All Out War escrita por Filho de Kivi


Capítulo 5
Whatever Happened, Happened


Notas iniciais do capítulo

Anteriormente

Após serem cercados por uma manada de errantes, Rick Grimes organiza constantes rondas no entorno da comunidade tentando minimizar qualquer fragilidade que possa por em risco Alexandria. Porém, após uma inspeção noturna, Abraham e Tom identificam uma placa de metal que pode vir a ceder a qualquer momento. Será esse o fim da Zona Segura?



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As garras das criaturas começavam a raspar no casaco de Tom, o bafo exalado por elas causavam um arrepio aterrador em sua nuca, suas mandíbulas, desesperadas em saborear carne fresca, abriam e fechavam cada vez se aproximando mais do pescoço daquele que a qualquer momento poderia virar uma presa. O peso sobre suas costas era imenso, sua testa pingava de suor mesmo com a temperatura baixa. Ele não sabia quanto tempo aguentaria, só sabia que mais uma vez aquele não era o momento de correr. Tom não podia fugir.

Oito horas antes...

Susie recolheu-se em sua casa após os recentes acontecimentos no portão, ainda sem saber como se portar diante da nova situação que se mostra presente à jovem mãe, ela ainda tenta localizar-se nesse novo mundo, como se esperasse a sintonização em uma frequência para que tudo ficasse bem. Nas últimas noites, ela não conseguiu pensar em outra coisa que não em Goodwin, será que um dia ele poderia perdoá-la por tê-lo abandonado a esmo em meio à tempestade? Será que ainda havia alguma possibilidade dele estar vivo ante ao dilúvio que se mostrara tão destruidor? Se ele e Mike conseguiram achar um abrigo seguro e após retornarem viram que sua mulher e seu filho não mais estavam ali? Será que ela fora leviana? Teria realmente pensado no filho acima de tudo, ou apenas em sua própria segurança? Talvez o espírito fútil e egoísta de outros tempos nunca tenham deixado sua personalidade por completo. Talvez ela ainda fosse a mesma menina assustada que escolheria sempre a opção mais fácil, e não a mais correta.

Olhando pelo vidro da janela, embaçado por conta do frio e da recente nevasca, e admirando o rosto de sua criança, envolto em cobertas aninhado em seu colo, observando o mundo de forma tão inocente e despretensiosa, a fazia pensar que qualquer sacrifício seria sempre por uma boa causa. Não há mais tempo para sofreguidão ou arrependimentos, Tom já lhe falara uma vez, “fazemos o precisamos fazer e não o que queremos fazer”. Provavelmente o soldador estava correto em suas observações, o mundo em que Susie se encontra atualmente só é capaz de preservar a vida de quem realmente faria qualquer coisa para sobreviver. Uma terra sem leis, onde literalmente “os fracos não tem vez”.

Um sorriso brotara em seu rosto cansado assim que começou a conjecturar em como seria a sua vida daqui pra frente. Por motivos óbvios, desde que os mortos resolveram não mais morrer, a analista de sistemas privara-se de fazer planos, não queria se iludir, ela nem mesmo sabia se estaria viva até o próximo pôr do sol. Todavia a situação se mostrava diferente agora, cercada por muros, vivendo em casas com água corrente, era totalmente prudente planejar em longo prazo. Conseguia visualizar perfeitamente Jacob com cinco anos, correndo pelo gramado ao redor das ruas, brincando com os outros garotos e tentando inutilmente lançar uma bola de futebol americano de quatorze onças, via o garotinho estudando, recebendo aulas dadas por ela mesma e por Maggie, imaginava ele mais velho dando o primeiro beijo, conhecendo o amor primordialmente, conjecturava com ele se casando, tendo filhos e se habituando a viver no único mundo que ele pudera conhecer. Além disso tudo, uma nuvem também vinha a sua mente quando imaginava como seria a primeira vez que ele perguntaria pelo pai, o que ela deveria dizer? Fingir que ele nunca existiu ou arriscar ser odiada eternamente ao contar que o abandonou sem ao menos ter a certeza de que ele estava vivo ou não. Em meio a um mar de sentimentos, quebrando suas ondas no paredão de pedra que agora se tornara o seu coração, Susie lacrimejou, de seus olhos uma lágrima salgada assim como a água dos mares, escorreu até a ponta de seu queixo, deslizando a tristeza por toda a extremidade de seu rosto.

