de pessoa tímida e invisível na escola. E, por falar em Matheus, achei que seria útil levar uma garrafa com água e alguns comprimidos para ele também, já que ele, provavelmente, acordaria com a pior ressaca da vida dele.

Com duas garrafinhas de água e uma cartela de Dorflex em mãos, me despedi rapidamente das garotas e voltei para o segundo andar. Entrei com o maior cuidado em meu quarto, fazendo silêncio para não acordar o Matheus, e deixei a água e o comprimido no criado mudo ao lado da cama, esperando que ele notasse ao acordar. Suspirei ao fitar o garoto esparramado no colchão, vestindo uma das minhas camisetas preferidas para dormir. Eu queria muito me aconchegar na maciez das minhas cobertas e do meu travesseiro, era tudo o que eu mais queria depois de um dia lotado de acontecimentos como aquele. Mas, infelizmente, não ia dar. Deixei o Matheus no meu quarto e, depois de pegar as chaves da porta, caminhei até a suíte do meu pai e de Amora.

Destranquei a porta com as minhas chaves, um truque que Daniel tinha me ensinado indiretamente quando ele mesmo invadiu meu quarto usando as chaves do quarto dele (as fechaduras eram todas iguais dentro de casa). Tomei os comprimidos e vários goles de água gelada antes de, finalmente, me atirar sobre a cama de casal exageradamente grande.

Praticamente, supliquei para o meu anjo da guarda me fazer dormir imediatamente. Eu não estava afim de encher minha cabeça daqueles pensamentos terríveis que se tem antes de dormir. Os passarinhos já cantavam lá fora e, através da porta de vidro da sacada, dava para ver o céu ganhando uma tonalidade bonita e melancólica de um rosa quase lilás, bem longe num horizonte que parecia demasiado distante. Me lembrei mais uma vez daquela tarde em que o vovô descobriu que eu não jogava futebol coisa nenhuma; a imagem daquela minha pintura infantil rosa-lilás ficava mais nítida conforme eu fitava o céu. Senti falta da vovó.

Me virei na cama, embolando meu corpo no edredom, e fechei os olhos com força antes que eu começasse a chorar. Mas foi meio que inevitável. Minha cabeça estava latejando e, talvez, seria ainda pior segurar o choro que lutava para sair. Então, apenas deixei que as lágrimas caíssem, molhando o travesseiro e o meu cabelo. Chorei, naquela quase manhã, tudo o que eu não havia chorado nos momentos em que me amaldiçoei por ter nascido um garoto que gostava de outros garotos. Senti que todos os choros segurados estavam se libertando do meu corpo naquele momento. E, mais do que nunca, eu havia entendido que, por mais perdido e humilhado que eu pudesse me sentir, aquele era eu. O eu-mesmo com o qual eu teria que conviver pelo resto da vida. E apenas seria muito idiota tentar fingir para mim mesmo e me maltratar por ser do jeito que eu era. Que ridículo eu seria se, depois de tudo, continuasse a mentir para mim mesmo, tendo algum tipo de esperança de cumprir com as expectativas do meu pai e acabar namorando alguma garota por obrigação. Eu só sabia que não queria mais isso. Não queria mais nada que fosse de mentira.

Acordei com uma movimentação na cama, levemente atordoado, imaginando se já era oficialmente de manhã. Ao abrir os olhos, notei que o quarto estava escuro ainda, como antes de eu cair no sono. Logo, não deveria fazer nem meia hora desde que eu havia conseguido dormir, o que era péssimo, porque eu realmente só precisava dormir naquele momento de merda da minha vida.

Usei todas as minhas reservas de força de vontade para manter os olhos abertos e me virei na direção em que eu sentia o colchão afundando aos poucos e sem nenhuma delicadeza. Pousei os olhos sobre os cabelos escuros e bagunçados e, instantaneamente, meu peito se contorceu, como em um nó apertado. Me sentei de imediato enquanto encarava o Daniel se ajeitando na cama, como se estivesse tudo bem se deitar ali, comigo, depois do que ele tinha feito. Ele amaciou o travesseiro, dando batidinhas, e, logo então, deixou o corpo cair sobre a cama, o peso do movimento balançou as molas do colchão.

