Dazed And Confused escrita por venus


Capítulo 2
Raven & Floyd


Notas iniciais do capítulo

bom, novamente, o capítulo saiu meio longo, desculpe por isso :/
mas enfim, eu espero que aproveitem :)



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Raven e Floyd passavam os sábados juntos. Os dois trabalhavam na mercearia do pai dele, a Pink's Grocery, equipada com ventiladores baratos e prateleiras empoeiradas carregadas de produtos vegan. Empacotavam as compras de idosas devolutas e mulheres solitárias, varriam e esfregavam os corredores da loja e selecionavam as frutas e legumes podres e jogavam no lixo.

Contudo, quando a clientela desaparecia, eles sintonizavam o rádio numa estação de rock e afanavam alguns pêssegos e cachos de uvas graúdas (não antes de desligarem as câmeras de segurança). Eram tardes agradáveis, aquelas. Ela, largada na cadeira giratória, e ele, sentado na esteira do caixa.

— Ah, eu amo essa música. — aumentou o volume do rádio.

— Gosto mais de Dead Souls.

— Nada a ver. Escuta essa bateria.

— Não, a única música decente da Joy Division é Dead Souls. — contrariou ele, abrindo um sorrisinho imperceptível.

— Você é um imbecil. — e pôs uma uva verde na boca, cuspindo as sementes no lixo em seguida. — Sabe, você seria o cara ideal se não fosse por isso.

Raven se lembrava de quando tinha pavor dele. Quando estava na quinta série, seu irmão e Floyd tornaram-se inseparáveis e então ele começou a aparecer com frequência na casa dos Wakahisa. Às vezes, em algumas segundas-feiras, ela descia as escadas para preparar um chá de ervas cidreiras e o encontrava sentado no tapete da sala assistindo He-Man. Camiseta de mangas três-quartos. Cabelos loiros escuros. Calça jeans sujas de terra na região das nádegas. Ela o reconhecia quando já era tarde demais. Floyd erguia a mão para acenar enquanto ela torcia o seu rabo de cavalo, punindo-se por não ter permanecido em seu quarto. E Raven subia as escadas em pânico e esperava até ouvir o motor barulhento do carro do pai de Floyd rugir no quintal para relaxar e tornar a descer novamente.

Floyd era temerosamente bonito. Qualquer garota de dez anos teria medo de sua beleza pueril.

E lá estava ele, balançando os seus All Star no ar e as costelas acentuadas despontando sob a camiseta preta. Floyd exalava uma magnificência displicente. Possuía braços franzinos demais e dedos muito longos, mas em algum ponto de sua infância já havia devaneado em ser abraçada e tocada por eles. Agora, ele não passava de um conjunto de membros sublimes feitos de carne e osso, assim como qualquer ser humano.

— O que tá acontecendo entre você e o Finn? — indagou ele, sem encará-la nos olhos.

A loja fora invadida por sombras verdes projetadas pelas árvores da calçada próximas da janela. Uma brisa equatorial invadiu o interior da mercearia. Ele observou amavio brotar dos poros de sua pele parda e fluir pelo pescoço vagarosamente. Ela mordiscou o lábio inferior e os cantos da sua boca ergueram-se rapidamente.

— Nada. — respondeu, olhando para o chão. — Ele não gosta de mim. Tipo, não daquele jeito.

Floyd pegou um pêssego para não dizer nada. Deu uma mordida violenta na fruta, sem sentir a textura macia da casca, e o suco doce escorreu pelo seu queixo.

— Deixa eu ler a sua mão. A Alli me ensinou como fazer ontem. — ela nem esperou pela sua resposta e já foi agarrando o seu braço e alisando a palma da mão. — Vamos começar pela linha do coração.

Raven apertou os olhos e contornou a linha com o dedo indicador.

— Que foi, Rae?

— Tem um círculo e alguns riscos na sua linha. Hum... Eu acho que significa tristeza e trauma. Pelo menos foi isso o que a Alli disse.

— Allison Foster é uma lunática. — retorquiu instantaneamente. Sorriu, nervoso. — Vive falando sozinha e fazendo rezas em latim.