̶ Você está bem? – Perguntou Leah. A menina acabara de descer as escadas e não teve como não perceber a tristeza inerente a mãe de Jacob.

̶ Estou... – Respondeu ela, afastando-se da janela e tentando disfarçar o choro velado.

Mas é claro que ela não estava bem, sua mente a perturbava diariamente e não parecia que tão cedo essa culpa a deixaria viver em paz. Nem mesmo a presença de seu filho nos braços, claramente em segurança a fazia sentir-se melhor.

̶ Eu sei que tirando o Vincent, todos vocês ainda me veem como uma garotinha assustada e fraca... – Os olhos da menina pareciam decididos – Mas eu sou forte, muito mais do que qualquer um de vocês imaginam... – Ela respira fundo – Se você precisar falar com alguém, pode conversar comigo... Eu sou uma boa ouvinte e sei muito bem como é ficar chorando pelos cantos, tentando esconder de todo mundo que você não suporta mais a angústia dentro de você mesma...

Susie voltou a sorrir.

̶ Você não é fraca... Nenhum de nós que chegou até aqui é, e agora temos a chance de recomeçar... Vamos poder reconstruir nossas vidas! – Finalizou.

̶ Não é o que você pensa... Não de verdade. – Refutou Leah – Eu também pensava comigo mesma que poderia viver feliz finalmente em todas as vezes que o Tom encontrava um lugar novo para nós... Mas nunca deu certo... Eu nunca me senti feliz e acho que nunca mais vou saber o que é isso! – Ela fecha os olhos brevemente, parece tentar impedir que suas lágrimas contidas brotem – Eu só quero esquecer... Esquecer o que eu vivi antes disso tudo, esquecer quem eu era, as pessoas que eu amava... As pessoas que eu perdi... – Sua voz embarga – Eu sei que eu ainda sou nova, mas acho que já sou madura o suficiente para entender uma coisa... Nada dura para sempre! Vamos todos viver aqui como se estivéssemos brincando de boneca... Vocês vão trabalhar, eu vou estudar... Só que eu sei que tudo isso aqui também vai acabar! Assim como aconteceu com os meus pais, assim como aconteceu com o Mike e o Goodwin... – Leah se aproxima ainda mais de Susie – Eu sei que você tem pesadelos com eles, eu sei por que eu sonho com a morte dos meus pais todas as noites – As lágrimas agora escorrem livremente por sua face – Você sabe o que é isso? Reviver a morte das pessoas que você mais ama todas as noites? É por isso que eu quero esquecê-los, porque é muito mais doloroso lembrar... Sorte a sua que não viu o Goodwin morrer!

Susie não sabia o dizer e mal conseguia raciocinar. As palavras da menina de cabelos loiros foram como uma faca cravada no meio do seu peito, juntando-se a outros tantos ferimentos replicados naquela mesma área. O pior de tudo era que ela estava correta em todas as suas observações, por mais dolorosas e desalmadas que fossem. Tudo ali era uma mentira, os dois anos de sobrevivência se resumiram a mentiras. Eles mentiam para si mesmos todos os dias, tentando convencê-los de que tudo o que fizeram valeria a pena, todas as atrocidades foram por um bem maior. Será que vale tudo pela sobrevivência? Perder a humanidade para se manter vivo é mesmo uma escolha correta? Fazer o que fizeram os tornavam realmente diferentes daqueles cadáveres pustulentos? Tudo o que Susie queria agora, assim como a garota acabara de lhe sugerir, era esquecer. Só esquecendo ela poderia recomeçar.

