Entre Nós escrita por Aline Herondale


Capítulo 5
Qualidades Humanas


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem.



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“E assim, quanto mais tarde me procure

Quem sabe a morte, angústia de quem vive

Quem sabe a solidão, fim de quem ama”



Tudo começou com Ange e Theo fazerem a caminhada para a escola de mãos dadas. Todas as manhãs, tanto na ida quanto na volta, ao final do dia. Não que o ato de segurarem as mãos fosse algo incomum mas, normalmente, principalmente no regresso para casa, Ange tinha o costume de andar na frente, espantando os pombos, cantando uma música nova que aprendera e catando flores, enquanto Theo estava sempre com o rosto enfiado no novo gibi emprestado pela professora. Mas, à quatro semanas, ambos vinham cabisbaixos, agarrados cada um à pequena mãozinha do outro, como se, se separassem poderiam perder totalmente o rumo de casa.

E não só isso como também Theo começou a fazer birra para ir à escola. Ange sempre deixou claro que nunca gostara de ir para o local de ensino, mas Theo nunca proferira uma palavra contra, nem mesmo fazia uma simples carreta. Ele compreendia que deveria ir para lá então era sempre o primeiro a ficar pronto. Escolhia os brinquedos que gostaria de levar naquele dia e se sentava no velho sofá da sala, esperando Dona Eva chegar para levá-los para a creche - localizada, felizmente, atrás da sua casa.

Agora Theo reclama dos botões da camiseta e o fato de estar muito quente para usar o casado da escola, mas frio demais para não usar nenhum. Ele parara de levar brinquedos e seguia Ange ainda dentro da casa, enquanto ela se atrapalhava para se arrumar.

Ange ainda reclamava mas havia diminuído suas objeções de modo considerável. Parecia que começava a compreender a necessidade de frequentar uma escola, porém Corrine tinha a impressão de que a menininha andava mais cabisbaixa do que o normal e pouco comunicativa.

Mudanças comportamentais acontecem a todo momento, principalmente na fase de crescimento, mas isso seria algo que ela poderia deixar de lado? Ou deveria procurar mais à fundo? Corrine se questionou incontáveis vezes, mas não conseguia chegar numa resposta.

Dona Eva sempre fora muito amiga da mãe dos pequenos gêmeos, e sempre que podia passava tardes com ela, conversando sobre tudo. Porém, ultimamente Graydon havia viajado cada vez menos e ficado em casa numa freqüência maior, conseqüentemente causando a ausência de Dona Eva. E se não bastasse, estavam entrando na primavera, a época propícia para as flores, e a sua floricultura passou a exigir mais tempo.

Como Corrine sentia falta da boa Senhora...





— Ange querida, vamos, está quase na hora! Dona Eva já chegou! – Corrine gritou pela menininha que ainda não havia terminado de escovar os dentes. Seus materiais, assim como os do seu irmão gêmeo, já estavam sobre a mesa da cozinha mas nada dos pequeninos estudantes.

Não houve resposta.

Theo estava com Ange no banheiro, sentado no vaso, balançando suas perninhas enquanto observava a irmã mover a escova sobre os dentes de modo preguiçoso.

Ele não dizia mas estava preocupado. Ange parecia mais magra e seu rosto não brilhava mais de alegria e emoção como antigamente, como quando ele se lembrava toda vez que acontecia quando ele olhava para ela. Agora sua irmã parecia doente e cansada.

E, pelo reflexo do espelho, ele viu os olhinhos dourados da sua gêmea começarem a brilhar mas por conta das lágrimas que se formava. Rapidamente ele se levantou e caminhou até ela.

Ange abaixou a cabeça para cuspir e enxaguar a boca. Quando levantou seu irmão estava parado ao seu lado, a encarando, e ela não conseguiu conter as grossas gotas: chorou piamente. Theo quase chorou também – quase – mas apenas abraçou a cabeça da irmã e deixou que ela molhasse seu uniforme. Ele já compreendia que, mesmo gêmeos, haviam coisas das quais os tornavam únicos.

