Impossível te amar - especial escrita por Eica


Capítulo 1
Capítulo 1




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Eu não parava de rir. Acho que nunca ri tanto em minha vida. Estava me divertindo bastante, por isso não me importei quando Alex tragou um cigarro na minha frente. Estávamos em casa. Já era um pouco tarde. Há pouco mais de uma hora a energia voltara após nos deixar na completa escuridão por duas horas. Jogamos baralho, bebemos o resto do refrigerante e agora víamos televisão.

Neste momento discutíamos a respeito do filme que já havíamos visto mais de dez vezes. E não era difícil ouvir algum comentário engraçado por parte de Alexandre. Ele sempre sabia o que dizer para me causar riso.

- Meu colega de trabalho me adicionou no Facebook, - comentou ele, depois que eu parei de rir, finalmente. - e disse que te achou bastante interessante.

Olhei-o.

- Interessante? De que forma?

- Bonito.

- E esse seu amigo? É “interessante” também?

- Ao meu ver... Até que sim.

- Qual o nome dele? Assim eu o adiciono na minha página também.

- Gilberto. Não preciso dizer como ele é porque é o único Gilberto da minha lista de contatos.

De repente, ouvi um aparelho de celular tocar. Pela música, só podia ser do Alex. Este apanhou o celular que devia estar na cozinha e voltou para a sala.

- Fale, seu maricas! HÁ!... Você quem pensa, viadinho! HÁ! Achei que não fosse me ligar... O que está rolando aí?... Hm...

Tornou a sentar do meu lado. No momento da propaganda, deixei de prestar atenção à TV para ouvir o que ele dizia.

- É, eu também estou trabalhando bastante... Nada, nada... Ficará por aí mesmo?... Certo...

Continuou falando até quando precisei ir ao banheiro. Ao voltar para a sala, notei que já havia terminado de conversar.

- Quem era? - perguntei, ao me sentar.

- Miqi.

- Ah.

Fazia tempo que não ouvia esse nome.

- Você contou para ele que está morando comigo?

- Contei.

- E como ele reagiu?

- Ah, só ficou surpreso. Por falar nisso, não vai se importar se ele vier?

Assustei-me:

- Ele vem? Aqui??

- Eu perguntei porque... Visto o que houve entre vocês...

- Não houve nada. Ele não é meu ex.

- Conseguiu uma brecha no serviço, por isso o convidei para vir. Ele achou a ideia legal.

“Achou a ideia legal”. Hm. Não sei dizer ao certo o que senti quando ouvi seu nome. Acho que não senti nada e ao mesmo tempo senti tudo. Não queria guardar nenhum rancor do fora que ele me deu, mas no fundo, acho que eu queria sentir raiva porque não queria sentir dor. Alexandre não falava de Miqi para mim. Tínhamos outros assuntos. Ele falava sobre seu trabalho, eu falava do meu, nos divertíamos juntos, e não tocávamos em assuntos passados.

- Quando ele vem?

- Na próxima semana.

- Tão perto?

Alexandre sorriu. Colocou um cigarro no canto da boca e antes de sair da sala, disse:

- Que demonstração de incômodo.

- Não estou incomodado. Só não achei que viesse assim, de repente.

Segui-o para o quintal, para onde ele foi fumar. Observei-o tragar, encostado à parede.

- Posso te pedir um favor?

- Qual?

- Pode me levar à rodoviária para pegá-lo? Não sei como chegar lá. Essa cidade ainda é muito confusa pra mim.

- Tudo bem.

Sinceramente eu queria ter dito: “QUE??”, mas este era um favor que eu podia fazer e que não deveria recusar. Alexandre estava sendo muito legal comigo.

No dia seguinte, liguei para Felipe para contar que o Miqi viria em casa.

- Aaaah, imaginei que fosse acontecer! - disse ele, rindo da minha desgraça. - Eu disse que havia essa possibilidade, não disse? E você ainda quer que ele se dane?

- Claro! Só fico nervoso porque não sei como vou reagir quando estivermos frente a frente. O que digo pra ele?

- Não precisa dizer nada. Só seja simpático. Não tem que sentar e conversar, até porque, ele vai pra sua casa pra conversar com o Alexandre, não com você.

- É, verdade.

Para meu tormento, a semana passou voando. Suponho que tenha passado voando porque tive muito trabalho, e geralmente quando estamos ocupados, o tempo passa e nem vemos. Na noite de quinta-feira, meu estômago estava me atormentando demais por conta do nervosismo. Já na manhã de sexta-feira, estava três vezes pior. Alex foi o primeiro a se arrumar (arrumar no sentido de apenas lavar o rosto e escovar os dentes, porque não trocou a bermuda e a regata rasgada) para ir comigo à rodoviária. Coloquei um jeans novo, uma camiseta limpinha e perfume. Arrumei-me até onde pude. Fechamos a casa, entramos no carro e seguimos para a rodoviária. Dirigi o carro. Alexandre sentou do meu lado.

Conversou durante todo o percurso. Estava notoriamente animado. Tive que fazer a maior manobra e estacionar a uns duzentos metros da rodoviária, numa rua em que não parava tantos carros. Assim que desliguei o motor do carro, acomodei-me melhor no assento.

- Vamos?

Encarei Alex.

- Por que tenho que ir junto?

- Não conheço a rodoviária.

- A rodoviária só tem uma plataforma. É minúscula. Não é como São Paulo.

Quando ele me fitou com olhinhos tristes, voltei atrás.

- Tá, tá legal. Eu vou.

- Beleza!

Saímos do carro e andamos pela calçada. Cruzamos uma esquina, passamos ao lado do Supermercado Paulistão que ficava praticamente colado com a rodoviária e chegamos à única plataforma onde os ônibus paravam para pegar passageiros e deixar passageiros.

- Que lugar pequeno.

- É.

- É muito pequeno. Onde esperamos?

