Um amigo no escuro escrita por Clarice Reis


Capítulo 1
Unique


Notas iniciais do capítulo

Eu particularmente gostei do resultado da história e espero que vocês também gostem.



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Um amigo no escuro



Quando se tem 16 anos, você pensa que nada mais na vida pode te surpreender. Você acha que já viu de tudo e que detém todo o conhecimento necessário. Eu costumava pensar dessa forma, pensava que já era uma adulta e que poderia lidar com qualquer situação que tivesse pela frente... Obviamente, como toda boa adolescente que pensa que sabe tudo, eu percebi em uma questão de instantes que não sabia de absolutamente nada.

Era fim de tarde e eu caminhava apressada pelas ruas de Londres. Coloquei a bolsa acima da cabeça tentando impedir que a chuva estragasse o meu cabelo. Eu sempre odiei a chuva e por uma bela ironia do destino acabei nascendo em um dos países mais chuvosos que existe.

Entrei em casa e a primeira coisa que fiz foi jogar a bolsa da escola no sofá. Segui até o banheiro em busca de uma toalha para secar meu cabelo (que apesar de todos os esforços estava encharcado) e no meio do caminho encontrei um bilhete da minha mãe.

Rose,

Eu e seu pai fomos com Hugo até a casa da sua avó,
estaremos de volta antes das nove, se sentir fome tem
Lasanha na geladeira.

– Mamãe

Larguei o bilhete e assim que cheguei ao banheiro fiquei frente a frente com o meu reflexo. Meu cabelo estava desgrenhado e o rímel que tinha passado pela manhã agora estava todo borrado. Lavei o rosto e estava terminando de secar o cabelo quando ouvi o alerta de mensagem do meu celular. Provavelmente Dominique e Roxanne ainda estavam brigadas e queriam que eu desse conselhos para resolver a situação. Resolvi ignorar as mensagens por enquanto, não estava com cabeça para as brigas por motivos idiotas das minhas primas. Caminhei de volta a sala e me joguei na poltrona para assistir um pouco de televisão.

Já tinha assistido se beber não case 2 e metade de um episódio de House quando resolvi fazer pipoca. Fui até a cozinha e já estava colocando o saquinho no microondas quando de repente tudo ficou escuro.

― Mas que merda... ― resmunguei.

Esperei alguns minutos na esperança de que a energia voltasse, mas nada aconteceu. Comecei a tatear os móveis e fui andando lentamente até a gaveta onde sabia que havia uma lanterna. Quando finalmente a encontrei, constatei que estava sem pilhas. Hoje definitivamente não era o meu dia. Procurei por toda a cozinha até que localizei uma vela. "Vai servir" pensei. Depois de acendê-la, voltei caminhando lentamente até a sala e alcancei meu telefone. Disquei o número da minha mãe e depois de três toques ela atendeu.

― Alô, querida? ― sua voz tinha um tom de preocupação.

― Oi, mãe.

― Está tudo bem?

― Está sim, eu só queria perguntar se aí também está sem energia.

― Infelizmente sim. Parece que o blackout atingiu toda a cidade.

― Alguma previsão de quando a energia volta? ― inquiri.

― Até agora não. Iremos ficar aqui até a luz voltar, se importa de ficar sozinha?

― Não ― mentira. Eu odiava ficar sozinha.

― Tudo bem, então até mais tarde.

― Até ― murmurei e logo depois encerrei a ligação.

Sentei no sofá e comecei a pensar em maneiras de matar o tempo. Cheguei a me deitar na tentativa de tirar um cochilo, mas estava totalmente sem sono. Peguei meu celular e comecei a olhar as fotos e vídeos. Havia várias imagens minhas junto com as minhas primas e amigas da escola. Uma foto em especial acabou atraindo minha atenção. Uma foto em que eu estava sentada ao lado de Dominique em uma festa enquanto a mesma tinha uma garrafa de cerveja na mão.

Lembrava-me vagamente daquele dia. Foi a primeira vez que ingeri bebida alcoólica e a primeira vez que fiquei bêbada. Eu não gostei daquilo, na verdade, nunca me identifiquei com essa coisa de ir para festas, beber e pegar um monte de meninos. Acho que o principal motivo de eu ter aceitado tantos copos de vodka foi uma tentativa de me encaixar a um meio que eu sabia que não pertencia.