Leah perdera a inocência muito cedo, com apenas quatorze anos de idade presenciou a morte lenta de sua mãe, vítima de câncer que acabara definhando após ficar sem os medicamentos necessários. Viu o seu pai ser mordido na jugular, atacado por uma dezena de mortos vivos e ser devorado que até só sobrasse uma massa sangrenta de ossos e órgãos despedaçados. Viu o doutor Hall perder uma perna para salvar a sua vida, quando um grupo de patifes os cercara em fronte a um supermercado. A menina sente que sua alma fora despedaçada, como um vidro atingido por uma pedra, não adianta o quanto você tente, será impossível colar as peças de volta. Fora obrigada a amadurecer a força, imposta pelo cruel novo mundo a se adaptar e a entender rapidamente como as coisas funcionam. Talvez por ser jovem fosse mais fácil para ela, mas imaginar tudo o que lhe fora privado, torna a situação incontornável. Ela se sente oca, como se em seu interior existisse um imenso vazio que a impede de sentir algo novamente, na realidade, ela até se sente melhor assim, se não sentir mais nada significar não mais sofrer, talvez então ela se recolha em si mesma dessa forma.

Perto dali, em um quartinho apertado nos fundos da casa/consultório da doutora Denise Cloyd, Vincent tentava esquecer-se de todos os seus problemas, queria entregar-se de tal maneira que eles deixassem de existir, nem que fosse por poucos minutos apenas. Fazer o que ele fazia não era de seu feitio, ele sempre admirou o jogo de longa duração, onde os olhares e palavras são mais importantes do que um gesto inesperado e impensado. Contudo, como tudo no mundo, esse aspecto dentro dele também se esvaíra. Vincent queria algo agora, viver o momento mesmo que tudo sumisse como poeira depois, aproveitar enquanto pode aproveitar. Perder a perna e ganhar Leah como protegida o fez passar a pensar dessa maneira, ele não sabe ao certo se pode manter-se vivo, nem se pode realmente zelar pela vida da menina. Aliás, porque diabos ele ainda está vivo? Qual o motivo de ter sobrevivido quando precisou amputar a própria perna com um machado? Porque não sucumbira em um dos vários ataques que o seu grupo sofrera até hoje? Qual a razão dele ainda estar vivo, enquanto dois exímios caçadores como Mike e Goodwin desapareceram na floresta para não mais voltar? Esses pensamentos lhe rondam a mente todos os dias, em quase todos os momentos, e apesar da aparente inteligência superior, ele ainda não conseguira encontrar uma resposta. Ás vezes ele se sente como um joguete do universo, o bobo da corte em um mundo repleto de pessoas fortes, como se Deus estivesse rindo aos montes com a piada interna que provavelmente formulara com a sobrevivência do doutor Hall.

É por isso que ele está ali, naquele quartinho, aproveitando o momento que pode nunca mais se repetir. Suas mãos passeiam pela pele morena tomada pelo suor, as unhas, cravam-se ao encontrar-se com as partes mais sensíveis daquele belo corpo. A boca encontra refúgio no corpo feminino que se achega inteiramente entregue ao seu naquele momento. Os suspiros contidos e intermitentes tentam evitar que os movimentos mais bruscos e intensos sejam identificados por qualquer um que se aproxime daquele recinto. Nenhum dos dois sabe dizer como aquilo começou, mas sabem muito bem como terminará. As afluências se ampliam até que os dois cheguem ao clímax máximo, desacelerando o ato aos poucos, aproximando ainda mais os corpos em meio a um abraço forte, sem nada dizerem, sem mal se olharem. Um beijo sôfrego, enérgico e impetuoso, sinaliza o final daquilo que já estava feito, daquilo que não tinha mais volta.