- Pode ser aqui mesmo. De qualquer jeito ele vai nos ver.

Aaaah, que frio na barriga!

Alexandre fumou uns três cigarros durante a espera e se eu tivesse o hábito, teria roído todas as minhas unhas. Precisei sentar, porque minhas pernas ficaram extremamente frágeis.

- Ah! Olha ele ali! MIQI!

Empalideci. Procurei por ele dentre o pessoal que saía de um ônibus que acabara de parar na outra extremidade da plataforma.

- MIQI!

Não levantei do banco. Só observei ele se aproximar devagar, com um sorriso no rosto. Continuava magro. Ainda mantinha o cabelo longo, mas desta vez estava maior. Vestia uma calça jeans preta, botas nos pés e uma regata branca com manchas coloridas na frente. Trazia uma mochila nas costas. Não sei se ele me viu porque não o fitei por muito tempo. Olhei para o chão e só levantei o rosto novamente quando percebi que ele já estava a uns dez passos de mim.

Naquele instante, ele virou o rosto para minha direção. E sorriu.

- Oi, Júlio.

- Oi.

Senti raiva porque minha voz saiu fraca.

Miqi abraçou Alexandre. Ficou claro que estavam felizes em se verem e eu só observei. Levantei do banco, já querendo voltar para casa.

- Aê, Júlio. Vamos passar ali no mercado.

Consenti. Fazer o que?

Subimos a plataforma que dava acesso à entrada. Já dentro do supermercado, caminhei logo atrás dos dois. Ora olhava para um, ora para o outro. Passeamos por alguns setores do estabelecimento. Em alguns momentos eu me distanciava de propósito. Fingia interesse em alguma coisa e sumia de suas vistas. Certamente que não estavam interessados em mim. E eu precisava deixar claro que também não me interessava por eles, ou melhor, por Miqi.

No momento em que finalmente nos reunimos, vi que ambos pegaram cervejas, salgados e mousses. Não peguei nada. Pagamos tudo e fomos para o carro. Miqi sentou atrás, sentei em frente ao volante e dirigi o carro até em casa. Deixei o carro na garagem. Ambos entraram antes de mim. Pararam um pouco na sala, depois Alex mostrou os outros cômodos a Miqi. Fui direto para meu quarto, para me manter o mais longe possível do visitante.

É estranho que, às vezes, algumas pessoas não mudam muito quando o tempo passa. Miqi estava, como já mencionei, mais cabeludo, contudo, continuava cheiroso e magro. Ou eu encolhi, ou ele também cresceu um pouco mais desde a última vez em que nos vimos. No entanto, era o mesmo rosto que eu vi. Era o mesmo sorriso no rosto. O mesmo jeito de olhar. O mesmo jeito de parar, o mesmo jeito de andar.

Nos cruzamos poucas vezes. Tentei ficar o máximo de tempo em meu quarto. Tentei não dar atenção às risadas que ouvi no outro cômodo, e também aos cochichos. Do que poderiam estar falando? De mim? Não. Imagina! Como meu ego pode ser tão grande a ponto de eu imaginar que eles estariam falando de mim?

Ele deve estar namorando, pensei comigo, enquanto mexia em meu computador, tentando me concentrar no Facebook, no entanto, todas as postagens pareciam iguais. Desinteressantes. E é bom que esteja namorando. Só sinto pena do rapaz que o namora. Deve sofrer muito. Ele é tão ignorante, tem hora...

Ignorante... Naquele momento, lembrei-me de alguns momentos em que ele foi extremamente chato. E ele conseguia ser muito chato. Inconveniente.

Uma risada tirou-me do mundo das lembranças. A risada era do próprio Miqi. Estava no quarto de Alexandre. Ambos deviam falar bastante. Também começaram a tocar a guitarra de Alexandre. Para não ouvir mais nada, coloquei fones nos ouvidos e pus qualquer música para escutar.

Fiquei horas, provavelmente, vendo vídeos no Youtube quando, ao tirar o fone dos ouvidos, não ouvi mais nenhuma voz dentro de casa. Levantei e parei para escutar. Exato. Ninguém falava. Ao menos não perto o bastante para eu ouvir. Então, com coragem, abri a porta do quarto e fui até a cozinha. Certamente que estavam na calçada. Alexandre devia estar tragando um cigarro lá fora e Miqi o acompanhava. Aproveitei a ausência dos dois para pegar alguma coisa para comer. Achei um pacote de salgados no armário.

Virei-me na direção do corredor para voltar ao quarto quando ouvi alguém se aproximar. Virei o rosto e a imagem de Miqi me apareceu, com um sorriso enorme e os cabelos balançando ao redor do rosto. Não me disse nada. Foi para a geladeira. Pegou alguma coisa. Não prestei atenção.

Naquele momento hesitei em voltar ao quarto.

- Ainda trabalhando na mesma empresa?

Ele virou-se para mim. Fechou a geladeira.

- Estou. E nem sei como consegui um tempo pra descansar. É tudo muito corrido.

- É, sei como é. E você está gostando de lá?

- Estou.

Miqi encheu um copo com água.

- Eu estava falando pro Ale... Não sei se você vai querer, mas... Se não tiver nada pra fazer no dia... Vou dar uma festinha no meu apartamento. Você pode aparecer lá, se... Como eu disse, se quiser e se não tiver compromisso.

- Ah, obrigado. – respondi, sem deixar transparecer toda a minha surpresa. – Eu vou ver se não terei compromisso.

Miqi apenas sorriu e voltou para fora, com o copo de água. Fui para meu quarto, tentando situar-me. Ele realmente me convidara para ir ao seu apartamento?

Ao crepúsculo, alguém bateu na porta de meu quarto. Abri. Era Alexandre.

- O Miqi já está indo.