Ange, por exemplo, era extremamente geniosa e um tanto explosiva, mas incrivelmente sensível e delicada com tudo e todos, podendo chorar por qualquer motivo quando abaixava a guarda. E por isso ele não chorou, Theo não podia. Tinha que se passar por forte, pelo menos o mais forte ali, naquele momento, para conseguir reerguer Ange.

Por isso quando escutou passos em direção ao banheiro em que estavam, rapidamente ele afastou Ange e puxou a toalha, lhe entregando.

— Vamos, a mamãe ta´ chamando. Limpa o rosto, rápido. – Disse e saiu do banheiro, barrando Dona Eva um passo antes dela entrar no cômodo.

— Meu querido estamos chamando vocês a tempos, vamos, vamos! – Dona Eva disse, pegando na pequena mãozinha do loiro e lhe puxando para a porta.

Minutos depois Ange aparece com o rosto limpo.

Se despediram da mãe com um selinho, cada, e partiram.







— Não, obrigado. – Era a terceira vez que Theo negava de modo educado o doce oferecido por Maisie, mas ela se negava a sair da frente do pequeno loirinho sem que ele aceitasse o seu agrado.

A cada quarenta minutos, havia a troca de matéria lecionada e a professora saia para tomar uma água e pegar os matérias necessários da próxima aula, na sala de professores. Isso durava, em média, menos do que dez minutos, mas era o tempo necessário para Ange ter a sensação de que sua cabeça fosse explodir.

Desde o dia em que Ange contara a Theo o que Maisie fazia com ela, ele passou a negar os docinhos oferecidos pela colega e passava todo o recreio ao seu lado. Haviam até trocado de lugar, para o canto da sala, próximo à janela. E isso incomodou Maisie, que insistia para que Theo retornasse ao seu lugar de antigamente, ao seu lado.

No fim, Ange não sabia se contar à Theo, o que acontecia com ela, havia sido boa coisa, ou se ela tivesse se mantido calado, com o tempo, as meninas malvadas teriam a esquecido e a deixado de lado. Agora, todos os alunos sabiam que Maisie brigava com Theo por culpa dela, e que, consequentemente, Maisie não gostava de Ange. Então, todos também não gostavam mais de Ange e aguardavam o veredicto quanto à Theo.

— Não, Maisie. Obrigado! – Theo repetiu, claramente perdendo a paciência.

— Porque? Porque você não quer? Pega logo!

— Não. Não quero. – Ele nega e lhe da as costas para tornar a olhar sua gêmea, que se mantinha quieta e cabisbaixa.

— Então me dá Maisie, que eu quero. - Alguém gritou atrás deles.

— Não. Dá pra mim, por favor! - Logo começou um alvoroço e todos pediram de uma vez.

Os três já haviam conseguido uma pequena platéia, em decorrência de Theo negar o famoso doce de Maisie Ewing. Por sua família ser dona de uma doceria bastante invejada do bairro, e por poucos poderem se dar ao luxo de comê-los - por conta da baixa renda e do alto custo dos docinhos – muitos dos alunos já olharam torto para Ange. Eles não deveria negar o agrado e sim se sentir honrado por estarem ganhando algo que tantos outros fariam qualquer coisa para ganhar.

Certo?

Maisie cruza os braços, irritada.

— Mas porque? O que eu te fiz?

Theo não responde e tão pouco se vira. Encarava a irmã imóvel, sentadinha na carteira, e observou ela apertar seu pequeninos punhos, até os nós dos seus dedos ficarem brancos. Ele não gostou nada disso.

— Theo, pega. Agora! – Sem paciência Maisie puxa o pequenino, o virando de uma vez. Assustando tanto ele quanto a sua irmã.

E algo surpreendente acontece.