As pernas de Rosita entrelaçavam-se ao quadril de Vicent, os dois pareciam um só organismo tamanho o enlaço. Ainda tentavam recuperar o fôlego, os cabelos grudados pelo suor no rosto e pescoço, os movimentos diafragmáticos diminuindo de intensidade, a inevitável troca de olhares, uma culposa troca de olhares. Um novo beijo obsequiado de olhos cerrados parecia tentar trazer normalidade ao momento, mas só tentava. Vincent sentia que os dois de certo modo, estavam desconfortáveis ante a situação, como em um diagnóstico de síndrome do pós-coito, não era possível saber ao certo qual o motivo do ato que acabara sendo tão prazeroso, ser finalizado com tamanho sentimento de culpa. O tempo que perdurou até que o primeiro se manifestasse fez a sala parecer um teatro shakespeariano diante de uma grande pausa dramática. E ali estavam os dois, os atores principais do próprio espetáculo, mas coadjuvantes no mundo lá fora, e como em um intervalo de um ato para o outro, um dos dramaturgos, finalmente resolveu proferir sua fala:

̶ Doutor, eu... – Rosita evitava olhar diretamente para Hall – Nós não deveríamos ter feito isso... Na verdade eu... – Ela parecia medir as palavras enquanto arrumava os cabelos, amarrando-os novamente – Eu sei que o Abraham está transando com a Holly, ela é uma vagabunda que também ajuda na construção dos muros! Eu sei o que está acontecendo e por isso me deixei levar... Não me leve a mal, eu não queria te usar, mas aconteceu... E só aconteceu porque eu estou com muita raiva daquele filho da puta!

Vincent apenas balançava a cabeça positivamente sem demonstrar nenhuma reação, fazia questão de manter uma expressão impávida. Arrumou os longos cabelos ondulados colocando-os atrás das orelhas e direcionou o olhar diretamente para a íris da senhorita Espinoza. Ele sabia o que estava acontecendo, não era a primeira vez que uma mulher fazia sexo com ele por um motivo que não ele próprio, ser usado não era o que o incomodava. O que o importunava no olhar de Rosita era que ela estava mentindo. Ele sabia que ela não havia feito o que fez simplesmente para se vingar de Abraham, ela apenas tentava se convencer disso, queria ser melhor que o bigodudo que a traíra. Na realidade, Hall sabia que os mesmos instintos carnais que levaram o ex-soldado ruivo a ir pra cama com Holly, foram os que a levaram a se engalfinhar com o doutor em plena saleta de medicamentos. Rosita não era melhor do que Abraham, e não seria mentindo para si mesma que ela iria se convencer disso.

̶ Faça o que quiser Rosita... – Respondeu de forma fria – Não se preocupe, não irei mendigar nada a você... – O homem ergueu o corpo e passou a se vestir, Rosita observava a tudo cabisbaixa, cobrindo vergonhosamente os seios com o antebraço – E não se preocupe, isso nunca aconteceu!

Amanda resolveu ampliar os seus horizontes, espairecer, literalmente respirar novos ares. Os acontecimentos no portão na última manhã, quando ela e Tom viram a morte de perto, acabaram mexendo com a mulher de uma forma que ela própria não esperava. Desde que toda essa merda se iniciou, ela nunca teve problemas em utilizar-se da força para arrebentar algumas cabeças e encarar de frente aqueles cadáveres ambulantes. Todavia, tudo pareceu tão inesperadamente diferente dessa vez, que pela primeira vez em muito tempo, Amanda sentiu medo, uma angustia que tomava conta de seu peito de forma inexplicável. Não eram as criaturas em si que a preocupava, mas sim o fato de Alexandria parecer sempre estar na corda bamba. A esperança de encontrar um lugar cem por cento seguro nunca saíra de sua mente, não completamente, mas será que essa droga de mundo não poderia mais reservar isso a eles? Estariam fadados a conviver com a insegurança de forma eterna?