Daniel se ajeitou confortavelmente, de olhos fechados, abraçando o travesseiro. Fiquei esperando ele abrir os olhos, mas, ao que tudo indicava, ele acabaria dormindo ali em alguns instantes. Com certo ódio reprimido, pigarreei alto. Daniel abriu os olhos depressa, como se tivesse levado um susto.

— Ah, nossa, você tá acordado — ele se colocou sentado também, esfregando os olhos, com sono.

— Não tinha como continuar dormindo com essa sua brutalidade pra deitar na cama — reclamei, emburrado.

— Foi mal, eu tava com tanto sono que nem pensei.

— Você não pensa em ninguém além de você, seu idiota — assim que falei, Daniel fez uma careta de confusão, como se realmente não entendesse sobre o que eu estava falando, aquele fingido. — Por que não tá no seu quarto? Não quero ter que dormir com você nem ver essa sua cara de mentiroso!

Tentei empurrá-lo para fora da cama, num ato infantil e impensado, mas Daniel agarrou meus pulsos antes que eu pudesse tocá-lo. Ele me encarou de perto. Seu cheiro de sabonete e seus olhos claros na penumbra da madrugada me acertaram em cheio, e senti meus olhos se encheram de lágrimas. Daniel pareceu assustado com isso.

— Luca? — Daniel sussurrou, sua respiração chocando-se contra meu rosto. — O que aconteceu?

— O que aconteceu?! — repeti, cínico, sentindo um ódio descomunal. — Você ainda tem coragem de perguntar um negócio desses?!

Me desvencilhei do aperto de Daniel e me coloquei para fora da cama, afobado, pronto para sair dali. Andei a passos duros até a porta do quarto, mas, antes que eu pudesse, de fato, chegar lá, Daniel correu até mim e se colocou a minha frente, me impedindo de passar.

— Aonde você vai?

— Pro meu quarto — falei, tentando contorná-lo.

— Mas aquele seu amigo não tá lá? — ele insistia em entrar na minha frente para cada desviada que eu tentava dar.

— Tá, mas e daí?

— E daí que você não vai dormir com ele! — ele disse aquilo num tom de obviedade ofendida que conseguiu me deixar mais irritado do que eu já estava.

— Você ainda tem a cara de pau de dar uma de ciumento... — respirei fundo, tentando me controlar para não dar uma naquela cara de falso inocente. — Por que você não vai ficar com ciúmes daquela piranha que você tava beijando, hein, Daniel?

Ele arregalou os olhos. — Você viu aquilo?

Ri, sem humor algum. Era impressionante a capacidade do Daniel de ser um idiota.

— Não tinha como não ver vocês dois se agarrando no meio da sala, Daniel.

— Luca, aquilo foi... — não deixei que ele terminasse de falar, meu estômago não iria aguentar as desculpas que ele me faria engolir.

— Não quero saber! Me deixa sair! — tentei contorná-lo mais um vez, mas Daniel foi mais rápido e me agarrou pelas pernas, tirando-me do chão e jogando meu corpo sobre seu ombro como um saco de batatas. Obviamente, comecei a me sacudir como um louco.

— Me larga! — berrei, socando suas costas. — Me põe no chão, seu mentiroso de merda!

Daniel não disse nada, apenas me levou de volta para cama e me largou sobre o colchão. Antes que eu pudesse fugir em direção à porta novamente, Daniel correu até lá e girou a chave, nos trancando ali dentro. Fiquei sentado, no meio da cama, encarando Daniel enquanto ele se aproximava, imaginando qual seria sua próxima ação.

Para o meu estranhamento, ele simplesmente se sentou na ponta do colchão, de costas para mim, e fitou a parede por alguns segundos. Fiquei olhando suas costas largas, imaginando o que ele estaria planejando fazer. Logo então, ele virou a cabeça para trás e passou a me encarar com seus cinzazuis. Franzi o cenho ao perceber sua mudança de expressão. Daniel parecia aflito, preocupado, eu não sabia definir. Ele umedeceu os lábios e, em um tom de voz sério e grave, falou:

— Nós precisamos conversar.


