Destinados escrita por Tsuki Dias


Capítulo 7
6 - Cura-me


Notas iniciais do capítulo

- Me chame de Mikhil.
by Mikhil



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– Você demorou, Kira! – Leo reclamou preocupado, recepcionando-a nas margens do acampamento. – Céus! Que confusão você causou! Podia ter morrido!

– Não puxo brigas que não posso ganhar. É umas das regras mais importantes das batalhas. – ela retrucou séria, reerguendo o campo de força. – Os aspirantes foram fichinha, mas se o tal ‘doutor’ quisesse me enfrentar... Não sei se ganharia.

– Precisa tomar mais cuidado!

– Sim, sim, vou tomar. Agora temos dinheiro suficiente para viajarmos com conforto. – ela sorriu orgulhosa, prendendo o cabelo no alto da cabeça. – Nunca subestime uma imagem feminina.

– Você é maléfica.

– Só com quem merece. – ela riu. – O que me lembra: Lys, comece a estudar os bolsos dimensionais e feitiços de extensão.

– Tudo bem... Ah, pegamos um prato para você. – Lissa falou solícita, entregando-lhe o embrulho. – Já que ficou brincando a noite toda, achamos que estaria com fome.

– Conseguiram comprar três?

– Você não é boa com contas. – a ruiva riu, notando o rubor no rosto da prima.

– Obrigada... – agradeceu emocionada, sentando-se de fronte ao fogo que os primos acenderam.

– Vou dar um pulo no rio para tirar o suor. Tudo bem? – Leo anunciou.

– Estou com os ouvidos a pino. Finque a Yu no chão e deixe a Min a postos, perto de você. – ela explicou, entre bocadas, apontando para as adagas. – Tome cuidado.

– Ok, ok. – ele respondeu, sumindo por entre as árvores.

– As adagas dele têm nome? – Lissa perguntou chocada.

– Por que não teriam? Toda alma deve ser chamada por seu nome. Veja minha espada. Nunca deixaria de chamá-la de Zeela. Assim como você não vai deixar de chamar o Athame de Athame nem o Boline de Boline. Estou errada?

– Não.

Não falaram nada durante os segundos seguintes. Lissa se limitava a observar as mãos que estavam sobre as páginas do grimório que pegara para estudar, enquanto Kira comia, com os olhos fixos no fogo. Precisavam dar um jeito nas coisas. Precisavam bolar um plano para sobreviverem àquela experiência. Claro que seria pedir demais saírem inteiros, mas pelo menos vivos tinham que estar. Era só isso que queriam.

– Você acha que vamos conseguir? – Lissa perguntou após um tempo. – Que vamos voltar a salvo para casa?

– Otimismo inicial, prima! Se tudo correr conforme o plano, ficaremos bem. – ela sorriu, jogando a embalagem vazia no fogo, para ser incinerada. – Sabe, vocês estão se saindo bem nesse primeiro momento. Seus pais ficariam orgulhosos.

– Eu já não tenho tanta certeza. Eu ainda estou esperando acordar. – ela riu triste, acariciando as folhas amareladas sob seus dedos. – Mas isso não vai acontecer, não é?

– Temos um ciclo para terminar essa jornada, o que na sua terra seria um ano e meio. Você é poderosa, só precisa despertar apropriadamente. Tenha calma e aproveite, algo assim não acontece todo dia.

– Devo encarar isso como um jogo?

– Não. Deve encarar isso como uma escalada ao Everest. - ela falou pausadamente, fazendo-se entender completamente. – O bom é que teremos os equipamentos necessários. Não vou deixar te faltar oxigênio.

– Não quero morrer aqui.

– Nem eu espero que morra. Não vou deixar.

– A água do rio é quente! – Leo voltou animado, com uma toalha sobre o ombro e os cabelos molhados. – Melhor aproveitarem.

– Estamos numa área de termas. Alguns dizem que têm poderes curativos. – ela explicou com um sorriso. – Lys?

– Claro! – a menina saltitou, tirando seus pertences da mochila. – Sabão neutro?

– Outra regra de sobrevivência. Quanto menos você cheirar, menos visível vai ficar. Agradeça a Ceci pela atenção. – ela riu, pegando a pequena bolsa que sempre carregava. – Tome conta aqui, D, tente não chamar atenção.

– Sim, sim. Divirtam-se.