— Espera, que merda é essa?

Ela se referia ao pequeno buraco em seu antebraço, roxo e rodeado de veias pulsantes e pus. Fez menção de aproximar seu dedo da ferida, mas com um movimento bruto e repentino, Floyd se afastou, perdendo o equilíbrio e quase caindo da esteira do caixa.

Raven cruzou os braços sobre o avental verde.

— Bom, eu sou diabético. É-É só insulina.

— Se você fosse diabético mesmo, saberia que não se injeta insulina no antebraço.

Entretanto, no momento em que Floyd abriu a boca para retrucar, as portas metálicas da loja se abriram de supetão. Beauregard chegou fazendo estardalhaço, andando com passos sinuosos e rindo por nenhum motivo evidente. O odor característico de maconha o seguia, como uma nuvem mal-cheirosa impregnada nos seus cachos esbraseados.

— E aí, o que vocês tão fazendo? — Beau pegou um carrinho de supermercado e entrou nele, sentando-se com as pernas cruzadas sobre o assento de grade desconfortável.

— Ouvindo uma música horrível da Joy Division. — arriscou Floyd, olhando para Raven, nervoso. Infelizmente, sua expressão de aborrecimento não se desfez.

— Ah, eu gosto dessa. É bem maneira. — disse Beauregard. Raven sorriu com satisfação. — Mas enfim, não vim aqui pra falar de música. — bocejou. — Percy McKiddie e eu estávamos de boa no telhado de casa e ele disse que ia dar uma festa, com bebida, cigarros e Grateful Dead.

— Dá um tempo, Beau. Deixa a poeira abaixar. — recomendou Raven. — Peggy Ryan foi assassinada. Os Keely estão em estado de choque porque o corpo foi achado no quintal deles. Além do mais, todos os pais estão preocupados com essa situação, porque há um assassino à solta e ninguém sabe qual será o seu próximo passo.

A cabeça de Beau pendeu. Ele estava adormecendo. Raven apressou-se em dar uns tapinhas em suas bochechas, fazendo-o piscar os olhos cor de mel sonolentamente.

— Você é uma chata, Rae. — balbuciou ele. — Por favor, vai. Por favorzinho. Não vai ter graça sem você. O que é uma festa sem a sua ilustre presença e as suas bebidas japonesas?

— Minha mãe vai ficar preocupada.

— Floydster, dá uma ajudinha aqui. — pediu Beau, numa voz embargada. — Aliás, bem que você podia roubar os vinhos do seu pai, né? Ou trazer umas seringuetas... — ergueu suas sobrancelhas para ele.

— Ah, então é isso. — ralhou Raven, pegando abruptamente no braço de Floyd. Ele arquejou de dor. — Beauregard, o que é que vocês andam fazendo?

— Nada. — omitiram os dois ao mesmo tempo.

— Nada?

— É, Rae, relaxa. — assegurou Floyd, tocando-lhe nas costas. — Você precisa descansar. As aulas vão começar daqui a duas semanas. Não precisa se preocupar com nada.

Beau meteu a mão no bolso e extraiu um baseado gordo.

— Ei, Floydster, tem fogo?

Ele tirou um isqueiro pequeno do bolso do avental e aproximou a chama da ponta do baseado, que inflamou-se e começou a queimar a erva.

— Toma. — Beau entregou-o à Raven, que instintivamente se afastou. — Você tá precisando disso.

Ela segurou o apoiador do carrinho de supermercado em que Beauregard estava largado e empurrou-o com força na direção das portas metálicas abertas. Ele saiu à toda na rua; o carrinho deslizando velozmente pelo asfalto, até que trombou no meio-fio e Beau voou, como um borrão vermelho, para a sebe de um sobrado. Houve um estrondo seguido por uma risada esganiçada. Floyd, que acompanhava tudo pela janela da loja, bateu palmas.

— Sua psicopata, eu podia ter morrido! — a voz estridente de Beauregard soou longínqua. — Ok, espero ver vocês dois na festa com duas garrafas de vinho e uma caixa de morfina.