Algumas tragadas em um cigarro talvez a fizesse pensar melhor, ou então apenas piorar a bronquite que a incomoda há anos. Não era a “maconha medicinal” que a solteirona costumava usar quando sentia-se sozinha demais, ou deprimida o bastante para não mais querer ver ninguém, mas talvez a nicotina a ajudasse. Ela sempre fora bela, o corpo curvilíneo sempre chamara a atenção, mas mesmo assim, sua cabeça sempre fora retalhada demais para conseguir notar qualquer elogio ou olhares indecorosos que pudessem rondá-la. Amanda tinha um verdadeiro complexo de inferioridade, sozinha boa parte da vida, sem amigas, distante da família que em sua maioria ainda morava no Nebraska, sem um relacionamento que durasse mais do que seis meses. A mulher mais parecia um vaso prestes a se quebrar, alguém que de forma alguma poderia sobreviver a algo tão extraordinário quanto o fim do mundo, certo?

Errado. De alguma forma, a reviravolta que ocorrera despertara em seu âmago algo que ela julgava inexistente, uma força vital que a fez ficar de pé e passar a controlar os próprios passos, encarar os maiores medos. Mas Amanda estava cansada, cansada de fugir, cansada de se esconder, cansada de ter que dormir com um olho aberto e outro fechado, mais principalmente estafada de lutar. Se pudesse, nunca mais usaria uma arma para eliminar qualquer patife que fosse, se isso não determinasse a continuidade de sua vida, Amanda provavelmente não mais mataria. Ao olhar para os olhos daquela manada, tentando desesperadamente adentrar a comunidade, ela pareceu ver a si mesma através das leitosas esferas intra lacrimais. Os mesmos olhos tristes e perdidos, a mesma sensação de vazio, a mesma existência inútil. O sentido de sua vida parece ter se perdido novamente, e é por isso que ela se sente cansada, é por isso que torce desesperadamente para que Alexandria seja o lugar onde ela possa finalmente descansar.

Após uma breve seção de intoxicação via nicotina, Amanda resolveu caminhar até a pequena igreja da cidadela, regida por um homem que poucos acreditam ainda estar vivo até os dias atuais, aquele que zela pelo templo como quem cuida de um precioso tesouro. Padre Gabriel é um homem cuja alma é perseguida por manchas sombrias de seu passado recente, tomado de angústia e rancor, o herege homem santo carrega consigo um fardo que nunca deixará de pesar em suas costas, tamanho sofrimento lhe causa. Os olhos pequenos e a expressão quase sempre cabisbaixa demonstram o quanto, assim como todos, ele é perseguido por seus demônios interiores. O lugar, assim que as portas foram abertas, parecia convidativo a princípio. Parcialmente iluminado por velas, o altar trás acima do púlpito cerimonial, uma grande imagem de Jesus esculpida em madeira, representando exatamente o momento de maior sofrimento do messias cristão, os assentos de madeira avermelhada, muito bem alinhados, encontravam-se vazios, com exceção de um. O Padre localizava-se sentado em um banco na primeira fila, de fronte a escultura do Cristo crucificado, o rosto triste da imagem, levemente dobrado para o lado esquerdo, parecia representar que ele sabia muito bem o que estava ocorrendo no plano terreno.

Ao se aproximar do presbítero, Amanda pode notar que ele estava finalizando uma de suas orações. Os olhos fechados, os lábios finos movimentando-se rapidamente, mesmo sem emitir som algum, as mãos com uma palma de encontro a outra. O sacerdote de pele negra e cabelo crespo, utilizando o seu usual hábito, parecia estar muito concentrado enquanto clamava aos céus, provavelmente pedindo perdão, ou clemência após dois anos de tremendo sofrimento. A mulher então sentou-se a seu lado e passou a admirar as dependências da igreja. O lugar fora “adquirido” recentemente, quando o grupo de Abraham e Holly ampliaram em algumas ruas os muros de Alexandria, e apesar de ser cuidado apenas pelo reverendo, encontrava-se limpo e organizado. Era como se aquele lugar fosse uma redenção para o padre, salvar o seu rebanho, encaminhar almas tão perdidas quanto às dos sobreviventes, incluindo a sua própria, ao reino dos céus. O problema é que não seria nada fácil conseguir cumprir tal meta, já que após tanto ter se passado e tanto ter-se feito, o mais provável é que todos já estivessem condenados.