– Vamos, Lys. – Kira passou à frente, abrindo caminho até o rio e protegendo a prima de eventuais ameaças. – Vamos aproveitar e tentar abrir sua veia mágica.

– Como assim?

– Pense na magia como sangue, algo que corre em seu corpo e flui como calor. Pense que é parte do seu corpo e corre em suas células, mas por falta de prática seus dutos mágicos devem estar secos. Minha intensão é fazê-la fluir.

– E um banho quente ajuda?

– Banho quente faz milagres, Prima. – ela sorriu, quando pararam às margens quentes do rio. – Vá primeiro. Fico de vigia.

– Você se preocupa demais. – Lissa reclamou, antes de se despir e entrar na água. – Faz bem relaxar depois de tudo o que houve.

– Estávamos relaxados quando saímos do castelo... Pensei que não faria mal, já que o Tio estava conosco... – o controle que ela demonstrou para não chorar naquele momento era imensurável. – Mas ele se foi e agora estamos sozinhos. Não posso mais me dar ao luxo.

– Divida o fardo conosco, então. Não precisa aguentar tudo sozinha.

– Nossa, mal começamos e já estou levando sermão? – Kira riu, gesticulando para ela se aproximar. – Cuide bem de mim, Prima. Farei o mesmo com vocês.

– Não se sacrifique por nós. Precisamos de você inteira. – naquele momento, Lissa parecia muito mais velha do que era. Mais sábia. – Estamos no mesmo barco.

– Vou tentar. Agora vire-se, cruze os braços sobre o peito e baixe a cabeça. – Kira pediu, mostrando para a prima o que devia fazer. – Visualize o corredor com as portas e se concentre naquela que tem sua magia.

Lissa obedeceu com um suspiro e, antes de fechar os olhos, observou seu reflexo tremulante na água uma última vez. Queria registrar na memória sua imagem enquanto ainda a tinha: os cabelos alaranjados, a pele rosada meio sardenta, a marca escura perto de sua orelha e seus estranhos olhos cinzentos. Essa era ela no limite entre a razão e a insanidade, essa era sua face assustada enquanto ouvia Kira murmurar e flutuar as mãos por suas costas nuas. Talvez, aquela seria a última vez que seria a Lissa, talvez a partir dali tivesse que se tornar Lysvrill, a Pilar.

Mas... Que futuro teria se abraçasse esse destino?

– Visualize a porta agora, Lys. – Kira pediu.

Quando o extenso corredor e a minúscula porta se materializaram a sua frente, Lissa sentiu pressões em pontos no decorrer de suas costas, acompanhando a espinha até a base do crânio. Eram fortes, mas não machucavam. Eram como uma massagem com a ponta dos dedos. Nós se desfizeram de suas costas e uma força estranha começou a preenchê-la.

– Abra a porta, Rany. – ouviu em sua cabeça, quando uma chave velha se materializou em sua mão. – Abra a porta.

A porta que devia abrir, a minúscula passagem, se mostrava a ela agora como um portal colossal, grande e imponente com peças de ferro e madeira nobre, assim como as portas principais do Castelo de Kira. Mas ainda não tinha fechadura nem acima nem abaixo. Era como se não quisesse ser aberta... Ou era ela que não queria abrir.

Com uma última dose de coragem, esticou o braço, enfiou a chave no ar, como se ali estivesse uma fechadura invisível, e girou o pulso como faria na porta de casa. Um estrondoso som de trancas se movendo ecoou em sua mente e a grande porta se moveu.

E aquela luz a cegou totalmente.

– Rany! Rany está me ouvindo? – uma voz estranha soava preocupada em seus ouvidos. - Rany! Acorde!

– Mãe... Por que estão vendo a TV tão alta? – ela resmungou, jogando o braço sobre os olhos.

– Acorda, Bela Adormecida. Vista-se ou vai pegar um resfriado. – a voz de Leo soou em seus ouvidos e teve certeza de que não estava em casa. – Não vi nada, não se preocupe.

– Ah... – ela gemeu, sentando-se enquanto segurava a toalha sobre o corpo. – Anotaram a placa do caminhão que me atropelou?

– Digamos que foi mais uma surra de Muay thai. – Kira sorriu. – Você abriu a porta, Lys. Parabéns.

– Por que não me sinto nada feliz? – ela perguntou sôfrega, segurando a cabeça. – Meus olhos doem...