Ele se levantou com dificuldade e limpou os joelhos ralados. Em seguida, andou cambaleante pela calçada, sem rumo. O carrinho permaneceu tombado na rua e uma de suas rodinhas saiu rolando no chão.

— Como vamos pegar as bebidas do seu pai? — perguntou ela, subitamente interessada.

— É só entrar lá e pegar. Ele não se importa muito.

— Bom, já deu o horário. — ela checou o relógio de pulso e desamarrou o avental verde e o dobrou, colocando-o em seguida sobre a esteira do caixa. — Se precisar de alguma coisa, é só ligar pra minha casa.

Floyd começou a abrir os braços, como se esperasse por um abraço de despedida. Eles não tiveram nenhum contato físico durante uma semana, em virtude da vergonha que ainda sentiam pelo momento em que encontraram o cadáver de Peggy Ryan e Raven se debulhou em lágrimas agarrada ao corpo dele.

— Nós podíamos ir juntos na festa. — sugeriu ele.

— Pode ser.

— Passa aqui depois de se arrumar. — Floyd deu uma fungada no pescoço dela. — Você precisa de um banho. — e deu um sorriso brincalhão.

Ela retribuiu com uma risada fraca, porque todo o seu estoque de desodorantes Teen Spirit havia desaparecido misteriosamente na semana passada. Temendo que Floyd sentisse o cheiro azedo de transpiração ao abraçá-lo, acenou para ele.

— Então, tchau. — e foi embora.

***


Floyd entrou no quartinho do andar de cima despercebido. A porta rangeu e a maçaneta caiu no chão com um barulho metálico, mas nem assim o sr. Dolovan desviou seus olhos do pequeno televisor.

— Oi, pai. — disse ele, encostando no seu ombro.

O sr. Dolovan engoliu o conteúdo do copo como se só houvesse uma gota de licor nele. A pança peluda transbordava pelos botões da camiseta xadrez. As calças de pijama exibiam algumas manchas de molho de tomate e o tecido azul estava desgastado.

Não parecia ter notado seu filho.

Floyd, agora não tão cuidadoso, dirigiu-se até o amontoado de rolhas, latas de cerveja vazias e pratos descartáveis usados. Um rato saiu sorrateiramente de um copo de isopor e escondeu-se atrás das caixas de papelão cheia de LPs e polaroids, na outra extremidade do quarto. Somente o brilho azulado do pequeno televisor iluminava o recinto.

Curvou-se sobre o lixo acumulado durante aqueles cinco anos, enojado ao encostar em alguma coisa oleosa — era um pedaço de pizza mofado. Começou a fuçar, até encontrar um pacote intocado de cerveja e uma garrafa de vinho empoeirada. Surpreendentemente, tudo estava dentro da validade.

Vitorioso, ele tentou se esgueirar pela porta, porém o pigarrear ruidoso de seu pai atraiu sua atenção.

— O que você tá segurando aí, meu filho? — crocitou ele, maldoso.

— Nada, pai. — a resposta foi imediata.

O sr. Dolovan se pôs de pé — algo que não fazia há dias — e mancou até ele. Seu hálito doce de 7Up com licor de cereja nauseou Floyd. O mais novo percebeu, pela primeira vez, que os cabelos loiros do pai (iguais aos seus) estavam começando a rarear.

— Nada? — ele baixou os olhos coléricos para as mãos do filho, e grunhiu quando viu o pacote e a garrafa.

— Me deixa ir, por favor. — recuou cautelosamente.

— Você não pode beber.

— Tá, pai, eu sei que sou menor de idade, mas...

— Eu não me importo com isso, moleque. Essas coisas são minhas, se você quiser, vá comprar a sua.

— Então, me dá dinheiro.

Com a mão cheia de calos, o sr. Dolovan puxou o filho pelo colarinho e desferiu um soco em seu nariz. Dois filetes de sangue escorreram pelas suas narinas, umedecendo os seus lábios rachados e deixando um gosto de ferro em sua boca. Seus olhos escuros lacrimejaram como um reflexo da dor.

— Por que você fez isso, porra? — ele secou o sangue com as costas da mão.