Primeiro foi ouvido o barulho do tapa, depois um véu colorido chamou a atenção de todos e a sala ficou em silêncio. Ange nunca fora muito de falar, mas tão pouco deixava de responder ou perguntar o que queria e precisava na sala de aula. Era participativa porém discreta. E vê-la em pé, com o braço estendido e os olhos fuzilando Maisie foi algo novo. Não havia mais traços de insegurança ou medo mas sim de determinação - um vislumbre da mulher que viria a se tornar anos mais tarde.

Ange era “quieta”. E as quietinhas não tinham o costume de se meter na conversa de ninguém e muito menos de defender os outros. E Ange, menos ainda, ia de cabelo solto para a escola, justamente pela peculiaridade das suas mechas - algo que a mãe insistia em chamar de “maravilhoso” e “único” - por conta cor e do tamanho. Já passava da cintura e nem mesmo Corrina sabia dizer ao certo que cor ele tinha. No escuro ficava mais próximo do castanho e no sol se tornava um ruivo alaranjado, com mechas em mel, às vezes podendo até enxergar algumas em tons de rosa, porém tendo a raiz a cor de loiro platinado.

Então, sim, foi algo surpreendente. Tanto que Maisie demorou alguns segundos para processar que Ange havia se levantado e batido na sua mão, fazendo o doce voar para o outro lado da sala, ao mesmo tempo em que protegia o irmão com o corpo. Mas quando ela se deu conta não se permitiu congelar e fuzilou a gêmea com suas orbes negras.

Ouviu-se um coro de desaprovação do ato, quando o bombom bateu e rolou no chão.

— SUA DOIDA, PORQUE VOCÊ FEZ ISSO? MEU DOCINHO! EU VOU CONTAR PARA A PROFESSORA! – Maisie gritou e correu para pegar o bombom do chão. Por um momento Ange se arrependeu do que fez, a medida que tomava consciência do seu ato impulsivo, mas quando sentiu a mão de Theo sobre seu ombro, virando-a, e viu os olhos do irmão brilhando de admiração, mudou de idéia e soube que havia feito a coisa certa.

— Você estragou tudo… - Maisie murmurou.

— Ele disse que não queria comer. – Ange arriscou responder, mesmo com sua voz não saindo da entonação desejada.

Maisie levantou o olhar para a menina e soltou um grito. Depois lhe jogou o bombom com toda a força, que acabou acertando a bochecha da gêmea.

Todos da sala tomaram um susto e Ange levou a mão até o local
acertado. Veio a dor e seus olhos se encheram de lágrimas. Theo ficou furioso e puxou a irmã para si, vendo a vermelhidão aumentar por debaixo da sua mãozinha.

No mesmo momento uma figura peculiar cruzava a porta da sala de aula em que acontecia a respectiva “discussão”. No primeiro momento ela parou pela curiosidade, querendo saber o porque do aglomerado no canto da sala. Mas depois viu que, na verdade, era uma briga e franziu o cenho. Se tinha uma coisa que aquela novata não gostava era de briga. Mas quando viu Ange se levantar e bater na mão da aluna que tinha um docinho em mãos, e observar o docinho voar longe, sorriu. Queria ser amiga daquela menina.

Ela também observou Maisie gritar e sair correndo em busca do doce. Notou que nenhum aluno moveu um músculo quando ela acertou o rosto de Ange, na verdade viu a maioria abaixar a cabeça e dar um passo para trás. Todos pareciam teme-la por algum motivo e isso a deixou inquieta. Ficou mais alguns minutos assistindo à cena até que a professora da sala chegou e perguntou se ela precisava de ajuda.

Agradeceu e disse que já estava retornando para a sua classe, mas assim que a professora virou as costas a morena espiou para saber o que aconteceria em seguida.

Nada.

Maisie não foi punida, Ange não derramou uma lágrima, mesmo querendo muito, e Theo apenas acompanhou a irmã até a enfermaria.











— Posso lanchar com vocês? – Foi a primeira coisa frase que perguntaram aos gêmeos depois de dias sem nenhum dos alunos lhe dirigirem as palavras.