Tentava lembrar o máximo possível de coisas daquela noite quando algo me ocorreu. Roxanne chegara no meio da festa alegando querer fazer uma "brincadeira". Todos concordaram e ela explicou que o jogo consistia em ligar para um número aleatório e conseguir fazer com que a outra pessoa ficasse na linha por cinco minutos. Na hora achei aquilo muito besta, mas na atual situação e sem muitas opções do que fazer, decidi tentar.

Peguei o celular e pensei em uma sequência de números para discar. Mas quando a pessoa atendesse, o que eu iria dizer? Oi, meu nome é Rose e eu só queria que você passasse cinco minutos falando comigo. Nem preciso dizer que isso parecia absurdo. Pensei em desistir, mas eu realmente não tinha nada melhor para fazer. Cogitei ligar para as minhas amigas, mas todas estavam viajando devido à proximidade das festas de fim de ano.

Passei uns três minutos encarando meu celular ponderando se deveria ou não ligar. Quer saber? Não tenho nada a perder, pensei. Disquei os números aleatoriamente e quando encostei o aparelho no ouvido escutei a mensagem informando que o telefone estava desligado. Na segunda tentativa, resolvi escolher a ordem baseada em números que são importantes para mim, como por exemplo, a data do meu aniversário. Coloquei a chamada no viva voz e depois de três toques uma voz masculina atendeu.

― Alô? ― a voz era grossa e parecia ser de um homem mais velho.

― Oi ― murmurei.

Eu não tinha a menor ideia de como começar uma conversa. Devia dizer que era uma brincadeira e que nós teríamos que conversar por pelo menos cinco minutos? Provavelmente ele iria desligar na minha cara se eu dissesse isso. Procurei pensar em várias formas de começar um diálogo e percebi que estava em silêncio já tinha algum tempo.

― Quem fala? ― ele perguntou.

Pensei em mentir sobre o meu nome, mas quando percebi já tinha falado.

― Sou Rose Weasley.

― E com quem deseja falar, Rose Weasley?

― Com você ― respondi.

― Comigo? ― ele parecia surpreso ―Nós por acaso nos conhecemos? Não me lembro de conhecer ninguém com esse nome.

― Não, não nos conhecemos. Eu só estava entediada, sabe? Por conta do blackout não tenho nada para fazer e acabei lembrando de uma brincadeira que uma amiga minha me falou e basicamente eu tinha que discar um número aleatório e conversar com a pessoa durante cinco minutos e bem, eu fiz isso e agora estou falando com você ― falei tudo tão rápido que me questionava se ele havia entendido ao menos uma palavra.

― Calma, vamos devagar ― falou ― Você disse alguma coisa sobre um blackout?

― Sim, a cidade inteira está sem luz ― será que a área onde ele estava não havia sido atingida?

― Entendo. E como está sem energia, você não tem nada para fazer, certo?

― Certo ― afirmei.

― E resolveu discar um número aleatório e conversar com a pessoa que atendesse por cinco minutos?

Ok, ele me fez sentir bem idiota.

― É... ― murmurei.

Um silêncio se estabeleceu e a única coisa que conseguia ouvir era a respiração leve daquela pessoa desconhecida.

― Tudo bem então ― falou ― Vamos conversar, Rose Weasley.

― Tem alguma ideia de por onde começar? ― questionei ― Não sou muito boa em puxar assunto.

― Que tal começar falando um pouco de você?

― Quem me garante que você não é um assassino que está apenas tentando coletar informações para vir me matar? ― perguntei dando uma leve risada.

― Bom, se essa é sua preocupação, para início de conversa não deveria ligar para números aleatórios e muito menos dizer seu nome verdadeiro ― ele estava achando graça da situação.

― Quem te garante que eu falei meu nome verdadeiro?

― Tenho certeza que falou.

― Tudo bem ― queria mudar de assunto ― O que quer saber sobre mim?

― Qualquer coisa que quiser me contar.

Pensei no que poderia dizer. Eu não podia simplesmente contar tudo da minha vida para um completo desconhecido.

― Tenho uma ideia melhor ― ele disse ― Vou tentar adivinhar coisas sobre você.

― Pode ser.

― Bom, acho que você deve ter uns treze ou quatorze anos de idade.

― Tenho mais ― afirmei ― Por acaso minha voz é de criança?