— Pra ganhar dinheiro, você tem que trabalhar. — Floyd desviou o olhar para a porta, porém o pai o forçou a encará-lo com um tapa. — E é o que você deveria estar fazendo.

— Eu fiquei na loja o dia inteiro. — argumentou aborrecido. — E você ficou vendo Designing Women comendo pizza e bebendo refrigerante com vodca.

— Cuidado com o que você fala, moleque. — o sr. Dolovan derrubou-o no chão pegajoso.

— Se fode. — ele chutou o ar, e depois a barriga do pai, que balançou gelatinosamente.

O sr. Dolovan cerrou o punho e puxou-o para trás. Houve um barulho oco e Floyd sentiu uma dor aguda e lancinante. O ar escapou dos pulmões quando a mão fechada e dura do pai afundou em suas costelas. Ele ofegou e tossiu — esguichou sangue pela boca enquanto se revirava sob o corpo adiposo do velho, tentando fugir dos socos.

Para um homem de sessenta anos que mal saía da poltrona, ele era bem rápido e forte.

Floyd não conseguia revidar. O pacote de cerveja tombara no chão e a garrafa de vinho rolara de volta para o amontoado de lixo. Quando ele pensou que não podia mais suportar os murros do pai, um clangor ecoou pelo quarto, sobrepondo as risadas vindo do televisor. O sr. Dolovan caiu paralisado no chão.

— Você disse que ele não se importaria se a gente pegasse as bebidas. — disse Raven, empunhando majestosamente uma frigideira enferrujada.

Ele tentou falar, mas só conseguiu tossir.

Raven o ajudou a se pôr sentado e esperou até que conseguisse se recompor. Pegou um guardanapo usado da pilha de lixo e pressionou-o sob as narinas dele, que continuavam a espirrar sangue.

— Isso acontece com frequência? — perguntou ela, parecendo verdadeiramente preocupada. Largou a frigideira no chão, onde a encontrara.

A visão dele estava embargada, mas quando tudo clareou e Floyd viu o rosto de Raven, lívido e azulado, uma onda reconfortante de calor e alívio o cobriu. Mesmo que naquele momento tudo cheirasse a sangue para ele, conseguiu distinguir o perfume de desodorante Teen Spirit — ela deveria ter comprado mais — que emanava do seu corpo.

— Só às vezes. — mentiu. — Ele é um cara legal quando tá sóbrio, tipo, a gente vê Saturday Night Live juntos de vez em quando.

— Ah, sim. — ela olhou rapidamente para o corpo inerte do sr. Dolovan. — Desculpe por isso.

— Não, tudo bem. Ele teria acabado comigo.

Ambos permaneceram em silêncio por um tempo. O único barulho vinha da TV — a introdução alegre de Full House não era apropriado àquele momento. Em algum ponto daquele período de tranquilidade, Raven segurou a sua mão e abriu um sorriso. Não um debochado ou um de alegria; era aquele dos raros, um que demonstrava solenidade e compreensão.

— Você ainda quer ir pra festa? — perguntou ela.

Floyd se segurou para não dizer ‘‘Não’’. Se o fizesse, Raven permaneceria com ele naquele quartinho pútrido pelo resto da noite. Talvez eles assistiriam à alguns episódios de Full House enquanto bebericavam o vinho do sr. Dolovan — e se ele expressasse algum sinal de estar acordando, acertariam-no com a frigideira novamente.

Contudo, ela estava usando aquele vestido cinza — cujas mangas e o comprimento foram brutalmente encurtados pela tesoura artesanal da sra. Wakahisa — e evidentemente, alisara o cabelo com ferro de passar roupa. Além disso, seus olhos contornados por delineador piscavam ansiosos, desejando secretamente por um ‘‘Sim’’.

— Quero, sim.

— Ótimo! — exclamou ela, levantando-se. — Vamos logo.

Ele pegou o pacote de cerveja e ela procurou a garrafa de vinho embaixo da poltrona, no amontoado de restos de comida, nas caixas de papelão empoeiradas e atrás do televisor, entretanto, nada encontrou. Os dois saíram do quarto — trancaram-no para que o sr. Dolovan não viesse atrás deles —, fecharam a loja e seguiram até o fim da rua, onde ficava a casa dos McKiddie, feita toda de madeira com flores ornamentando o telhado da balaustrada.