Ainda não se conheciam mas desde aquele dia, a morena decidiu que se tornariam amiga deles.

Ange balançou a cabeça, concordando, e observou a novata puxar um banco qualquer e abrir sua lancheira e começar a comer, exclamando elogios.

— Me chamo Nicola. - Se apresentou.

— Sou Theo. E essa é minha irmã gêmea, Ange.

— Gêmea?! - Nicola exclamou levantando as sobrancelhas. - Por isso vocês só andam grudados...

O comentário não foi de mal gosto e nem estava insinuando nada, mas por algum motivo Theo começou a ficar envergonhado e Ange viu suas bochechas começarem a ganhar uma cor rosada. Ele tentou explicar que não era esse o motivo, mas Nicola parecia não escutá-lo mais, preocupada em elogiar o próprio lanche.

Apesar de ambos estarem com seus lanches em mãos e adorarem mais que tudo as frutas doces que Corine cortava para eles, os croissant de Nicola pareciam bem mais apetitosos do que seus sanduíches - além do fato de que nenhum dos dois havia comido um croissant antes. Os gêmeos se entreolharam e comeram quietos e cabisbaixos.

— Quer? – Nicola ofereceu para Ange que arregalou os olhos.

Sim, queria muito. Mas devia? Olhou para Theo que já a encarava. Seu irmão também ponderava se deveria encorajá-la ou não, mas acabou fazendo um leve aceno com a cabeça e assistiu sua irmã pegar um pãozinho delicadamente.

Sorriu satisfeito e tornou a comer seu sanduíche.

— Quer também? – Nicola ofereceu mas Theo negou. Sua irmã era quem mais queria e ela já havia conseguido o dela. Ele estava satisfeito com o lanche que tinha nas mãos.

Ange saboreou a massa caseira que estava quentinha, e quando o terminou fez um lembrete mental de pedir isso à mãe, quando chegassem em casa. E como se tivesse lido sua mente, Nicola esticou o braço, oferecendo mais. E dessa vez Ange soltou um sonoro “sim” pegando outro e outro.

Nicola dividiu seu lanche durante toda aquela semana.

Tinham quase cinco anos na época.









Nicola se mostrou uma pessoa tão geniosa quanto Ange mas, diferente desta, aquela peitava qualquer um, e dizia coisas sem pensar duas vezes.

Nicola era estalo, pimenta e girassol.

Ange era garoa, brisa fresca e contorno.

E Theo só sabia que Ange era garoa, brisa fresca e não estava muito certo sobre o “contorno” mas sabia que sua irmã era isso também.









— Flor! - Ange insistiu, balançando uma orquídea no espaço entre as duas.

— Fôr.— Nicola tentou repetir pela quarta vez, fazendo sua amiga suspirar insatisfeita.

Estavam sentadas sobre os degraus do quintal da casa da Dona Eva, enquanto Corrine esfregava algumas peças de roupas no que uma vez já fora um tanque. A maior parte estava marrom e o fundo tinha lodo demais, e era preciso tomar cuidado quanto à força colocada para esfregar as roupas ou a rachadura aumentava e ele se partia de vez.

Desde o dia fatídico em que a morena se apresentara para aqueles peculiares gêmeos, se tornaram próximos. Theo ainda fazia um pouco de birra para ir à escola, mas ao notar que a presença de Nicola acalmava a irmã, vez ou outra sossegava e ia sem objeções.

Tamanho foi o espanto de Corrine quando a filha se aproximou dela e perguntou se a “nova amiguinha” podia vir para a casa dela para brincarem. Corrine autorizou e fez bolo de chocolare e enfeitou a casa com algumas das flores da Dona Eva. Descobriu um horário em que Graydon não estaria em casa e pediu que Ange chamasse a coleguinha.

Recebeu Nicola com um enorme sorriso e os braços abertos.

Vieram direto da creche juntas.