– Vai passar, além do mais... – a voz de Kira adquirira um toque de suspense, quando pousara algo em seu colo. – Você está linda, Lys.

Com dificuldade, Lissa pegou o objeto e se forçou a abrir os olhos. O que viu a chocou. Não pelo reflexo no espelho ser de outra pessoa, não pela visão dos cabelos mais avermelhados, não pela pele mais pálida e sem sardas, puxada para a delicadeza de uma pérola, ou pelas delicadas sobrancelhas que a emolduravam. Não. O que a chocou foi ver, no reflexo que a encarava, um par de olhos azul-esverdeados profundos, mais profundos que o mar do caribe, mais brilhantes que safiras.

Eram lindos.

– Ai meu... – ela exclamou sem fôlego, apalpando o rosto. – O que...?

– Você ganhou suas cores. – Kira explicou com orgulho. – Azul combina com você.

– Como...? – Lissa parou, olhando de relance para o rio. – Isso é...

– É você, Rany. – o tom de Kira era definitivo. – Dgrov, vire-se, damas precisam de privacidade.

Leo suspirou uma vez e fez o que foi pedido. Kira ajudou Lissa a se vestir, amparando-a até que suas pernas voltassem ao normal. As perguntas de Lissa eram capciosas e parecia que não fora somente seu corpo que mudara. Sua mente estava mais afiada que nunca.

– Isso de receber as cores... Seria mais ou menos como entrar na puberdade?

– Seria mais como romper a crisálida, borboleta. – Kira explicou séria, mas sem desmanchar o sorriso. - Vá descansar, Rany. Sairemos cedo amanhã. Dgrov, pode levá-la.

– Está fazendo de novo. – eles reclamaram.

– Eu sei, mas não é bom eu ter companhia quando baixar guarda. – ela decretou, apontando o caminho que tomaram. – Boa noite.

– Cuidado. – Leo pediu antes de pegar Lissa nos braços e voltarem pela trilha.

Kira acompanhou os movimentos dos primos e se desligou quando chegaram ao acampamento. Testou a água e despiu-se de seu armamento, dando-se um tempo para analisá-lo.

Como o de Leo, sua proteção também era feita com material especial, mas ao contrário do dragão que protegia o primo, estava sob os cuidados do raro Tigre de Fogo da Montanha Vermelha, o lugar mais ermo que havia dentro da Dimensão da Morte, onde somente os sábios e os mortos podiam pisar.

O tecido feito do pelo do felino só podia ser obtido uma única vez em cada milênio e somente na morte do animal, o que fazia todo o seu poder ser perdido. Entretanto, mesmo morto, o tecido ainda serviria como a armadura mais perfeita, protegendo o usuário do jeito que somente os magos conseguiam. Isto é, se o guerreiro fosse um tigre nato.

Sua roupa consistia em um macaquinho justo frente única feito com o tigre, velando os ombros usava uma jaqueta preta, com zíperes nos braços para retirá-los. Suas botas eram próprias, couro mágico enriquecido com gemas, deixavam-na mais rápida e ágil. Não que precisasse, mas sempre era bom ter um bônus.

Era uma ótima proteção. Talvez se tivesse a vestido antes, não estivesse em perigo agora.

Suspirou amargamente e travou a respiração ao tirar o tecido grudado no sangue infeccionado do corte, que já deveria ter cicatrizado.

– Droga... – gemeu ao entrar na água quente. – Não vai curar. Estou sem forças.

O corte era fundo e minava sangue. Qualquer tentativa de primeiros socorros se mostrou dolorosamente inútil. Lavou-se com cuidado e tentou fazer o mesmo com o ferimento, na esperança de retirar o veneno que impedia sua cura. Doeu, doeu demais e não evitou o gritinho que escapou abafado de seus lábios.

Xingou a sonolência que a dominava e apressou-se em sair da água – não ia dar aos inimigos uma trilha fresca para seguir, muito menos seu cadáver afogado para dissecar. Secou-se com a toalha e vestiu uma camisa grande, para velar seu corpo enquanto lavava as peças ensanguentadas, sentindo seu sangue escorrer mais rápido do que devia, roubando o pouco de consciência que ainda tinha.

Preciso de ajuda. – ela pensou quando se sentiu leve e as águas do rio vieram em sua direção.

E foi aí que ele se mostrou.