― Para falar a verdade sim ― falou rindo ― Quantos anos tem?

― Dezesseis, e você? Pela voz deve ter uns trinta.

― Um pouco menos.

― Vinte e nove? ― chutei.

― Vinte e sete.

― Já terminou a faculdade? ― questionei.

― Não, eu comecei recentemente ― sua voz adquiriu um tom alegre. Pelo visto ele estava gostando de estudar ― Ainda está na escola?

― Sim, mas estou terminando e se tudo der certo logo irei para a Oxford.

― Oxford? Deve ser muito inteligente, Rose Weasley.

― Eu me esforço ― dei um suspiro ― É o que minha mãe sempre quis para mim.

― É o que você quer para você? ― sua voz adquiriu um tom sério.

― Acho que sim ― refleti um pouco ― Quero ir logo para a faculdade.

― Por quê?

Eu não sabia o que responder. Sempre coloquei Oxford como uma prioridade na minha vida, soube desde pequena que essa seria minha meta e eu faria todo o possível para atingi-la, mas nunca me perguntei o motivo de isso ser tão importante para mim.

― Eu não sei ― ele me deixou sem saber o que falar.

― Talvez pela independência? ― sugeriu.

― É, acho que é um dos motivos. Cresci para ser a filha perfeita, talvez seja bom viver sem essa pressão.

― Seus pais têm muitas expectativas sobre você?

― Sim, às vezes é difícil porque eu sinto que não tenho controle sobre a minha vida. Parece que eu vivo somente para atender às vontades deles.

― Sei bem como é ― comentou.

― Eu cheguei a fazer besteiras somente para provar a mim mesma que tinha autonomia sobre minha vida ― falei me recordando daqueles momentos que eu preferia esquecer.

― Se não tiver problema, poderia me contar? Gosto de histórias, mas não quero parecer intrometido nem nada...

― Não, tudo bem ― por alguma estranha razão ele me passava confiança ― Foi uns dois anos atrás. Eu estava numa fase rebelde e queria fazer tudo que era proibido. Bebi escondido, experimentei fumar e até usei maconha por um período.

― Você tinha 14 anos, não é? ― ele parecia surpreso.

― É, eu sei que parece absurdo, mas...

― Não, não é absurdo ― falou me interrompendo ― Acredite, já vi pessoas fazendo coisa bem pior nessa idade. Mas você ainda bebe ou fuma?

― Não, foi só uma fase, depois de uns meses eu parei. Você bebe ou fuma?

― Não, só bebo socialmente e nunca experimentei cigarro ou drogas.

― É um homem certinho... ― naquele instante percebi que nem ao menos sabia seu nome ― Desculpe, mas eu não sei seu nome.

― Scorpius Malfoy, mas pode me chamar de Scar.

― Scar? ― inquiri.

― Foi um apelido que minha mãe me deu. Todo mundo me chama assim.

― Tudo bem, Scar ― disse achando seu apelido engraçado ― Você trabalha?

― Atualmente não, mas eu costumava ser soldado do exército ― sua voz de repente me pareceu mais triste.

― Você gostava do trabalho?

― Sim, eu fui voluntário para ir para a guerra e no começo eu me sentia honrado por estar protegendo meu país, mas depois as coisas mudaram.

― O que aconteceu? ― fiquei curiosa.

― Eu fui submetido a situações desumanas onde eu tive que abandonar pessoas para morrer e até matar inocentes. Essas coisas continuaram perturbando minha mente mesmo depois de voltar para a casa, na verdade, essas lembranças me perseguem até hoje.

― Eu sinto muito ― não conseguia imaginar como era carregar essa culpa, mas sabia que devia ser difícil.

― Está tudo bem ― suspirou ― Esse tipo de coisa te ensina a ser forte.

― Essa conversa tomou um rumo muito sério não acha?

― Concordo. Sobre o que quer falar agora? ― ele parecia animado e admito que eu também estava.

― Por que decidiu falar comigo? Quer dizer, esperava que você fosse desligar na minha cara.

Ele começou a rir.

― Você estava sem nada para fazer e eu não tive um dia muito bom, acho que vi uma oportunidade de aliviar o estresse.

― Por que seu dia não foi bom? ― questionei.

― Eu tentei falar com a minha mãe, mas ela me expulsou da sua casa.

Eu fiquei chocada com o que acabara de ouvir.