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Notas finais do capítulo

Escrevo diferente agora. Eu reli toda a história (não só uma vez), e em cada releitura eu encontrei erros. Nenhum grotesco, aleluia, mas a questão é que eu, agora, faria diferente. Principalmente sobre períodos longos demais e parágrafos que são blocos gigantes. Mas o Luca também mudou, ele sofreu um bocadinho (sofreu horrores, terrores!), e todo mudo muda quando sofre. E também quando fica feliz, também quando fica triste e porque a vida é assim. Então acho justo que essa mudança de escrita que vocês viram (e verão) acompanhe a mudança do nosso protagonista. E é por isso que não vou “consertar” nada dos capítulos anteriores. Mas talvez vocês não vejam tanta mudança a partir desse capítulo, afinal, a essência continua a mesma. Ainda sou eu, bem aqui, sentada por horas a fio tentando contar pra vocês o que o Luca sente. Ainda sou eu tentando vencer os monstros que sempre estiveram escondidos (nem tanto) atrás do meu processo de escrita. Eu entendo que demorei, que decepcionei, que devo ter deixado gente até com raiva de mim. Mas hoje eu entendo que eu não sou como aqueles escritores que ganham a iluminação divina e escrevem tão facilmente como se tudo estivesse jorrando e fazendo sentido. Eu não sou assim, e eu não devo pedir desculpas por ser do jeito que eu sou. Mas devo pedir desculpas por não ter me esforçado mais. Por ter sumido sem aviso prévio ou póstumo. Por isso: minhas sinceras desculpas. Mas, como prometi, eu nunca abandonei Além de Irmandade. Minha primeira e eterna história do coração. Estive, por todo esse tempo, escrevendo trechos, planejando capítulos, montando o plot (que, apesar de clichê, tem bordado nele minha alma e originalidade). Foi aos pouquinhos. Muita coisa eu apaguei de raiva. Muita coisa chorei de amor por ter ficado um pouquinho do jeito que eu queria. E estou aqui, voltando. O motivo por que parei de atualizar tem a ver com meu lado fraco: não sei lidar com sugestões. É patético como sofro pelos meus leitores, os quais eu venero. Eu sinto que eu preciso agradar, que eu preciso ser o que vocês querem que eu seja. E mesmo quando eu leio algo positivo, eu acabo me cobrando a fazer algo que possa me superar. Mas eu devo ser apenas quem eu consigo ser. Algo entre o muito simples e o extremamente sincero e detalhado. As vezes monótono. Essa sou eu. E essa história é uma jornada sobre ser quem você é, sem interferências. Por isso, peço a compreensão daqueles que gostam de comentar e não tiveram suas respostas. Estou postando, agora, para cumprir o meu dever comigo mesma, por amor puro incondicional por cada pedaço dessa história. Serei grata se vocês continuarem acompanhando. Serei grata se simplesmente entenderem como me sinto bem aqui, agora, sentada na mesa da cozinha em pleno 25 de dezembro, escrevendo isso no notebook do meu pai porque o meu estragou de vez. Sozinha, imaginando se eu conseguirei, de verdade e como eu tanto quero, anexar esse text(ã)o nas notas finais. Eu já amo todos aqueles que leram até aqui e que se satisfizeram com essa justificativa incerta e que sentiram meu coração se desculpando através de cada letra. Agradeçam também ao @Hiro, que nunca me permitiu sequer pensar em desistir, devo muito a ele, um amigo que eu consegui pelos comentários dessa história e que eu passei a amar como se fosse meu irmão. Obrigada a todos que pensaram com carinho em Além de Irmandade num dia aleatório e por acaso, quando viram um garoto loiro de cabelo comprido ou um gostosão que lembrava o Daniel. Até o próximo capítulo (não coloquem pressão!). Beijos mil.

P.S.: Vou responder todos os comentários assim que eu puder!



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