É claro. Eu era o motorista. Então, levei a ambos até a rodoviária. Quis ter ficado dentro do carro quando chegamos, no entanto, Alexandre insistiu para que eu mostrasse o guichê para comprar as passagens. Achei totalmente desnecessário. A rodoviária era minúscula. Como não conseguiriam achar o guichê se havia meia dúzia de guichês lá dentro? Mas tudo bem. Novamente, era um favor que eu poderia fazer.

Observei Miqi comprar sua passagem com Alexandre ao seu lado, já se preparando para fumar – tendo em vista que tinha um cigarro entre os dedos. Estava a uns vinte passos de distância dos dois, olhando para todos os lados, menos para eles.

- Ele está a fim de você, você sabe. – disse a voz de Alexandre.

Naquele momento senti um calafrio. Prestei atenção à conversa.

- Eu não sei do que está falando. – riu Miqi.

- Ele está. Quer ser comido de novo.

Suei frio. De quem estariam falando?

- Já sei como é e não quero mais.

- Sério? Não tem vontade de...

Miqi tornou a rir. Afastaram-se do guichê. Afastei-me deles na mesma velocidade, fingindo ter visto alguma coisa importante em meu celular.

- Sério... Minha experiência com ele foi boa na época, mas agora...

Levantei o rosto para os dois e tornei a olhar para o celular. Segui-os até a plataforma de embarque e desembarque. Sentei numa cadeira vaga. Ambos ficaram de pé, há poucos metros de mim. Alexandre acendeu seu cigarro impaciente.

- Ele te liga... Ele te manda mensagem no Facebook... – murmurou Alexandre.

Aliviei-me. Não era de mim que ambos falavam. Provavelmente Miqi ficara com algum rapaz e agora este rapaz na certa estava querendo voltar com ele. Hm. Por que isso me soa familiar?

- É claro que quer voltar. – continuou Alexandre. – Você não gostou do carinha? Ele é chato? Ele é feio? Ele não te dá tesão algum?

Miqi tornou a rir. Desta vez olhei para seu rosto. Seus olhos estavam voltados para o chão.

- Feio ele não é. Só que... A gente não combina.

- Muita gente não combina. Eu não combinava com nenhum dos meus ficantes e das minhas ficantes. Você sabe. Eu contei pra você, não contei?

- É, eu sei.

- Então.

Deixei o celular de lado e olhei para a rua. Havia apenas um ônibus parado na plataforma. Suspirei. Já começava a ficar com sono. Queria ir para casa. Quando vi que Miqi olhou para sua direita, aproveitei para olhar pra ele. Estudá-lo um pouco. Naquele instante, ele falou alguma coisa. Sua voz era tão macia e soou com tanta calma...

Aaaah! Que tormento! Quero ir embora!

Às sete e vinte, um ônibus apareceu na plataforma. Miqi ajeitou-se todo. Certamente que era o ônibus que ele pegaria para voltar a São Paulo. Quando ambos se afastaram para irem até o ônibus, segui-os, para ser educado e me despedir com educação. Assim que os passageiros iam entrando no ônibus, olhei para Miqi, esperando que ele olhasse para mim e se despedisse. Foi o que aconteceu.

- Tchau, Júlio. Até qualquer dia.

- Tchau.

- Tchau, cara.

- Tchau. A gente se vê. – despediu-se Alexandre, tocando na mão de Miqi.

Ele subiu no ônibus logo atrás de duas mulheres. Entrou e não o vimos mais. Nos afastamos do ônibus e aguardamos a sua partida na plataforma. Quando o víamos se afastar, indaguei:

- Ele vai dar mesmo uma festa?

- Vai. Está a fim de ir?

- Não pretendo. – respondi, não sendo muito sincero.

Na verdade eu estava confuso.

- Por que não?

- Não. Já me basta tê-lo visto hoje.

- Achei que tivesse superado isso.

- Eu superei. Claro que superei. Passado é passado. Outras coisas acontecem... A gente esquece o que passou...

Alexandre riu.

- Você não parece ter esquecido. Vamos lá. Não rolou nada entre vocês. Foi só sexo, não foi?

Voltei o rosto para ele, surpreso por ele ter dito na lata.

- Esse seu amigo é muito inconveniente. Por que contar...

- Sou amigo dele. Por que ele não me contaria? Você conta as coisas pro seu amigo, não conta?

- Conto... Mas...

Nos encaminhamos à saída da rodoviária.

- É a primeira festa que ele vai dar no apartamento novo. Ainda não teve tempo de fazer nada lá pra inaugurar.

- Vai muita gente?

- Os nossos amigos de São Paulo.

- Quantos?

- Uns quinze... Dez... Não dá pra saber. Na hora, só a metade aparece. Pode acontecer. – após uma pausa, ele acrescentou: - Ele superou o que aconteceu.

Ri, de modo irônico.

- O que ele tinha pra superar? Quem levou um pé da bunda fui eu. Não ele. Superar? Onde já se viu uma mentira dessas! Que mentiroso!

- Ele não disse que superou. – riu. – Quem está dizendo sou eu. Ele fala sobre você sem parecer incomodado ou chateado ou qualquer outra coisa do tipo. Fala em você de boa. Foi isso o que quis dizer.

- O que ele fala?

- Coisas sem importância.

- Ele deve falar que eu estou na lista dele, pelo visto. Na lista dos que ele deu o fora. Deve se sentir muito orgulhoso.

Alexandre apenas riu. Chegamos ao carro.

- Não quer ir à festa só pra beber? Se divertir um pouco? Não acharia interessante?

Ele não tentou me convencer a aceitar o convite. Apenas acrescentou que seria muito bom para mim. Tentei pensar um pouco a caminho de casa. E quando finalmente chegamos, pensei um pouco mais. Estaria eu levando este assunto sério demais? Miqi e eu não tínhamos namorado. Foi apenas sexo, como o próprio Alexandre mencionou. Eu levei um fora de Miqi. Duas vezes. Mas por que, de fato, fui atrás dele? Eu estava apaixonado na época? Não creio. Provavelmente fui levado pelo impulso a fazer e dizer tudo o que fiz e disse.