A porta estava aberta e quando a atravessaram, depararam-se com Beauregard numa camiseta havaiana e sem calças, a boxer preta cobrindo somente a área da pélvis até metade das coxas, brancas e cobertas por pêlos rubros. Ele segurava um copo de plástico cheio até a metade de um líquido cor de âmbar e sua cara estava púrpura de tanto corar por conta da bebida.

— Floydster! — berrou a plenos pulmões. — E Rae Rae! Gente, mais bebida! — e uma dúzia de adolescentes apinharam-se ao redor dos dois. Rasgaram o pacote de cerveja com ferocidade e cada um se apropriou de uma lata.

— Não sobrou nada? — ele andou até eles com dificuldade, quase tropeçando em seus próprios pés. — Seus animais! — gritou com os garotos que sorviam todo conteúdo da lata.

O anfitrião, Percy McKiddie, chacoalhou a cabeça após de amassar a lata com a mão.

— Cerveja choca. — e pôs a língua pra fora, enojado. — Cadê o Teddy? Ei, Beau, o Teddy veio?

— Sei lá, cara... Se a Gretel tá aí, o Ted também tá.

Os quatro deram uma espiada na sala de estar. Gretel Dorothea, para o desgosto de Raven, estava estirada no sofá de couro sintético, com os ombros dourados cobertos pelo casaco de pele rosa e a saia plissada carmesim meio arriada, de modo que os garotos pudessem vislumbrar o que se escondia sob ela.

E sentado na poltrona ao seu lado, claramente desconfortável, estava Finn, para o desgosto de Floyd. Não que ele fosse um babaca que nem Teddy Turner, mas corriam boatos de que Finn e Raven andavam fazendo mais do que só passar a tarde inteira no fliperama jogando Exterminator.

— Vamos lá conversar com o Finn. — ela puxou Floyd pelo braço e o guiou pelas pessoas suadas e embriagadas.

Os dois se sentaram na mesma poltrona, ao lado da de Finn, que olhava para a mesinha de centro, concentrado. A fricção entre a perna de Raven e a sua fez com que ele estremecesse. Surpreendeu-se quando ela o cutucou e lhe entregou um guardanapo; seu nariz continuava sangrando e ele não percebera, de tão embevecido. Enfiou o papel em sua narina e estancou o líquido escarlate e viscoso.

— Vocês tão bem? — perguntou Finn, sem olhar para eles.

— Sim. Por quê? — Raven respondeu pelos dois.

— Não, é que... — ele se atrapalhou na fala. — É que eu não consigo parar de pensar nela. Na Peggy. Eu nunca tinha visto um cadáver na vida.

E então, encarou Raven com os olhos azuis-miosótis, sempre ternos e meigos. Parecia que queria falar algo importante, porém foi atropelado por Gretel Dorothea, que se não tivesse uma voz tão característica, ninguém saberia que as palavras haviam saído de sua boca, uma vez que parecia uma estátua de Afrodite imponentemente largada no sofá.

— Peggy ia fazer uma princesa na apresentação de balé. — ela parecia angustiada. — Ela seria a protagonista. Só que a professora disse que seria melhor se a Peggy fizesse uma fada que só tinha umas três falas na peça inteira. Ela deveria estar muito triste quando morreu.

— Quando foi assassinada. — corrigiu Raven.

— Oh, oi, Rae. Não te vi aí. — cumprimentou Gretel.

Raven rangeu os dentes. Não importava o quão fria e seca fosse com Gretel, ela continuaria a tratando cordialmente. Talvez essa fosse a sua virtude. Garotas como Gretel precisavam gostar — ou pelo menos fingir gostar — das pessoas, porque as pessoas gostavam delas. Pessoas como Finn, que veneravam-nas por estarem paradas ou respirando, que admiravam-nas por terem rostos venustos e corpos torneados, que nunca haviam tido um diálogo significativo com elas, porém estavam cega e inteiramente apaixonados sem motivo algum.