— Filha, você tem que ter paciência. Nós demoramos para aprender as coisas, é devagar, se lembra? - Corrine chamou a atenção da pequenina, que concordou com a cabeça e deixou a flor de lado.

— Eu acho que um dia você consegue. Vou te ensinar tudo, viu? - Ange comentou com a morena, que concordou solenemente. Ange caminhou até a horta bem cuidado e começou a explicar o que usariam para o jantar que aconteceria dali a algumas horas. Contou-lhe também sobre as flores que podiam ser usadas como remédio e as que eram venenosas.

Estavam tão imersas na conversa sobre o assunto que não perceberam uma criaturinha de cabeça quase branca de tão loura, observando-as por entre os lençóis pendurados precariamente nos arames já enferrujados.

— Porque você não vai lá, filho? - Dona Eva perguntou para Theo que se encontrava parado ao seu lado. Ele havia se oferecido para ajudá-la a pendurar as roupas de cama mas estava apenas parado, observando a irmã e Nicola conversarem já fazia dez minutos.

Ele não sabia.

Theo não sabia porque não queria ir até elas. Só sabia que, mesmo estando contente por ver Ange feliz com a nova companhia, por saber que Ange tinha mais uma companhia, também estava triste e com um pouquinho de raiva. Ele deveria ficar super feliz, certo? Não é mesmo? Não deveria?

Não sabia.

Estava satisfeito, mas não totalmente contente. Aliviado por poder confiar em Nicola e saber que ela cuidaria de Ange, quando ele não estivesse por perto, porém estava receoso. Havia deixado a morena se aproximar de ambos mas não a queria muito perto. O que ele estava sentindo, afinal?

Não fazia ideia.

Frustrante.

— Porque não vai lá também? Explicar sobre as hortaliças? - Dona Eva insistiu.

Theo se limitou em fitá-la com seus olhinhos castanhos e balançar a cabeça de modo negativo, esmorecendo o sorriso de Dona Eva.

Ela entendeu.

O resto do dia seguiu tranquilo e Theo não se aproximou muito de sua gêmea. Ange não se importou, e nem percebeu, e sempre que tinha a oportunidade, abusava - deitando no colo quando sentaram no sofá para assistir TV, o ensaboou no banho ou mesmo quando sentia vontade corria e se metia entre os braços do irmão. Tudo para poder tocá-lhe a pele.

Em muitos dos carinhos Theo correspondia mas bastava Nicola se aproximar que ele se soltava dos bracinhos da irmã e oferecia ajuda para a mãe ou à avó postiça. Ange enrugava as sobrancelhas mas Nicola não a deixava pensar muito sobre o assunto.

A tarde seguiu tranquila e quando Nicola foi embora Ange correu de volta para a casa de Dona Eva, atrás do irmão.

Havia feito uma amizade, uma verdadeira amizade, a sua primeira coleguinha e mesmo muito entusiasmada havia sofrido o dia inteiro por não ter ficado perto de Theo. Mesmo quando ela tentava Theo dava um jeito de se afastar e ela não compreendia. Só sabia que estava louca de saudades. Quase sentia o ar se perder dos seus pulmões tamanho o tempo que havia se passado separados. Talvez fosse um pouco de exagero, mas era assim mesmo que ela se sentia. Será que ele não sentiu saudades dela também?

O encontrou catando as pétalas caídas da cerejeira que Dona Eva tinha no enorme quintal. Parou na porta e gritou seu nome e no mesmo segundo ele virou o rosto.

Ange arregalou os olhos e suspirou, agarrando o parapeito.

Como seu irmão estava bonito.

Não estavam tão escuro e como estavam no outono todo o chão haviam sido pintado de rosa e marrom, cobrindo toda a grama. Theo estava vestido de branco dos pés à cabeça e em meio a toda aquela aquarela parecia um pequenino anjo, só que sem asas. Ela ficou encantada.