Já dentro de meu quarto, suspirei e refleti sobre meus sentimentos. Possivelmente não passara de uma queda por ele. Uma atração passageira. E foi. Sei que foi isso. Eu não o conhecia tanto quanto deveria para me apaixonar. Há muitas coisas a considerar. Por que ir a festa? E por que não ir?

Com dúvidas a este respeito, liguei para Felipe e perguntei-lhe o que eu deveria fazer.

- O que você quer fazer? – retorquiu ele. – Qual a primeira resposta que vem à sua cabeça quando você se pergunta?

- Bom... Eu tenho vontade de ir. Quero dizer... Tenho curiosidade em saber como é o seu apartamento... Como ele vive... Mas só curiosidade. E também... Às vezes me dá vontade de mostrar pra ele que eu não sou mais idiota. Que eu não ficaria mais babando aos pés dele.

- Hm. – ele fez silêncio. Só depois de um tempo voltou a falar: - Bom... Talvez seja bom que vocês esclareçam as coisas. Não que tenham algo a esclarecer. Mas pode ser que vocês se dêem bem no fim das contas. Pelo que você me falou, ele pareceu sincero quando te convidou.

- É, ele foi. Não senti como se estivesse se forçando. Ele podia ter convidado o Alexandre em segredo sem mencionar a festa pra mim.

- Ah... Se quer ir... Vá. Mal não vai fazer.

Demorei uma semana inteira para dizer a Alexandre que iria com ele para São Paulo. Ele ficou bastante entusiasmado para não dizer orgulhoso do meu posicionamento. Três dias depois de o comunicar, indaguei-lhe se ele havia informado a Miqi que eu faria companhia a ele na festa. Disse que informara. E, para minha confusão, Miqi não disse nada. Não reagiu nem para o bem e nem para o mal.

Não precisarei comunicar que fiquei deveras ansioso com a dita festa. Fiz-me centenas de perguntas: quem estaria lá? Como seria? O que ouviríamos? O que beberíamos? Com quem eu poderia conversar? Onde eu poderia sentar e descansar? Miqi ficaria alguns minutos comigo? Ele conversaria comigo?

Por pouco fico sem dormir na véspera de nossa viagem a São Paulo. Chegamos à rodoviária. Nossas passagens foram compradas e em pouco tempo, subimos no ônibus. Alexandre queixou-se por não poder acender um cigarro meia hora depois que o ônibus já estava na rodovia. Tentei não demonstrar muito nervosismo. Mas foi muito difícil. Minhas mãos queriam tremer. E minhas pernas estavam fracas e igualmente trêmulas. Alexandre não notou meus sintomas porque tagarelou bastante enquanto olhava pela janela.

Chegamos à rodoviária de São Paulo depois de uma hora e alguns minutos de viagem. Alexandre deu um jeito de acender um cigarro na primeira oportunidade. Vi Miqi mais cedo naquele dia, pois ele veio ao nosso encontro na rodoviária. Pensei que Alexandre e eu pegaríamos um ônibus para ir até seu bairro. Me enganei. Nos encontramos numa rua próxima. Vi-o encostado ao próprio carro, vestindo uma jaqueta de couro preta, um jeans escuro e uma camiseta de oncinha. Os cabelos estavam soltos. Quando o vi, ele me pareceu muito mais jovem do que era.

Alexandre foi o primeiro a cumprimentá-lo com um aperto de mão e depois um abraço. Em seguida, Miqi dirigiu-se a mim. Apertou minha mão com o mesmo sorriso no rosto que abrira em decorrência do reencontro com o amigo.

- Ainda não chegou ninguém. É cedo pra chegar. – disse ele, abrindo a porta do seu peugeot.

Sentei no banco de trás e Alexandre ao seu lado, no banco da frente. Miqi estava animado como nunca antes o vi. Seus sorrisos estavam iluminados. Quis interagir com ele e Alexandre, mas eu não tinha nenhum assunto que pudesse interessá-lo que não fossem perguntas sobre seu trabalho. E acho que, naquele momento, ele não ia querer falar sobre trabalho.

Fomos à Vila Mariana e chegamos em frente ao prédio de seu apartamento. Ficava no sétimo andar. Abriu a porta. Sua nova casa era pequena. De frente para a porta, havia uma mesa de jantar redonda de vidro com quatro cadeiras estofadas sem braços. Mais adiante, ficava um sofá de três lugares. Na parede, uma TV de LCD. Abaixo da TV, um rack baixinho e reto, sem gavetas. Mais adiante, havia a porta de vidro da sacada que estava semi escondida por cortinas brancas. A nossa esquerda, vi um corredor, que provavelmente dava para seu quarto e o banheiro. À nossa direita, havia um balcão de mármore que delimitava a área da cozinha (a minúscula área da cozinha). Nela, só vi uma geladeira, a pia de mármore e um fogão.

Era mesmo um apartamento aconchegante, lindamente decorado, no entanto, pequeno, mas ideal para uma pessoa. Entramos depois de Miqi. Parei ao lado da mesa de jantar e observei um mural na parede, em que nele haviam sido postadas fotografias maravilhosas de vários lugares da cidade. Uma fotografia chamou minha atenção devido ao ambiente e às luzes. Perguntei a ele que lugar era aquele.

- Parque Ibirapuera. – respondeu. – Sempre vou pra lá quando quero sossegar um pouco.

Ele tinha talento. Todas as fotos eram dotadas de grande profissionalismo e beleza. Encantaram-me. Especialmente a de uma flor vermelha. Enquanto eu continuava apreciando as fotografias, Alexandre foi para a cozinha, atrás de cerveja. Miqi foi para o corredor e só voltou alguns minutos depois.

- Pode ligar a televisão se quiser. – disse, assim que parou ao fim do corredor.