Foi rápido e imperceptível. Num átimo estava a ponto de se afogar, no outro estava de costas sobre a terra aos pés de uma das árvores que os rodeavam. E o mais surpreendente foi perceber que o ‘doutor’ – o atraente e suspeito doutor – a imobilizava numa posição estimulante enquanto começava a tirar-lhe a única peça de roupa.

– Desgraçado. – murmurou raivosa, livrando-se daquela posição e se levantando em modo de ataque. – Então é esse seu jogo!

Ele não respondeu. Com movimentos fluidos e confiantes, viu-o se pôr em guarda e partir para cima dela, atacando-a com mãos espalmadas, quase num estilo passivo. Não tinha força alguma em suas investidas, mas a técnica era poderosa. Se ele a tocasse, estaria presa.

Desviou-se dele o melhor que pôde e se preparou para atacá-lo. Entretanto, seu estilo ativo seria inútil ao alcance daquelas mãos. Se o atacasse com força, ele a direcionaria de volta; e já tivera péssimas experiências em enfrentar a própria força.

– Agradeceria se me deixasse fazer o meu trabalho. – ele pediu naquela voz de tom sério e firme, mas não menos gentil e sensual.

– Vá para o inferno. – ela brandiu, atacando-o com fúria, cansada de atuar naquela dança sem sentido e sem se importar com o que ele veria sob sua roupa fina.

Quando ela o atacou, ele se esquivou lindamente. Num rápido movimento, sacou uma seringa das vestes e injetou nela, logo acima do machucado. O desconforto que Kira sentia inicialmente foi anestesiado quase imediatamente e seu sangue parou de minar, numa breve prévia do que viria a seguir: mais dor.

Uma dor excruciante tomou-lhe conta do corpo, partindo da ferida aberta e se alastrando por cada filamento de seus músculos, inundando seu cérebro com sinapses nervosas. Caiu no chão sem forças para combater o que acontecia em seu corpo, mas forte o bastante para segurar os gritos no fundo da garganta. Não queria deixar seus primos à mercê daquele cara e muito menos dar-lhe prazer em ouvir seus gritos de agonia.

– Relaxe, não vai demorar. – ele falou calmo ao se ajoelhar ao seu lado, antes de cobri-la com seu corpo. – Relaxe, senão a dor vai piorar.

Ela se debateu, golpeando-o o máximo que podia, na tentativa de criar uma brecha para escapar. Tinha que sair de perto dele, ir para o acampamento e se refugiar lá até estar em boa forma. O campo de força e as adagas de Leo dariam conta de afastá-lo pelo tempo necessário, só precisava chegar lá.

Apesar da força com que ela o golpeava, parecia não surtir efeito, pois ele parecia se recuperar quase no mesmo instante. Antes que Kira pudesse se levantar e fugir, ele a imobilizou com seu corpo, prendendo suas mãos acima da montanha de cabelos tricolores com apenas uma das mãos grandes e fortes. Suaves, embora um pouco calejadas em resultado de uma vida de treinamento. Taiga tinha mãos como aquelas, mas não tão gentis. Enquanto uma se ocupava em encarcerá-la, a outra jazia em punho no chão, segurando delicadamente uma cápsula frágil de aparência suspeita.

– Abra a boca.

– Me solta! – ela gritou entre dentes, se debatendo com ferocidade, apesar da dor. – Solta!

– Só abra a boca. – ele pediu com delicadeza, levando a cápsula até os lábios dela. – Por favor.

– Já disse para... – ela não terminou a ameaça. Com a oportunidade, ele enfiou os dedos na boca dela e estourou a cápsula, dando-lhe o líquido espesso e escuro para beber.

Pânico a dominou naquele momento. Nunca confiara em medicamentos daquele tipo, pois pelo que sabia aquilo podia ser veneno. Tentou cuspir, realmente tentou, mas ele a impediu. Com a mão livre, tampou seu nariz e a boca, obrigando a garganta dela a se abrir e permitir a passagem da coisa. Ela engasgou e tossiu sem ar quando ele a liberou.

– Relaxe. – ele dizia com calma. – Vai passar logo.

Mas Kira não estava mais ouvindo. Uma dormência assustadora dominou seu corpo e ela não pôde evitar ficar estirada no chão, naquela posição obscena e reveladora. O mundo girava e sentia-se cada vez mais distante, alta, pouco consciente do que acontecia ao redor. Naquele estado, ele podia fazer qualquer coisa com ela que não teria resistência alguma.