Talvez, naquele momento, ela ainda não soubesse o real significado do que começara a sentir, e quando descobrisse, anos mais tarde, seria tarde demais para voltar atrás, mas Ange não conseguiu desviar o olhar e nem queria. Continuou encarando o irmão e vagarosamente abriu um enorme sorriso que transbordava amor.

Ela desceu o degrau e andou até ele, que ficou imóvel, apenas a companhando com o olhos.

— Oi.

— Oi.

— Estava te procurando.

— Hm… - Ele abaixa a cabeça para observar o que tinha em mãos. Pega uma das pétalas e deixa as outras caírem no chão. Theo pega uma das mãos da irmã e delicadamente depositou a pétala que lembrava o formato de um coração sobre sua palma minúscula.

— Toma. Pra’ você.

Ange abaixa os olhos e fecha a mão em punho, tomando o cuidado de não amassar o presente.

— Obrigado. - Ela agradece, alargando o sorriso.

Theo não sabia o que dizer, ainda não sabia o nome desse sentimento estranho que sentira durante toda a tarde. E ainda havia um resquício dele ali, principalmente quando sua irmã o olhava como se fosse vítima.

Vítima? Vítima do que?

Não estava com raiva dela só…

Então se manteve quieto e preferiu se perder nos expressivos e dourados olhos da irmã. Eram enormes e lindos.

— Estava com saudades. - Ange foi a primeira a quebrar o silêncio.

— A Nicola já foi?

— Já.

— Hm… - Theo abaixou a cabeça novamente e olha para as próprias unhas. E de repente, com aquela simples palavra dita pela irmã, aquilo que ele sentira durante toda a estadia da nova coleguinha sumiu como pó, e seu peito ficou mais leve. Agora se encontrava satisfeito.

— Meninos, venham! Sua mãe está chamando! - Dona Eva gritou da janela.

Ange virou o rosto e concordou com a cabeça, depois pegou a mãozinha do irmão e o chamou. Theo permitiu ser guiado para fora, até sua casa, onde tiraram a roupa e entraram juntos para o segundo banho do dia. Era dia de banheira mas ele não estava com vontade de brincar com as bolhas de sabão então saiu primeiro do banheiro. Trocou de roupa e comeu apenas metade de uma maça.

Quando Ange entrou no quarto ele já estava deitado, com os olhos fechados, encolhido no seu lado da cama. A menininha franziu o cenho e negou o jantar. Deu um selinho na mãe e depositou um beijo na bochecha do pai, que adormecia bêbado na poltrona.

Não tinha certeza se Theo já havia pegado no sono ou não então deitou silenciosamente e se cobriu com a manta. Estavam próximos do inverno mas não sentiam necessidade de um cobertor mais grosso. Ange juntou as mãozinhas e deitou a cabeça no travesseiro, encarando o rosto do seu irmão. Ela começava a acreditar que ele havia dormido quando sua boca se moveu.

— Você não rezou. - Ele acusou.

— Nem você. - Ela rebateu.

Ange sabia que o irmão não havia rezado pelo simples fato de que ela também não havia, e os dois faziam isso juntos. Se ajoelhavam ao pé da cama juntos, e rezavam em voz alto juntos, desde que a mãe os ensinara.

Theo abriu os olhos e encarou os da sua irmã que estavam mais próximos do que nunca.

— Porque não me esperou? - Ange perguntou e engoliu seco.

Theo continuou apenas a fitando e quando ela achou que teria uma resposta ele abaixou o olhar, ajeitando sua cabeça sobre o único travesseiro que dividiam. Ela suspirou frustrada.

Theo sempre fora pouco expressivo, como dois opostos Ange falava demais e ele de menos, Ange se expressava demais e ele de menos, e mais do que nunca ela detestava essa sua característica de ser de menos. Porque só ela sempre era de mais?

— Em? - Ela insistiu.

— Por nada. Você demorou. - Theo respondeu nervoso com a insistência da irmã. Ange muitas vezes também era intensidade, atitude e insistência, uma mistura das três mais perigosas características que um único ser humano pode carregar, e nesse momento ela estava sendo insistência demais e Theo precisou respirar fundo para não perder a paciência.