Sem esperar que eu dissesse que sim ou que não, ele mesmo ligou a televisão. Puxou as cortinas e abriu a porta da sacada. Meu desconforto até que diminuiu um pouco, mas somente quando os convidados vieram. Doze ao todo. Um número grande demais para um apartamento tão reduzido. A sala ficou sem espaço. Alguns tiveram de ocupar a área da cozinha. Fui obrigado a ficar na sacada, pois a massa humana me comprimiu naquele espaço limitado.

A televisão continuou ligada enquanto os colegas de Miqi conversavam entre si bebendo cerveja. Só saí de minha área de conforto quando precisei ir ao banheiro. E, entrando lá dentro, admirei-me por ser tão limpo, organizado e cheiroso. Enquanto lavava minhas mãos, pensei no que faria em seguida. Eu não havia conversado com ninguém. Pelo menos não trocado mais do que três ou quatro palavras no máximo. Minha intenção não era me tornar amigo de todos, mas ser mais sociável.

Quando saí do banheiro, vi que mais duas pessoas chegaram à festa. Dois rapazes. Reconheci apenas um. E a primeira coisa que passou por minha cabeça foi: “Ele voltou com o ex?”. Não era possível que o ex de Miqi estava ali, parado em frente da porta, sendo cumprimentado por alguns rapazes. Mesmo com vontade de ver a reação de Miqi, que não estava em meu campo de visão, recuei e entrei na última porta do corredor.

Era o quarto de Miqi. Nele, havia uma cama de casal, um guarda-roupa e uma prateleira reta e sem frescuras como o rack da sala. Havia, ainda, numa das paredes, outro mural, com outras fotografias. Olhei-as demoradamente. Em seguida, fui para perto da janela e olhei para a cidade. É possível que eu tenha ficado um tempo considerável dentro do quarto. Deixei que assim fosse. Estava confortável ali.

- Sumiu! – disse uma voz atrás de mim.

Virei-me assustado. Era Miqi.

- Pensei que tinha ido embora. Não sei como, mas pensei. – disse, rindo. – Que faz aqui?

- Desculpa. Se quiser, eu saio.

- Pode ficar. Não tem nada aqui que eu queria esconder, se é isso o que está pensando.

- Imaginei que seu apartamento fosse um pouco maior.

- Tentei achar um maior, mas depois que vi esse, percebi que era só o que eu precisava.

Ele veio até a janela. Na mão, segurava um copo com cerveja que já estava pela metade.

- Eu me vi numa daquelas fotos. – disse, após um tempo, indicando o mural.

Miqi franziu o cenho.

- Viu?

- Saí em uma delas.

- Onde?

Levei-o até o mural e apontei para uma das muitas fotos que ele tirou da universidade onde estudamos juntos.

- Nesta. Estou lá no fundo, saindo do refeitório.

- Verdade! – exclamou, rindo. – Atrás do gordinho e da loira.

- É.

- Essa foto não ficou muito boa.

Olhei-o rapidamente, ofendido.

- Por que eu apareci nela?

Ele riu.

- Não, porque o ângulo não ficou bom. A iluminação está perfeita, mas o ângulo... Não está percebendo?

Analisei melhor a foto. Pois é. De fato, o ângulo não estava bom.

- Você tirou muitas fotos da universidade.

- Tirei. Eu precisava praticar. Tenho mais fotos que não couberam no mural.

Fui para a porta. Quando vi que não havia ninguém no corredor para nos ouvir, disse:

- Então... Seu ex...

- O que tem?

- Ele está aqui.

Ele balançou a cabeça.

- É, está.

- Você o convidou?

- Não, não convidei.

- Não? – retruquei, pasmo. – Então por que o deixou entrar? Ele traiu você. Não tem o... Espere! Vocês voltaram?

Miqi tornou a rir e respondeu que não.

- Eu não seria tão estúpido.

- Então não vai se importar em ouvir que ele não vale nada. É um descarado de aparecer.

Ele balançou a cabeça outra vez, sorrindo.

- Pode xingá-lo o quanto quiser.

Andei pelo quarto.

- Ele te cumprimentou? Falou com você?

- Ele está na minha casa. É óbvio que falaria comigo.

- Que descaramento! O que ele disse? Vocês já tinham conversado depois da traição?

- Ele tentou falar comigo algumas vezes. E eu não dei muita atenção. Mas como você falou, ele não vale nada. E como eu já sei disso, não tem como eu me envolver com ele de novo.

- E ele quer se envolver?

- Amizade?... Eu não acho que queira isso.

Fiquei mais perplexo.

- Que descaramento! Que... Putinho!

Miqi caiu na risada.

- Sério. Seu ex tem problema. Não. Ele é um câncer. Uma... Merda... Um... Onde já se viu? Chegar aqui como se nada tivesse acontecido?

Miqi concordou, balançando a cabeça. Aparentemente, para ele, tanto fazia que seu ex estivesse ou não na festa. Provavelmente não daria atenção a ele. O que me deixou bastante contente.

- O que vai fazer quanto a isso? – indaguei, me aproximando dele, ainda curioso. – Vai dar o troco?

Ele me olhou, pouco interessado no assunto. Neste momento, acabara a cerveja do seu copo, de modo que ele deixou-o de lado.

- Como assim?

- Ele veio aqui se oferecer. E você vai recusar, é claro.

- Que troco acha que eu poderia dar se eu quisesse dar?

- Não vai fazer nada? – perguntei, um pouco perplexo e descontente.

- Eu não tenho nenhuma pretensão. Dar o troco passa a impressão de ele ter valido alguma coisa.

- Como assim? Agora eu que não estou entendendo. Ele precisa sofrer.

- Ele vai sofrer o suficiente quando perceber que não quero nada com ele.

Quando ele mencionou tais palavras, algo passou em minha mente.

- Você está fingindo...

- Não estou fingindo nada. Fingir seria o mesmo que dar o troco, o que eu não quero fazer. Só estou sendo educado. Se ele achar que quero alguma coisa, aí será problema dele.