E então passou. A tontura, a náusea, a dor e a dormência passaram como mágica e por mais horrível que se sentisse, estava alerta, energizada e pronta para arrebentar quem quer que a ameaçasse. Mexeu-se incerta e virou-se, dando de cara com aqueles olhos bicolores que a olhavam com uma doçura atípica, que nenhum guerreiro do nível dele teria normalmente.

– Melhor? – ele perguntou com um sorriso, tocando-lhe o rosto com cuidado. – Mais um pouco e o veneno teria chegado ao coração. Você tem uma resistência muito boa, sabia? Com aquela quantidade, um Hominídeo grande morreria em cinco passos.

– O que fez comigo? – sua voz não passou de um sussurro fraco.

– Salvei sua vida. – ele sorriu, entornando uma garrafa d’água nos lábios secos dela. – Mas ainda tenho muito a fazer nesse ferimento. Se permitir, te deixarei nova em folha.

– Por quê? - perguntou confusa, apoiando-se nos cotovelos.

– É o meu trabalho. - ele sorriu, se afastando dela e voltando para perto da árvore, onde sua mala de trabalho jazia aberta. – Me sentiria mal se você morresse antes de eu tentar. Está bem para se levantar? Preciso suturar.

– Como sabia?

– Tive dúvidas na primeira vez em que a vi. – ele revelou, preparando seu material de sutura. – O cheiro de sangue me confundiu um pouco, pois... Bem... Quando uma moça bonita cheira a sangue, os instintos masculinos afloram... Mas depois daquela hora, quando você quase desmaiou por usar energia demais... Foi aí que soube. Você se esforça demais.

Kira não respondeu. Com dificuldade obrigou seu corpo a rastejar até ele. Ele virou-se e a observou preocupado, enquanto enfrentava aquela dura tarefa de se mover. Quando finalmente parou na frente dele e se sentou sobre seus joelhos, o alívio estampou as expressões de ambos, embora a dela ainda fosse maculada pelo desconforto.

Kira encarou aqueles olhos díspares e procurou neles a ameaça que tanto especulou. Procurou mentira e procurou a morte, procurou também a sutil nuance dos traidores e a frieza dos assassinos disfarçados. Nada. Ele era o que dizia ser, era honesto e de alguma forma sentia que podia confiar nele.

Mesmo com aquela sombra pairando em seu olho vermelho.

– Você vai precisar tirar essa camisa. – ele anunciou ao fechar os olhos e virar o rosto. Em parte para não espiá-la e em outra para esconder o levíssimo rubor em suas faces.

Ela definitivamente não devia ter achado aquilo fofo, de jeito nenhum.

Com o pouco de energia que sobrou, trocou a camisa por um delicado conjunto de renda, composto por uma blusinha curta de alças finas e uma calcinha de laterais largas, mas transparentes. Cinza e creme eram as cores e não fazia ideia por que raios colocara aquilo.

E num suspirou dolorido, ela se deitou à frente dele e esperou.

Ele olhou aquele corpo com certa admiração. Para uma guerreira do seu nível, a ausência de cicatrizes era admirável! Sua cura natural devia ser tão boa que não deixava marcas. Afastou-lhe a barra da blusa do ferimento e começou seu trabalho, deixando o pensamento viajar um pouco no processo.

A pele dela era aveludada, macia como pétalas. Nunca tocara pele tão fina desde que se empenhara naquela profissão. Nenhuma de suas pacientes habituais era tão delicada, e mesmo que fossem nunca teriam aquele tipo de pele. Essa menina era importante, muito importante.

Livrou-se daqueles pensamentos e limpou a mente quando começou a trabalhar no ferimento. Se deixasse aqueles pensamentos tomarem forma, ninguém sairia ileso.

– Não foi naquela hora. – ele comentou, limpando o sangue que escorria quando passava a agulha pelas bordas da ferida. – Ninguém naquele lugar teria poder para te ferir.

– Não importa.

– Importa sim! É covardia atacar uma mulher! Principalmente estando nua e sem condições de se proteger! – seu tom suave ganhou força e indignação. – É a traição mais hedionda.

– Não foi culpa dele.

– Não justifica. – ele decretou.

– Não seja hipócrita. – ela se levantou de repente e o olhou nos olhos, mortalmente séria. – Imagine um comerciante fraco, vendo uma arma sendo apontada para a cabeça de sua mulher enquanto era indagado por mim. Se uma vida estivesse em jogo, até mesmo você trairia tentando ser heroico. Ninguém está imune a isso.