Não queria falar. Não parecia mas Ange que era boa nisso, em se expressar, ele não.

Ele viu sua irmã juntar as sobrancelhas e seus olhos brilharem com a teimosia se formando pronta para explodir, e ele só pode esperar para receber tudo que estava por vir, como uma onda que o arrastaria por toda a areia, esfolando seu rostinho, porque Ange também era isso: selvageria. Mas de repente toda a intensidade sumiu, sobrando apenas carinho.

Theo ficou com mais medo ainda.

Ange piscou sonolenta e olhou para baixo. Ela inalou e soltou um ar longo e demorado e depois de virou, ficando de costas para o irmão. Sussurrou um “Eu te amo” e dormiu.

Theo quis chorar de arrependimento.









Nicola tinha origens italiana, seu pai viera de uma cidade chamada Prato e por esse motivo seu inglês era tão enrolado. Por esse mesmo motivo sua lancheira era sempre tão farta e suas bochechas tão redondas e rosadas. Nicola falava movimentando os braços e fazia gestos demais com as mãos. Sua voz sempre estava uma oitava mais alta e seu pato de comida preferida era massa.

Seu pai tinha um humilde restaurante na garagem de casa e sua mãe trabalhava num salão, os quais Nicola insistia para que os gêmeos fossem. Principalmente no restaurante, “Lá tudo é delicioso!”, ela dizia. Talvez, por sua mãe trabalhar num salão Nicola sempre cheirava a creme de barbear e sabonete, mas suas bochechas sempre continham resquícios de farinha branca. Seus cabelos castanhos estavam na maioria das vezes pressos em diferentes penteados de tranças, coisa que Ange adorava.

Theo compreendia tudo isso. Mas não entendia o fato dela precisar passar a maior parte do tempo junto com eles,com Ange e ele. Ela era italiana, será que os italianos eram pessoas grudadas? Só podia ser isso.

Theo não compreendia e se tornou cada vez mais irritado com a presença da coleguinha. E mesmo com Ange questionando ele nunca se pronunciava.

Nicola notou, é claro, mas era educada demais para enfrentar o irmão da sua melhor amiga. E tímida também porque, querendo ou não, a beleza de Theo já intimidava muitas das coleguinhas de classe e seu jeito recluso só as deixavam ainda mais sem jeito.

Mas mesmo com tudo isso a morena continuou a frequentar a casa dos Heavenlly.

Estavam sentados no chão da pequena sala, comendo pedaços de maça embebidas em caldo de açúcar com canela, quando Graydon entrou em casa abruptamente. Seu suor escorria pela testa e pingava na sua camisa. Seu peito subia e descia de modo violento e seus olhos vagaram sobre as crianças e todo o recinto da sala. Ele estava com raiva, podiam ver a fúria transbordando de seus olhos e escorrendo pelo seu pescoço, por seus braços e pernas. A ponta dos seus dedos estavam brancas, segurando a maçaneta e uma caixa de ferramentas velha feita de ferro.

— CORRINE! - Ele esbravejou e Nicola tampou os ouvidos tomando um susto. Nunca havia escutado alguém gritar tão alto, nem mesmo nas suas reuniões de família quando tantos italianos se juntavam para comer diante de uma mesa farta.

Theo tremeu e Ange olhou para ele preocupada. Eles sabiam que deveriam correr para o quarto ou para a casa da Dona Eva, mas Nicola estava ali. O que deveriam fazer? Nunca houve um terceiro elemento… Correr para o quarto ou para Dona Eva? Estavam tão felizes, e à muito tempo não viam uma briga de seus pais que ambos ficaram imóveis sem saber o que fazer.

Corrine apareceu na porta da cozinha, com os olhos esbugalhados e o rosto sem cor. Primeiro ela olhou para a pequenina visita sentada junto com seus filhos, e, imaginando que esse era o motivo da raiva, tentou se explicar.