- Hm.

Parei um pouco e o observei, enquanto ele olhava pela janela.

- Por que tem tanto medo de infantilidade?

Miqi voltou o rosto para mim, como se não tivesse entendido a pergunta.

- Medo?

- Medo... Aversão... Não importa. Se ele te fez mal, qual o problema em querer que ele sofra? Qual o problema em fazer ciúmes, em dar o troco, em ser um pouco infantil? Qual o problema em ser um pouco humano? Não é uma desculpa, é claro, mas é o que nós pensamos. É o que nós somos. Você nunca pensou em fazer ciúme pra ele ou, como eu já falei, nunca pensou em dar o troco? Em devolver o que ele te fez?

Surpreendentemente, ele riu.

- Você não mudou nada.

Fiquei sério.

- Não importa o que você pensa de mim. Quando eu for embora, não vou mais te ver. – quando disse tais palavras, elas doeram em mim. Doeram muito. Mas mesmo surpreso com isso, continuei falando. – Só estou tentando colocar um pouco de juízo na sua cabeça.

- Juízo? – perguntou, achando graça. – Parece o contrário.

- Por isso não gosto de você. É muito teimoso. Sempre acha que está certo. Você também não mudou nada. Continua sendo o homem mais irritante da face da terra. Não sei por que vim a sua festa.

Com a raiva já grande demais, continuei falando.

- Mas não se preocupe. Eu vou embora assim que Alexandre for. Iremos embora e você não vai mais me ver e vai ser ótimo não te ver também. Sempre me ofendendo...

Agora ele riu.

- Em algum momento eu te ofendi?

Calei-me e encarei sua face, que se transformou. Ficou mais sério.

- Quem disse que sou teimoso? Quem disse que sou irritante? Ao contrário de você, eu só disse que você não mudou. E não mudou mesmo. Se quer que eu te ofenda, então vou te ofender. Você continua azedo.

Encarei-o com a mesma intensidade com que ele me encarava. Saí do quarto, irritado e magoado. Passei o corredor, cheguei à sala, abri a porta e fechei-a atrás de mim. Sentei na escada do corredor e fiquei ali. Coloquei os braços sobre os joelhos e olhei a hora no celular.

Que ódio! Agora percebi que não tem como conversar sério com ele sem perder a cabeça. Não dá. Simplesmente não dá.

Encostei o ombro na parede e tentei ficar numa posição confortável. Para a hora passar, joguei um pouco no celular. Depois entrei na internet. Vi meus e-mails e alguns vídeos. Assustei-me quando a porta do apartamento de Miqi abriu. Não reagi, todavia, para que não percebessem minha perturbação. Alguém fez que ia descer a escada, mas parou do meu lado, de pé. Levantei os olhos.

- Que faz aqui? – indagou Alexandre.

Cheirava a cigarro.

- Quero ir embora.

- Por que está emburrado? Aconteceu alguma coisa?

- Seu amigo não foi fazer fofoca?

- Vocês brigaram?

- Não. Não brigamos. Só não nos entendemos.

Alexandre balançou a cabeça e riu.

- Não dá pra ficarem em paz uma vez só? Vocês são engraçados, sabia?

Ele sentou do meu lado.

- Eu o odeio.

- Não. Não odeia e sabe que não odeia. Você gosta dele, Júlio, só não quer admitir pros outros.

Olhei-o, estupefato.

- Como assim? Como posso gostar dele? Não temos nada em comum...

- Vocês gostam de fotografia.

-... Não. Não temos nada. Ele não gosta das músicas que eu ouço...

- Qual o problema? Você gosta das músicas que ele gosta?

- Ele é óleo. Eu sou água. Não dá pra misturar de jeito nenhum.

- Por que ele tem que ser o óleo? – indagou, rindo.

- Não interessa. Não gosto dele. Não funciona. A gente não funciona.

- Não tem vontade de conhecer o outro lado dele?

Agora eu ri.

- Que outro lado? Ele tem outro lado? Pra mim, tomate podre não tem lado bom.

- Ele só te provoca porque você é muito fácil de provocar.

Controlei-me ao ouvir aquilo. Não daria razão para ele dizer que Miqi estava certo.

- E se ele provoca é porque gosta de te ver irritado. Ele gosta de te ver assim. Quero dizer, gostava. Quando estudavam juntos, ele chegou a me contar que gostava de te tirar do sério.

Minha raiva se dissipou um pouco.

- O que mais ele falou?- perguntei, sem desfranzir o cenho.

- Algumas coisas...

- Como o que?

- Que importância tem pra você? Você não o odeia? Você não disse que vocês não funcionam?

- Só estava curioso.

Ficamos em silêncio.

- Mas... Supondo que eu goste dele. – arrisquei-me. E continuei: - Eu já levei fora duas vezes. E ele disse que eu não mudei nada. E se eu não mudei, ele não vai me dar chance alguma.

Alexandre balançou o rosto e sorriu.

- Você sabe tão pouca coisa...

- Ele mora aqui em São Paulo. A gente mal ia se ver se...

Parei minha língua. Minha agonia cresceu.

- Quero ir embora. – repeti, triste. – Não quero mais ficar aqui.

- Júlio...

- Não vou ficar correndo atrás dele! Ele correu atrás de mim alguma vez? Não, então que se foda! Que volte pro ex-puto dele. Os dois formam um lindo casal de putos!

- Que gracinha! Está com ciúmes!

- Não estou com ciúmes! E pare de dar risada!

Ele não parou de rir. Levantou-se.

- Vocês são tão parecidos que até parece mentira.

- Em que me pareço com aquela lombriga? Ele está tão magro que se segurar uma máquina fotográfica, vão pensar que ela está sobre um suporte.

Alexandre riu.

- Essa foi ótima!

- Pode contar a piada pra ele. Assim ele ri um pouco e não fica com aquela cara emburrada o tempo inteiro.