– Ainda assim... – ele suspirou desistindo de combater aquele ponto. Ela estava certa. – Sinto muito. Esse assunto me deixa... Instável.

– Eu vi. – ela comentou cansada. – A culpa foi minha por ser pega de surpresa. É a primeira regra numa guerra. Demorei a me vestir e... Perdi mais que alguns centímetros de pele e sangue.

– Sinto muito. – ele pediu, permitindo-se levar a mão ao rosto dela e acariciá-lo com o polegar. – Mas acho que você não deveria se cobrar tanto.

– E eu acho que você opina demais. – ela retrucou, se afastando daquele toque e do que ele a fez sentir com o gesto. – Principalmente quando se quer continuar com a língua na boca.

– Se for você a tentar, vou gostar demais. – ele riu.

Kira não respondeu, desviou o rosto rapidamente e deitou-se novamente, numa tentativa de esconder o desconforto emocional e de fazê-lo terminar logo com aquilo, para poder se vestir apropriadamente e ir embora. Quando estivesse segura no acampamento, rezaria todos os cânticos para todos os deuses para que não deixassem aquele homem cruzar seu caminho novamente.

Ele a deixava instável e isso era algo que não podia acontecer naquela missão.

– Está doendo? – ele perguntou ao desinfetar a sutura.

– Me incomoda o jeito como você fala.

– Peço perdão por isso. – Kira podia sentir o sorriso na voz dele, enquanto seu toque suave tratava de sua ferida. – Normalmente sou mais profissional.

– Quer dizer que perdeu a linha comigo?

– Algo do tipo. – ele sorriu quando terminou de cobrir os pontos. – Com sua cura natural, depois de amanhã estará nova. Evite passar sal se não quiser cicatrizes. Quer que eu dê um jeito na sua perna?

– Não... – o gemido de dor que saiu dos lábios dela reacendeu seu profissionalismo. – Agora que não estou mais envenenada, vou me curar sozinha.

– Onde mais dói? – perguntou, ajudando-a a se sentar, recostada no tronco da árvore onde estivera. – Precisa de mais uma dose para dor?

– Estou bem. – mas o gemido que emitiu desmentia a afirmação. – Droga... Estou fraca... Se você quiser me matar agora não vai ter problemas.

– Não sou tão cretino assim. Esperaria você se recuperar primeiro. – seu sorriso casava bem com seu rosto, mesmo com aquela sombra em seu olho. – Vou te dar outro analgésico, mas temo te deixar sonolenta demais.

– E se me deixar assim, posso desmaiar tamanha a dor que virá, certo? – ela riu e o som de passos se fez ouvir por perto.

Antes que Kira pudesse falar qualquer coisa, o médico a acolheu em seus braços e se postou em posição de defesa, com as mãos em garras e ouvidos a pino. Aquele ato... Aquele ato deveria ter ativado as defesas pessoais de Kira, deveria ter feito sua pele repudiar o toque dele e definitivamente devia ter feito-a se debater naquele abraço para fazê-lo libertá-la. Mas não, sentiu-se amparada, protegida como somente naquela vez... Naquele momento, sentia que não estava sendo protegida por ser a Princesa. Ele a protegia porque era alguém que precisava de proteção. Somente alguém.

Aquela constatação quase a fez chorar. Quase.

– Kira? – a voz de Leo se fez ouvir quando estava perto o bastante. – Kira, você está bem?

– Estou bem! – ela respondeu, segurando a mão do médico e sinalizando para ficar em silêncio. – Caramba, Primo, você me assustou!

– Está machucada? – ele perguntou e ouviram-no se aproximar. – Estávamos preocupados.

– Não venha aqui! Estou nua. Precisava recarregar as energias com um pouco de meditação. Desculpe se demorei.

– Tem certeza de que está bem?

– Não vou morrer tão cedo. – ela riu. – Rany está bem?

– Sim, está mais forte, agora deve estar lendo um daqueles grimórios que você lhe deu. Ela vai dar trabalho. – ele riu. – Vê se não demora.

– Ok. Diga para não tentar nada ainda. É cedo demais.

– Tudo bem. – ele concordou e se afastou.