— Meu amor essa é a coleguinha de sala deles… - Começou, totalmente sem graça pela cena que a menininha estava presenciando. O que diria aos pais? Bom, infelizmente, nada muito diferente do que os vizinhos já espalhavam por ai.

Graydon não queria saber de Nicola, aliás ele mau a havia visto sentada entre os gêmeos. Ele só queria descontar sua raiva, era tanta que sua visão estava turva e ele simplesmente largou a caixa de ferramentas que caiu no chão com um estrondo. Emili soltou um grito e Theo correu para tapar-lhe a boca.

Ange viu o pai correr com os braços esticados em direção a mãe e soube que precisavam sair dali. Olhou para Theo e Nicola e puxou a mão do irmão, indicando a porta com a cabeça. Ele ficou preocupado, não sabia se sair atiçaria ainda mais a raiva do pai, ou eles ficando ali acabariam ganhando uma prova da fúria de Graydon.

Theo de uma última olhada para a mãe antes de levantar e seguir a mãe.

Como ele gostaria de não ter virado o rostinho.

Graydon apertava o fino pescoço da mulher. Corrine estava imprensada contra a parede e fora erguida alguns centímetros do chão, deixando-a suspensa no ar. Seus olhos clamavam por piedade e transbordavam tanto medo que Theo nunca mais se esqueceria de sua expressão. Seu rosto estava manchado de vermelho e suas mãos tentavam, em vão, afrouxar o enforcamento. Sua boca chegou a abrir, em busca de ar, mas nada veio.

— Aonde foi parar a sua coragem? Em?! - Se não bastava, Graydon ainda gritava próximo ao ouvido da pobre mulher. - Cade aquela coragem que você teve para me denunciar? Em Corrine?!

E mesmo com Corrine fazendo sinais negativos com a mão, tentando de algum modo lhe passar a mensagem de que não fazia ideia do que ele estava falando, ela teve a certeza de que morreria naquele momento.

Ange se levantou e puxou Theo que puxou Nicola junto. Correram para a porta de casa mas no momento em que Ange colocou o pé para fora escutou seu irmão gritar nas suas costas. E quando virou o rostinho viu o desenrolar da cena em câmera lenta.

Nicola, correndo em direção ao pai e pulando nas suas costas. Socando-o com seus punhos minúsculos, que nem para fazer cócegas servia. E quando Graydon virou o rosto e fitou aquela criatura tentando machucá-lo, franziu o cenho. Havia se dado conta de que tinham uma visita e hesitou.

— Solta ela seu monstro! - Gritou.

A raiva retornou e ele soltou o pescoço da mulher. Corrine caiu pesadamente no chão, meio sonolenta à ponto de desmaiar mas preocupada com o que seu marido poderia fazer com Nicola. E quando viu Graydon levantando seu bota, e mirando na garotinha, levou a mão até a barra da sua calça para pará-lo.

Não foi o suficiente para desequilibrá-lo mas tirou sua atenção da inocência da criança.

— Solta, solta, solta! - Nicola gritava e Graydon, um pouco confuso, não fez mais do que empurrá-la. Ela tropeçou no tapete e bateu a cabeça no canto do sofá.

— Theo, a Nick! - Ange gritou e empurrou o irmão de encontro a amiga.

— Me solta mulher! - O marido gritou e chutou com toda a força a barriga de Corrine.

Ela perdeu o ar e vomitou uma poça de sangue.

Não viram nem ouviram mais nada.

Ange arrastou Theo e Nicola para a casa de Dona Eva, que quando abriu a porta precisou se apoiar no parapeito da porta. Nicola tinham um corte profundo na sobrancelha esquerda e as mãos vermelhas, Theo um enorme roxo nos dois joelhos e Ange carregava um terror nos olhos que Dona Eva quis chorar de pêssar pois nenhum ser humano deveria ser submetida a isso.


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Notas finais do capítulo

Me contem o que vocês acharam!
XOXO



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