̶ Padre? – Sussurrou Amanda ao perceber que o congregado já havia finalizado suas preces. O homem voltou o olhar de encontro ao dela e com um breve sorriso permitiu que prosseguisse – Eu precisava conversar com o senhor... Não é uma confissão, apenas uma conversa...

̶ Será um prazer! – Respondeu solícito – O que lhe aflige?

̶ Eu estou com medo padre... – Ela inspira profundamente – Eu sei que é normal estar com medo nesses dias, mas... Me sinto como se estivesse voltando a ser a mulher fraca de antes, que temia até a própria sombra. Achei que ela tinha ficado pra trás, que tudo o que eu fui havia se dissipado quando os mortos começaram a andar por aí! – Amanda passa as mãos levemente sobre o rosto – Não sei se consigo mais enfrentar aquelas coisas... Me sinto puída por dentro, não pareço mais ter forças pra continuar nessa vida desgraçada! – Só queria que tudo acabasse...

Gabriel segura as mãos de Amanda em um afago, olha em seus olhos e tenta consolá-la.

̶ Nós somos como espelhos, refletimos os movimentos de nossas vidas, nossas escolhas e nossas abnegações. Somos fruto do mundo que Deus criou para nós e é ele que nos molda, que nos faz ser realmente quem somos... Se olharmos para os lados, agora mesmo, se levantarmos os olhos sobre os muros desse lugar, o que nós veremos? Sangue, dor, sofrimento... Nós não estamos recebendo essa punição porque nosso Deus é irado e malicioso... Não! Nós apenas estamos vivendo tudo isso para aprendermos... – Amanda abaixa o olhar – Eu também já me senti assim, já senti muita vergonha por tudo o que todos nós fizemos para sobrevivermos, mas no fim das contas... Eu encontrei minha missão, entendi qual recado Deus queria passar para mim! – Gabriel levanta levemente o queixo da mulher a sua frente – Você só precisa fazer o mesmo... Basta encontrar o que está reservado pra você aqui... Todos têm um trabalho a fazer, uma função pré-determinada pelo divino. Só quando você encontrar a sua poderá sentir-se completa novamente! Só a partir daí que o medo irá desaparecer...

As palavras do padre precisaram de tempo para ser compreendidas por Amanda, ela ainda refletia sobre tudo quando retornara de sua rápida visita à igreja. A mulher que nunca fora religiosa, indagava a si mesma sobre qual seria o seu papel nesse mundo, e se o Deus tão enfatizado por Gabriel realmente tinha algo de especial reservado para ela. Recostada na varanda de sua residência, queria evitar olhar para Leah e Susie que se encontravam do lado de dentro, só queria aproveitar o frio lá fora e exalar algumas quantidades de nicotina para os pulmões enquanto refletia solitária. Olhando para a rua, observou o caminhar de um garoto, a passos lentos, deslocando-se pelas vielas da comunidade. Feições fechadas, cabelos negros lisos e volumosos, sobreposto às orelhas e já tocando os ombros, olhos grandes e negros, lábios finos. Porte condizente com o de um menino de onze anos, na cintura, um coldre preenchido por uma .38, sobre o torso, um casaco preto de lã com gola alta, para proteger o pescoço do frio. Sobre a cabeça, o detalhe que mais lhe chamara a atenção, um chapéu de xerife sem a insígnia. O menino passava em frente à varanda de Amanda, quando ao olhar para a mulher tristonha, resolve surpreendentemente cumprimentá-la.

̶ Boa tarde... – Diz ele de forma vazia, quase que por obrigação. Acompanhando a saudação, um pequeno movimento abaixando levemente a aba de seu chapéu com o indicador e polegar esquerdo.

̶ Oi... Você é Carl Grimes, não é?