Alexandre voltou para dentro. Continuei sentado na escada, magoado, irritado. O tempo foi passando e ainda carregava dentro de mim a vontade de ir embora. Conforme o tempo passou, notei que algumas pessoas foram saindo do apartamento de Miqi. Já estava bastante escuro. Não sei que horas eram, mas a escuridão lá fora me deixou preocupado. Queria ir embora. Mas não saberia sair de São Paulo mesmo querendo. Estava preso. Estava dependente de Alexandre.

Uma hora, indaguei-me quantas pessoas haviam sobrado dentro do apartamento. Muitas saíram. Não reconheci Vinicius entre elas. Teria ficado?

- Vai continuar aí, Júlio? Por que não entra? – perguntou Alexandre, pondo somente a cara para fora da porta.

Virei-me de costas para fitá-lo.

- Não vou. Quero ir embora. Quando vamos? Você e eu precisamos trabalhar amanhã. Não podemos ficar aqui tanto tempo.

- Já estamos indo. Só entre um pouco. Pra se despedir pelo menos.

- Por que eu deveria?

- Não faça birra. Entra.

Pus-me de pé, sem saber o que estava fazendo. Levantei e fui até a porta. Entrei na sala. Havia cinco rapazes dentro do apartamento. Um deles era o puto do ex do Miqi. Os dois não conversavam. Miqi estava na cozinha e o putinho estava na sala. Alexandre me levou até Miqi.

- Estamos indo, cara.

- Já?

Ele não olhou para mim imediatamente. Só depois, quando Alexandre terminou de se despedir.

- Obrigado pelo convite. – disse, por obrigação, com rosto sisudo. – Espero sinceramente que daqui em diante dê tudo errado na sua vida.

Alexandre olhou-me no mesmo instante. Ambos, com certeza não esperavam ouvir tais palavras de mim. Não me importei e continuei falando.

- Espero que não me convide mais, assim você poupa a mim e a si mesmo do desconforto. Não se preocupe. Não bebi nada, não peguei nada da sua casa. Obrigado mais uma vez. Vamos, Alexandre?

Caminhei até a porta, mirando os olhos na maçaneta. Naquele momento, hesitei por um segundo quando vi alguma coisa pendurada no maço de chaves. Era um chaveiro. Um chaveiro vermelho. Tinha o formato de um morango e pedrinhas brancas decoravam-no como os grãos amarelos do exterior da fruta. Sabendo que não podia parar e voltar atrás, peguei na maçaneta, abaixei-a e abri a porta. Voltei ao corredor da escada e encostei-me a parede.

Não acreditei! Miqi tinha um chaveiro de morango! O mesmo chaveiro que ele me dera depois de voltarmos das férias. Era o mesmo. Igual aquele que eu jogara fora. Como eu não vi o chaveiro antes? Estava tão visível na porta! Tão grande e reluzente! De coração acelerado, aguardei que apenas Alexandre passasse por aquela porta. No entanto, veio ele e Miqi ao mesmo tempo. Deram-se comigo encostado à parede. Não tive como reagir rápido.

- Tchau, cara. A gente se vê depois. – despediu-se Alexandre.

Voltou-se para mim. Naquele momento, eu já havia desgrudado da parede. Alexandre me chamou. Segui-o até a escada. Passei do lado de Miqi sem dizer nada.

Aquela foi a última vez em que nos vimos. E, sim. Não voltei atrás. Não corri até ele para perguntar o que sentia por mim. Levaria um fora outra vez. Pela terceira vez. Não seria estúpido de novo. Alexandre falou diversas vezes que eu iria me arrepender se não fizesse nada. E sempre irritado, eu respondia:

- Por que EU tenho que fazer alguma coisa? Por que ELE não pode vir até mim?

Deixei passar. Um mês. Dois meses. No terceiro mês, Alexandre disse que viajaria para São Paulo para ver Miqi. Estranhei o fato de ele mencionar que voltaria no mesmo dia da viagem de ida.

- Não vai dar pra ficar muito tempo com ele.

- Por quê? – perguntei, mesmo pouco interessado.

- Ele vai pra Nova York.

Ri, descrente.

- Pra onde?

- Nova York. Vai a trabalho. Vai ficar lá pelos próximos... Doze meses. É. Doze meses.

Olhei-o, agora aflito.

- Sério? – perguntei, mascarando minha preocupação. – Mas... Doze meses? Assim? Direto?

- Você não sabe porque nunca quer saber dele, mas ele tem muitos contatos profissionais nos Estados Unidos. Um destes contatos conseguiu um serviço pra ele. Por isso ele está indo. Vou lá pra Sampa pra me despedir. Pode ser que ele não volte mais. Ele pode gostar da cidade... Pode conseguir outros trabalhos... Ele tem muito talento, Júlio. Sem emprego por lá ele não fica. Não quer ir comigo pra se despedir também?

Fiquei calado, só tentando absorver a informação. Não consegui. Foi tudo muito rápido. Então ele vai deixar o país? Vai deixar tudo pra trás?

- Não está sendo fácil pra ele. Não está sendo fácil pra família. – disse Alexandre. – Mas uma oportunidade dessas... Ele vai ganhar muito mais lá fora... Vai poder comprar as coisas que nunca teve a chance de comprar... E vai poder planejar o futuro dele. Ele se deu bem. Isso é legal.

Desisti de mascarar minhas emoções e chorei na frente dele. Mas em silêncio. Não fiz escândalo.

- Quando ele viaja?

- Amanhã.