— Ela foi morta com um tiro. Ou pelo menos era isso. Tinha buraco no peito dela. Uma larva saiu de lá. Eu vi. Eu não consigo parar de pensar no cadáver. — suspirou Finn.

— Não diga cadáver. É como se ela não fosse mais Peggy Ryan. É como se ela só fosse um corpo morto. — retrucou Gretel, numa voz afetada.

— Uau. — Finn pareceu impressionado. — Isso foi muito tocante, Gretel.

— Obrigada. — ela enrubesceu.

— Você deve escrever poesia. — continuou Finn, com o peito estufado de confiança. — Sabe, as pessoas te subestimam muito, Gretel. Você é muito mais inteligente do que elas pensam que é. Parece até... Sylvia Plath falando.

Raven se esforçou para não revirar os olhos. Enquanto Finn enchia o orgulho Gretel com elogios ensaiados — ele provavelmente folheara uma revista masculina com dicas para conquistar uma garota —, ela o escutava atentamente, cada palavrinha dilacerando gradualmente seu coração.

— Floyd, vamos pegar uma bebida. — disse num tom autoritário, e ele se levantou de imediato.

Percy lhes ofereceu duas canecas que transbordavam cerveja borbulhante. Raven bebeu tudo, soltando um arroto estrondoso em seguida. Floyd riu, achando estranhamente adorável o seu rubor de vergonha e a espuma branca contornando o seu lábio superior. Sentindo os miolos estourando, ela roubou um copo cheio de um líquido transparente que Beauregard segurava.

— Você tá bem? — questionou Floyd.

— Sim, sim, tudo ótimo, tudo uma beleza. — e gorgolejou a bebida. — Tá a fim de escutar alguma coisa boa?

— Já tava na hora de tirar essa música.

Havia uma pilha de cassetes sobre o tapete persa. Enquanto Raven procurava por algum do The Smiths, Floyd tirava o do New Kids On The Block, enojado.

— Finalmente. — ela apertou o play e antes mesmo da música começar, Raven saracoteou pelo corredor, de olhos fechados e braços erguidos.

Floyd a seguiu, rindo, até o jardim dos McKiddie iluminado pelas luzes trêmulas e alaranjadas das velas. Num canto, ele viu Gary Austin e Daria McAllister dando uns amassos. Na outra extremidade, perto da cerca de madeira branca, flagrou Beauregard regurgitando todo o álcool que consumiu no dia inteiro. Observou garotas acenderem baseados sentadas nas espreguiçadeiras e garotos pularem na piscina ainda vestidos. Surpreendeu-se ao ver Teddy Turner, o típico rei das festas, agora inexpressivo e macilento, andando à esmo pela grama molhada. Todavia, não encontrou Raven em lugar algum.

Uma névoa cheirosa de morango o envolveu. Dois braços, longos e magros, abraçaram o seu pescoço. Ele sentiu os lábios se aproximarem do seu ouvido com uma brisa afogueada. Ela sussurrou coisas ininteligíveis que o fizeram rir, e ela riu para ele exibindo as perolazinhas que eram seus dentes, e ele sorriu ternamente, e ela depositou um beijo — um beijo que durou pra sempre — na sua clavícula e ele estremeceu, finalmente ficando sem reação.

— Ei, pombinhos, tão a fim de girar a garrafa? — perguntou Beauregard, metendo-se entre eles.

Raven assentiu com a cabeça e Floyd se sentiu no dever de concordar e se unir à roda que formavam em volta da garrafa.

— Ok, eu vou girar duas vezes e os sortudos pra quem o bico da garrafa apontou se beijam. — explicou Percy. E, dirigindo-se à Gary e Daria, que ainda se agarravam, acrescentou: — Sem língua, por favor. Mas antes, vamos dar uns goles pra esquecer tudo isso amanhã.

Ele passou uma garrafa de schnapps de pêssego. Raven deu goladas ruidosas. Floyd nem sequer encostou a boca no gargalo.