O garoto que já parecia querer seguir andando, para instantaneamente, vira-se de encontro a sua questionadora, e responde em seguida.

̶ Sim, e você é uma das novatas...

̶ Já conheci o seu pai... Um grande homem! – O menino apenas balançara a cabeça positivamente antes de seguir o seu trajeto.

Amanda não sabia explicar o motivo, mas a presença do filho de Rick naquele instante trouxe uma angústia repentina em seu interior. Parecia que seu peito estava sendo apertado fortemente, uma sensação estranha que lhe subia a garganta. Era como se de alguma forma a mulher soubesse que algo de ruim poderia estar prestes a ocorrer. Um arrepio subiu-lhe pela espinha juntamente a um frio na barriga, em resposta, ela apenas respirou fundo, fechou os olhos e voltou a fumar o seu cigarro, tentando ignorar o momento.

Oito horas depois...

Rick Grimes chegara o mais rápido que pode após ser avisado por Abraham que parte do muro estava cedendo. Junto a ele e o gigante ruivo, Grimes também trouxe consigo Tobin e Morgan. Tobin era um dos moradores mais antigos de Alexandria, praticamente um dos fundadores juntamente com Douglas Monroe, ex-patrono da sociedade. Seus longos cabelos negros e lisos sempre sobrepostos às orelhas, pareciam combinar com o rosto fino e comprido, os olhos pequenos e os usuais casacos de couro negro. O homem parecia tranquilo, um dos trabalhadores na construção dos muros, liderou suas equipes até a chegada de Abraham, que a partir daí tornara-se o mandatário de tais tarefas. Já Morgan era um poço de mistérios, sempre sério e recluso, resumia suas conversas a poucas frases e praticamente só era visto em seus afazeres na cozinha ou na casa de Michonne, com quem estava tendo um caso. O homem negro de mais de quarenta anos, cabelos crespos e curtos e barba rala, demonstrava no rosto sofrido sua difícil história pregressa. Sua esposa morrera logo no início de todo o caos e seu filho, transformado em um dos mortos vivos após uma mordida, viveu por meses acorrentado em seu porão até Morgan ser resgatado pelo ex-xerife Grimes. Os dois tinham uma ligação muito forte, já haviam se ajudado mutuamente em diversas oportunidades e sem sombra de dúvidas o seguiriam fazendo sem pensar duas vezes.

Mas naquele momento quem precisava de ajuda era Tom. O homem tentava de todas as maneiras suportar o peso da placa sobre as suas costas, enquanto que as feras, atiçadas, tentavam embrenhar-se pela fresta de qualquer maneira. O metal envergava-se cada vez mais e por mais que Price se esforçasse, não havia força suficiente em uma única pessoa que pudesse suportar tal peso e pressão. Sua expressão era de dor, sua testa enrugara-se por conta do esforço e seus músculos já se encontravam a beira de estiramento quando Rick, Abraham, Tobin e Morgan chegaram finalmente para dar-lhe apoio. Tobin fora o primeiro a correr na direção da placa e, com as mãos estendidas passou a fazer força contrária ao movimento dos errantes que tentavam derrubá-la.

̶ Abraham, traga um de nossos carros grandes, precisamos de um contrapeso maior para essa parte do muro! – Ordenou Rick, o ruivo partiu imediatamente em disparada sem contestar – Como essas placas podem estar cedendo? – Retrucou Rick correndo para ajudar os dois homens que tentavam impedir que a parede cedesse. Morgan fez o mesmo.

̶ No começo nós utilizávamos cimento para fixar os pilares e depois soldávamos as placas! – Exclamou Tobin em meio a todo o esforço – Só que a porra do cimento foi acabando e então tivemos que usar areia mesmo, mas droga! Parecia bem firme quando nós colocamos! Ninguém que ajudou na construção do muro podia imaginar que...