Esperaram alguns momentos antes de suspirarem aliviados. Kira ainda estava nos braços dele quando ele se deu conta da posição em que estavam: as pernas dela se entrelaçavam ao redor das dele, de modo que a carregaria no colo caso precisassem fugir rápido. Seu braço sustentava o tronco dela, cuja mão repousava no lado da cintura imaculada. Os seios dela se mostravam um pouco sob a blusa que usava e se comprimiam em seu peito, em decorrência do abraço que a colocara. Uma de suas mãos estava pousada em seu bíceps enquanto a outra segurava fortemente seu pulso, quando o impediu de atacar o jovem que os assustara. E o rosto dela... O belo rosto que abrigava aqueles olhos dourados... Estava tão... Perto...

– O quê? – ela ruborizou ante aquele olhar que estampava seu rosto.

– Devia ter dito a ele. – disse por fim, exteriorizando uma das muitas dúvidas que rondavam sua cabeça. – Por que não o fez?

– Não queria preocupá-lo. – ela revelou encarando-o nos olhos. – Entretanto, devia deixá-lo conhecê-lo, Doutor.

– Por que não o fez? – ele perguntou novamente, com sua voz não mais alta que um sussurro, se aproximando devagar do rosto dela.

Kira não respondeu. Num rápido movimento investiu contra ele e o derrubou de costas sobre o chão, imobilizando-o o melhor que podia em seu pequeno tamanho em comparação com o dele. Não houve reação, tampouco impedimento. Ele simplesmente manteve o contato visual com aqueles olhos dourados, permitindo-se ficar estirado sob o corpo dela, imobilizado por aquelas mãos frágeis e ao mesmo tempo poderosas.

– Seu pagamento, Doutor. – ela falou, mostrando-lhe duas moedas douradas.

– Não.

– Não?

– Não. – ele levantou a cabeça, ficando mais próximo do rosto dela. Perigosamente próximo. – Você não pediu meus serviços e nem os fiz com a intenção de ser pago. A confiança que teve em mim agora foi mais que suficiente.

A surpresa impediu que ela respondesse. Aquele cara... Por que ele lhe despertava aquela sensação estranha? Por que sentia aquele frio na barriga, mesmo com a adrenalina não pulsando mais em seu sangue? Por que confiava nas palavras que saíam de sua boca, mesmo com a visão nítida da ameaça sombria que assolava aquele olho?

Por que algo nela implorava para ter a chance de tê-lo?

– Diga a verdade.

– Já não disse a verdade? – ele riu. – Você é estranha.

– Ninguém é tão altruísta assim. Diga o que quer. Duvido que minha gratidão seja tudo.

– Para ser sincero, se te pedisse um beijo e a chance de vê-la de novo, você ficaria brava. – Kira percebeu sua tentativa de fazer piada, mas o odor que o envolveu naquela hora não deixava dúvidas do que ele queria... E sua reação positiva a isso a assustou. – Estou sendo antiético.

– Totalmente. – concordou num fiapo de voz.

– Eu disse que tinha perdido a linha com você. – seu sorriso convidativo acompanhou um olhar sensual e matador. – Perdoe minha franqueza, senhorita.

– Espero que valha a pena, Doutor. – e sem desviar os olhos dos dele, ela o beijou.

A princípio, não passou de um roçar de lábios, como um selo de contrato, sem emoção ou afinidade. Kira queria distância daquele homem, pois algo lhe dizia que seu destino mudaria se ele entrasse em sua vida. E não tinha ideia do que aquilo significava. Mas no momento em que os braços dele a envolveram, obrigando-a a senti-lo e deixando que ele a sentisse, foi que se perdeu de seu dever. Entregou-se àquele beijo com relutância no começo, temendo o que viria a seguir.

Por Chronos! Não devia estar nem pensando!

Quando a resistência dela cedeu, ele não se conteve. Enlaçou-a com os braços e se levantou, sem se separar daqueles lábios tão doces, puxando-a para si e invertendo a ordem das posições, encaixando-se perfeitamente sobre o corpo dela, aproveitando ao máximo a sensação de seu toque em sua pele e suas curvas sob ele. Que os deuses o ajudassem, mas não podia ficar sem prová-la. Aquela garota... Aquela rara flor dourada o desconcertara até a alma. Jamais saíra do controle, jamais saiu do rompante profissional que vestira desde que fizera os votos tantos Ciclos atrás. Era como se algo mais antigo tivesse irrompido de alguma catacumba de seu interior e ressurgido para reclamar a posse daquela jovem. Nenhuma outra o fizera deslizar como ela fez. Ela o instigava, incendiava, atiçava...