Percy beijou uma garota do terceiro ano. E uma do primeiro, e outra de doze anos, e outra que nem frequentava a escola deles, e daí foi a vez de Beau — os dois mal selaram seus lábios e já estavam esterilizando-os com água e sabão —, e novamente a garota do primeiro ano.

— Caralho, Percy, gira essa coisa direito.

— Tá, tá.

— Sete minutos no paraíso pros pombinhos que a garrafa apontar! — exclamou Beauregard, seu rosto agora de um vermelho vívido como seus cabelos.

A garrafa de vidro girou na grama por pouco tempo e quase acusadoramente, parou diante de Raven. Beauregard sussurrou alguma coisa para Percy, que concordou com a cabeça, e girou novamente. Desta vez, a botelha rodou por alguns segundos, e Floyd enervou-se ao ver o menino escolhido.

— Aí sim, cara! — comemorou um garoto de cabelo rastafári, acariciando a barba desgrenhada.

Beauregard deu um peteleco rápido na garrafa. O gargalo apontou para Floyd. Ele ajudou Raven a se levantar e Percy indicou o armário de vassouras.

Eles entraram e o coração de Floyd começou a palpitar tão forte, que ele pensou que ela escutaria.

Raven encostou a cabeça em uma prateleira que sustentava caixas de sabão em pó e embalagens de detergente. Ligou a luz — uma lâmpada pendurada no teto por um fio — e olhou diretamente para ele. Foi aí que Floyd tentou enxergar o que se escondia por trás dos olhos dela, mas acabou falhando quando percebeu que havia um véu denso e negro escondendo seus segredos, e nada conseguiria dissipá-lo — nem mesmo um beijo.

— O que você quer fazer? — perguntou ela.

— Eu não sei. O que você quer fazer?

— Eu não sei. — ela se inclinou sobre ele, como se fosse confidenciar-lhe algo. Floyd aspirou seu perfume inebriante e segurou seu rosto com as mãos em concha.

— Sabe, é meio esquisito mas eu andei imaginando esse momento há algum tempo. — ele sabia que se arrependeria do que estava prestes a dizer, mas o álcool que se revirava em seu estômago o estimulou a continuar. — Às vezes, eu entro no seu quarto e cheiro as suas coisas porque elas me fazem sentir que você tá comigo.

Ela jogou a cabeça pra trás e riu.

— O que foi? É verdade, é verdade mesmo. Desde quando eu tinha doze anos.

— Mas por quê? — indagou Raven, agora mais séria. — Eu não sou como... Como as garotas da escola.

— Bom, isso é verdade. Você não atende os pedidos de qualquer cara e não precisa de atenção toda hora. Não é como um cão. Cães são uma merda. Odeio cães. E você é uma tartaruga. Uma tartaruguinha bonitinha nadando num aquário. E as pessoas vivem esperando que você faça alguma coisa espetacular como abanar o rabo ou latir ou sentar, mas você manda elas se foderem e continua fazendo o que quer. Cara, eu amo tartarugas. — ele esperou alguma reação, mas ela continuou impassível. — De vez em quando, à noite, eu começo a caminhar pelo bairro e acabo parando na sua casa. É esquisito, mas é verdade. E eu também roubei os seus desodorantes porque eles são cheirosos.

Quando se deu conta do que dissera, desesperou-se. Logo que saíssem daquele maldito armário, ele daria mais aguardente para ela beber e esquecer-se de toda baboseira que falara.

— Você é estranho. — e com isso, ele abaixou a cabeça. — Mas eu gosto disso.

Um suspiro — que cheirou a schnapps de pêssego — escapou-lhe dos lábios enquanto Raven se aproximava de Floyd. Ele já conseguia sentir o gosto do beijo que ela lhe daria; a saliva tórrida escorrendo de sua boca, como néctar, e a língua saliente e avermelhada friccionando a sua.

A porta, porém, abriu-se de rompante antes que eles conseguissem fazer qualquer coisa, e Finn estava ali, parecendo muito aflito.

— A polícia tá aqui. — seu desespero se esvaiu e foi substituído por uma expressão de malícia. — O que é que vocês tão fazendo?

— A polícia?!