― Por que ela fez isso? ― estava indignada.

― Eu fiz algo horrível e entendo que ela não queira falar comigo ― Scar parecia conformado com a situação.

― Ela é sua mãe, depois de um tempo vai te perdoar. Além do que, não acredito que você tenha feito algo tão ruim ― tentei fazer ele se sentir melhor.

― Você é gentil, Rose, mas eu não sou uma pessoa boa. Fiz coisas erradas na minha vida e agora estou pagando meus pecados ― sua voz estava triste e sem vida.

― Todos cometem erros, Scar, ninguém é perfeito.

― Meus erros são graves. Perdi meus amigos e minha família, estou sozinho, pois eu sou um monstro.

― Você não é um monstro ― afirmei.

― Você não sabe o que eu fiz, Rose.

― Então me diga, nada que você disser irá me fazer mudar de ideia ― estava convicta das minhas palavras.

― Gosto de você. É como se fôssemos amigos e nós acabamos de nos conhecer. Não quero perder isso...

― Você não vai. Eu prometo.

Scorpius estava inseguro, mas mesmo assim decidiu me contar.

― Bom, não tenho nada a perder.

Encostei-me na janela da sala e fiquei olhando para a lua. Esperava ele criar coragem para começar a contar.

― Faz quatro anos. Eu tinha voltado da guerra e estava feliz por ter a chance de rever meus pais ― ele fez uma pausa ― Mas quando cheguei em casa, as coisas estavam diferentes. Minha mãe parecia mal e estava muito quieta, já meu pai estava agressivo e saía todas as noites para beber. Descobri que minha mãe estava sendo agredida e a encorajei a sair de casa ou ir à polícia, mas ela não aceitava de jeito nenhum. Ela amava meu pai e se recusava a deixá-lo.

― Deve ter sido uma situação difícil.

― Foi sim. Minha mãe aguentou durante muito tempo até que uma noite enquanto estávamos jantando meu pai chegou completamente bêbado e ameaçou matá-la. Ele estava com uma faca na mão e eu corri para defendê-la só que... ― ele fez outra pausa e dessa vez pude perceber que estava chorando ― Meu pai me atacou, ele iria me matar só que eu enfiei a faca em sua barriga antes. Eu me lembro bem dele caindo, mas antes de perder a consciência ainda teve forças para pegar a panela que estava no fogo e jogar a sopa fervendo no meu rosto.

Eu estava completamente sem palavras.


― Quando acordei estava no hospital. Entrei em desespero porque não estava enxergando nada e comecei a gritar com todas as minhas forças. Quando o médico chegou ele me explicou que por conta das queimaduras eu tinha perdido completamente minha visão. Passei dias chorando e quando perguntei pela minha mãe me informaram que ela não tinha ido me visitar. Liguei todos os dias, mas ela não atendeu. Assim que recebi alta minha tia foi me buscar e me levou para sua casa. Ela explicou que minha mãe me considerava um assassino e não queria mais me ver. Durante meses tentei fazer com que ela falasse comigo, mas não funcionou então decidi seguir a minha vida. Aprendi a ler em braile, comprei um cão guia e assim aos poucos fui me tornando independente. Depois de um ano saí da casa da minha tia e comprei um apartamento onde moro sozinho. Hoje foi aniversário da minha mãe e eu fui até sua casa deixar um presente, mas ela me expulsou. Eu apenas aceito, entende? Reconheço que tenho culpa.

Ele estava chorando.

― Você é capaz de me aceitar como amigo mesmo sabendo de tudo isso?

POV: Scorpius

Rose estava em silêncio. Havia acabado de contar minha história e temia outra rejeição. Ela prometeu que não iria me abandonar, mas mesmo assim tinha medo.

― Rose? ― queria ouvir sua voz e qualquer coisa que ela tivesse para dizer.

Logo depois a ligação foi encerrada. Encarei o telefone e suspirei. Eu já devia saber, sou um monstro e ninguém quer se aproximar de alguém como eu.

Sentei na cama e comecei a acariciar Ben, meu cachorro. Estava levantando para ligar o rádio quando meu celular tocou.

― Alô?

― A ligação caiu ― a voz do outro lado era suave ― Quer ser meu amigo? Para sempre?


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Notas finais do capítulo

Pensei em fazer um pequeno epílogo, o que vocês acham?