Seria ela aquela no fim de seu fio vermelho?

– Qual o seu nome? – ele perguntou delicadamente, acariciando o rosto dela como se fosse a mais delicada das porcelanas. – Sou Mikhil.

– Nômade das Terras Gélidas? – ela sorriu entorpecida, aproveitando o toque carinhoso que recebia. Tão familiar...

– Como todo bom bárbaro selvagem. – ele sorriu beijando-a novamente, emaranhando os dedos nos cabelos prateados. – Qual o seu nome, Kira? Como devo chamá-la?

Aquela pergunta a despertou. Nunca se deve perguntar o nome de alguém, ainda mais já sabendo o título. Agarrou a mão dele e o jogou ao chão, prendendo-o com violência sobre uma raiz alta, sem se preocupar se o machucaria. Ele era um inimigo e precisava garantir seu silêncio, mesmo que suas forças se esvaíssem e o ar esmagasse sua cabeça, precisava calá-lo. Não o deixaria sair ileso sabendo tanto.

– Vai aceitar o pagamento.

– Já tive minha recompensa.

– Não, não teve. – ela abriu a boca e em sua língua rosada um espinho dourado se mostrou. – Vai aceitá-lo agora.

– Faça. – ele sorriu, oferecendo-se a ela totalmente.

A corrente de energia que corria ao redor deles era esmagadora. O cântico que Kira recitava em mente reverberava sobre o corpo de Mikhil. Apesar de reconhecer seu poder, não tinha certeza de que ela podia fazer aquele feitiço direito. Pelo menos não naquele estado. Era uma pena, pois queria tanto ficar atado a ela!

Kira baixou a cabeça e tomou os lábios dele entre os dentes, espirrando sangue na língua de ambos com seu sabor férreo e intragável. Doeu, mas não tanto quanto ter o espinho viajando em seu sangue para chegar ao coração, onde o enlaçaria e estaria a postos para destroçá-lo caso quebrasse a promessa que devia fazer a ela.

– Não falará de nós, não nos trairá e não os colocará em perigo. Se o fizer e alguém morrer, seu destino chegará mais cedo e seu coração será destruído. Fui clara?

– Sim.

– Jure.

– Aqui, aos seus pés, estirado sob o céu de nosso tempo, juro pela minha vida que zelarei pela sua. Por você e seus companheiros, juro que não a trairei. Use-me e serei seu porto seguro. Confie em mim e lhe serei devoto. – ele recitou, deixando o ar mais pesado a cada palavra, completando assim o encanto. – Juro por você, Kira.

– Está feito, então. – ela decretou e a tensão no ar se dissipou. – Obrigada, Doutor...

– Me chame de Mikhil.

– Obrigada, por me ajudar, Doutor. Pode ir embora. – ela se levantou e saiu de cima dele, dando-lhe as costas e colocando-se a recolher seus pertences.

Mikhil se sentou e se limitou a olhá-la. Estava séria, fria e distante, muito diferente do calor que demonstrara minutos atrás. A guerreira recolocara a armadura e receava não estar por perto quando ela a retirasse novamente.

– Está bem para ficar sozinha?

– Vou ficar. – ela respondeu seca. – Se bem que isso não é mais de sua conta.

– A verei novamente?

– Reze para que não. – o modo como ela o encarou deixou claro todos os medos e implicações que ela concebera naquela hora em que estiveram juntos. Para ela, encontrá-lo novamente traria consequências que não estava disposta a encarar. – Adeus, Doutor.

E com isso, ela desapareceu na escuridão da noite, deixando sua marca profunda naquele homem. A única que conseguira...

Até a próxima, Kira. Rezo para que nos vejamos novamente. – ele pensou, permitindo-se desejar, enquanto observava o caminho que ela tomara.

Após um momento, recolheu suas coisas e saiu daquele lugar, deleitando-se com a lembrança e o cheiro que ela deixara nele. Sabia que não a veria de novo tão cedo, todavia, algo lhe dizia que os caminhos de ambos já estavam cruzados e se uniriam logo. Como em sua antiga profecia.

E mal podia esperar por isso.


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Notas finais do capítulo

Então, o que estão achando? Espero que estejam gostando, porque estou adorando escrever as aventuras desse povo!

Edição feita em 25/04



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