Finn assentiu. Floyd o empurrou pro lado e puxou Raven para fora do armário. Arrastou-a pelo jardim e se deparou com a cerca, alta e pontuda. Raven estava tão grogue que tinha que se apoiar nele para permanecer em pé.

— Rae, pule a cerca! — silvou ele.

Ela enrolou seus braços em volta dos seus ombros e sorriu, visivelmente embriagada. Floyd escutou as sirenes, aproximando-se cada vez mais. Agindo impetuosamente, pegou-a no colo e a jogou — com o maior cuidado — por cima da cerca. Raven caiu com um baque no chão e arquejou. Ele se apoiou em um dos galhos quebradiços de uma macieira e pulou a cerca, seu traseiro roçando em uma das pontas afiadas.

Contudo, a viatura da polícia passou reto e seguiu na direção da última casa da rua, bem ao lado da residência dos McKiddie. Todos esperaram por mais alguns segundos, esperando que o policial saísse. Uma mulher e um homem uniformizado pularam para fora do carro, na maior pressa.

Uma ambulância virou a esquina e parou subitamente na frente da casa ao lado. Um paramédico saltou da porta da frente, enquanto o outro estacionava o veículo desastradamente. O homem franzino de branco abriu as portas de trás e arrastou a maca para fora.

— O que tá acontecendo? — bradou Percy, que estava muito confuso.

— Qual é o seu nome, garoto? — perguntou o policial negro.

— Percy. — ele revirou os olhos e completou: — Percival McKiddie.

Algumas garotas atrás dele deram risadinhas.

— Bom, Percival, nós recebemos uma ligação anônima sobre mais uma morte. — o homem, maior do que um armário de duas portas, curvou-se sobre ele. — Não diga nada, mas nós rastreamos a chamada e ela vinha da sua casa.

Os dois paramédicos e a policial entraram no casarão rapidamente. Voltaram um minuto e meio depois, com um corpo esguio deitado na maca.

— Achamos ela na espreguiçadeira, perto da jacuzzi. — a policial relatou para o outro, apressada.

— Muito bem, coloquem-na na ambulância. — o paramédico esquelético acidentalmente bateu a maca contra a placa do automóvel. — Com cuidado!

Uma brisa ardente afastou o lençol que cobria o corpo. Era uma mulher de meia-idade. Floyd não lembrava o seu nome, mas ela aparecia com frequência na mercearia e flertava com ele enquanto calculava o preço total — lembrava-se das suas compras semanais: um pacote de tomates-cereja, biscoitos integrais, potes de chia e centeio e sucos de laranja com gomos.

A face lúrida da mulher denotava susto. Ele viu o buraco no seu peito, sobre o seio esquerdo, e notou que era similar ao que foi aberto em Peggy Ryan, sete dias atrás.

— A mulher está perfeita / Seu corpo morto enverga o sorriso de completude / Grega voga pelos veios da sua toga / Seus pés nus parecem dizer: / Já caminhamos tanto, acabou. — recitou o paramédico, com um ar cerimonioso. — A lua não tem porque estar triste / Espectadora de touca / De osso; ela está acostumada / Suas crateras trincam, fissura.

— Uau, senhor, que bonito. — falou o policial, desinteressado.

— Obrigado. — sorriu com o lisonjeio.

Depois de colocar a maca na ambulância, fechou as portas. Os paramédicos partiram. Os policiais chamaram reforço e então mandaram todo mundo ir embora.

Raven estava dormindo no chão rachado e imundo. Floyd a carregou nos braços e começou a sua caminhada noturna. Ela era leve e parecia cintilar sob o luar. Seus cabelos se ondulavam, como flagelos negros, quase roçando no concreto cinzento. Ele andou desnorteado por algum tempo, até parar involuntariamente diante da casa dos Wakahisa, como sempre fizera durante aqueles anos.


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Notas finais do capítulo

então pessoal, eu resolvi fazer uns banners de capítulo e adicionei as músicas temas deles pra não ter que ficar fazendo playlist e depois colocando nas notas da história.
espero que tenham gostado!! se sim, comentem ( e se não, comentem também o que não gostaram e pá)
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