A explanação de Tobin fora interrompida quando um dos mortos, ao colocar o braço entre a fresta, conseguira cravar suas unhas no ombro do homem que distraíra-se enquanto se explicava. Um grito de dor fora exprimido assim que o sangue começou a escorrer, parte de seu tecido epitelial fora arrancado a força pela mão pútrida do patife, que tentava agora alcançar mais alguma parte daquele que, para ele, não passava de uma apetitosa e nutritiva refeição. Tobin levou uma das mãos ao local do ferimento, tentando conter os esguichos de sangue que agora manchavam a placa de metal e Tom, que encontrava-se exatamente a seu lado. Caindo de joelhos enquanto urrava por conta da dor terebrante, ele não parecia mais raciocinar plenamente, só gritava, como se suas súplicas pudessem fazer tudo passar. O cheiro do sangue e o brado emitido por Tobin pareceram atiçar ainda mais os monstros do outro lado, era como se toda a manada estivesse se deslocando para aquela única placa. Não havia mais como suportar, não havia mais nada a se fazer.

̶ Afastem-se! Vai cair! – Gritou Rick a plenos pulmões.

Todos começaram a se afastar rapidamente, a placa de metal que resguardava parte da segurança dos muros de Alexandria acabara de ceder. Os primeiros mortos que por ali entraram, fizeram questão de recepcionar Tobin primordialmente, derrubando-o de vez ao solo e cravando seus dentes em seu abdome e rosto, cerca de dez criaturas disputavam o corpo do homem, como urubus brigando por carniça. Os errantes passaram a adentrar a comunidade livremente, em uma quantidade absurdamente grande. Se não fossem logo controlados, provavelmente aquele seria o fim da zona segura.

̶ Precisamos de mais gente aqui! – Exclamou Rick puxando com sua mão esquerda uma machadinha da cintura e utilizando-a com maestria com abrir o crânio de um dos patifes.

̶ Não dá Rick! Eles são muitos! – Vociferou Morgan, visivelmente assustado.

̶ Eu sei que podemos! – Voltou a falar Rick – Se tivermos gente suficiente vamos conseguir limpar tudo isso! – Ele faz uma breve pausa enquanto golpeia mais uma criatura – Precisamos da Michonne!

Tom segurou nas mãos o seu martelo e passou a fazer o que já se tornara hábito. Demonstrando grande habilidade, Prince golpeara um errante de cima para baixo com enorme força, abrindo um rombo entre os temporais, ao mesmo tempo em que afastava um segundo com o antebraço e já aproveitava o movimento para acertar o occipital de um terceiro, levando a criatura ao solo, enquanto massa encefálica e fluidos fétidos escorriam pelo buraco recém-criado. Um grito de dor e agonia fizeram com que o ex-soldador interrompesse os seus movimentos repentinamente, ele, que estava na linha de frente da ofensiva virou o rosto no mesmo instante a procura da origem de tal lamúria, afinal, havia dois companheiros no fronte, e muito provavelmente um acabara de ser ferido. Fora aí que o universo resolveu lembrá-lo, da pior forma possível, o quanto é necessário ter total atenção ao se lidar com essas criaturas, e o quanto, apesar de lentas, desengonçadas e descoordenadas, elas podem ser perigosamente letais. O recado veio na forma de uma vigorosa dentada em seu antebraço esquerdo, bem próximo a articulação do cotovelo. Com o martelo, Tom eliminou a criatura que o atacara após um poderoso golpe no centro de seu parietal, exterminando de uma vez com aquele cadáver. Price arregalou os olhos, deu dois passos para trás antes de olhar para o ferimento que acabara de lhe ser infligido. O tecido arrancado, o sangue escorrendo, os ossos expostos. O coração de Tom Price acelerou tal qual um guepardo, assim que ele começou a conjecturar que sua morte estava próxima.


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Notas finais do capítulo

Hei!

Resolvi focar esse capítulo no desenvolvimento de alguns personagens, para trazer a eles uma profundidade maior... Particularmente, eu gostei...

Até semana que vem!



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