Amanhã. Amanhã. Foi um tormento ouvir tal palavra. E foi um tormento esperar que as horas passassem para o “amanhã” chegar. E quando chegou, quando Alexandre e eu chegamos ao aeroporto de São Paulo, vi Miqi. Encontrei-o ao lado de seus familiares. Vestindo um jeans preto, sapatos pretos, uma camiseta xadrez sem manga e uma camiseta de listras escuras por baixo. Os cabelos estavam soltos e nos pulsos e nos dedos, usava pulseiras e anéis. Alexandre e eu nos aproximamos. Miqi, ao nos ver, parou de sorrir ao olhar diretamente para mim. Alexandre e eu cumprimentamos sua família. Demorou, mas consegui uma oportunidade de perguntar a ele se podíamos conversar a sós.

Nos afastamos de seus parentes.

- Estou um pouco envergonhado depois das coisas que eu disse...

Miqi sorriu.

- É pra não perder o hábito.

Não olhei para ele.

- Você... Está dando tudo certo... Que bom...

- É. Conhecer pessoas que conhecem pessoas ajuda bastante.

- Quando você volta?

Desta vez olhei pra ele.

- Eu não sei. Talvez eu não volte.

As lágrimas se aglomeraram em frente aos meus olhos. Não me importei.

- E sua família? – perguntei, com a voz trêmula.

- Vai ser ruim nos primeiros meses, mas eles entendem que vai ser bom pra mim.

- Você não parece triste.

- Você não me conhece muito. É claro que estou triste! Só não choro na frente deles porque não quero vê-los mais tristes do que já estão. Vou chorar. Vou chorar quando estiver no avião. Vou chorar quando chegar em Nova York, mas agora eu não posso. Me recuso a fazer isso agora.

Sequei os olhos e quando sequei, voltei a verter lágrimas.

- Não vamos mais nos ver. – comentei, conseguindo ganhar firmeza na voz por meros segundos. – Você vai embora... E com certeza não vai querer voltar.

- Ainda não entendi por que veio. Vai me explicar?

- Preciso explicar? Estou chorando na sua frente dizendo que não vamos mais nos ver e você ainda precisa de uma explicação? Alexandre deve ter contado algumas coisas. Deve ter contado que eu ainda gosto de você e outras coisas.

- Na verdade ele não disse nada. Só ficou fazendo brincadeiras. E eu também não dei atenção a elas porque nunca imaginei que ainda gostasse de mim fazendo tão mau juízo de mim.

- Eu ainda gosto. – confessei, sentindo meu coração se livrar de um grande peso que o comprimia. – Eu ainda gosto e me dói saber que não importa o que eu diga... Você vai viajar do mesmo jeito. Mas você está indo por uma coisa boa, então não posso te culpar. Só vou ficar triste. Vou me acabar quando você for.

Solucei e, reencontrando estabilidade na voz, tornei a falar:

- Você vai chegar em Nova York... Vai conhecer alguém e vai querer... Vai refazer sua vida... Vai ganhar novos amigos... Vai namorar e vai ter uma casa bonita... E nem sei por que estou aqui. Não sei por que vim. Estou me humilhando outra vez. E você vai pisar em cima de mim. Vai pisar de novo. Por isso, pode ir. Pode ir embora. Mas é a última vez que vai pisar em mim. Pode ir pra Nova York se achando o cara mais lindo do mundo, achando que fez de idiota outro carinha que dormiu com você...

Miqi me intrometeu com uma risada.

- Você é um tanto bipolar.

Sequei minhas lágrimas.

- Pode ir. Vai. – pedi, retomando a firmeza na voz.

Ele continuou me olhando com um sorriso no rosto.

- Você ainda tem Facebook?

- Por quê?

- Você tem?

- Tenho.

- A gente se fala pelo Face’.

Fiquei confuso e muito surpreso quando Miqi me deu um abraço. Aproveitei o momento para apertá-lo.

- Por favor, não vai. – pedi, baixinho.

Ele riu.

- Prometo tudo o que quiser. Só não vai.

Miqi soltou-se de mim, ainda sorrindo.

- Espero que não me cresça nada na cabeça quando estiver por lá.

Ele afastou-se, sorrindo largamente. Não entendi suas palavras e quanto mais ele se afastava, mais desesperado eu ficava. Seu avião chegou. Ainda longe de Alexandre e de sua família, vi Miqi se despedir de todos. De lágrimas nos olhos, enxerguei-o muito mal. Miqi pegou suas malas, acenou para todos, inclusive para mim, e foi embora.

Foi embora. Caí no choro como uma bicha escandalosa. Alexandre veio me acudir, dando muita risada, mas claramente abalado pelo amigo que partiu.

- Ele me pediu pra ficar de olho em você. Não confia muito no seu gênio.

- Ham? Do que está falando?

- Ele disse que você é perigoso quando está carente. Acha que quer receber chifre de novo?

Quando a tristeza me deu um tempinho para pensar, refleti sobre as palavras de Alexandre e depois sobre as palavras de Miqi. As últimas que me dirigiu. Olhei, então, para Alexandre, de modo indagador.

- Ele...

Alexandre confirmou com a cabeça, como se soubesse o que eu ia perguntar.

- Ele... Ele disse que... Ele disse...

Finalmente compreendi! Miqi e eu... Miqi e eu...!

- MIQI E EU...!! – exclamei.

Alexandre riu. Naquele instante, uma felicidade maravilhosa tomou conta de mim e eu fui obrigado a extravasá-la com pulos e abraços. Abracei Alexandre e beijei seu rosto várias vezes.

- Mas eu não me despedi do jeito certo! Ele também não... Por que não me beijou? Por que não... Mas... Quando ele volta? Ele disse que talvez não volte.

- Ele falou que vem ver a família no Natal e Ano Novo.

- Então a gente vai se ver... Daqui a nove meses? Oito? Não é muito. Ah! É. É muito tempo! Por que ele fez isso comigo? Por que ele gosta de me ver sofrer?

Alexandre continuou rindo, enquanto caminhávamos em direção à saída do aeroporto. A família de Miqi logo se reuniu conosco. Quando chegamos à calçada da rua, meu coração ficou mais pesado de tristeza. De saudade. Quando vi um avião no céu, imaginei se Miqi estaria dentro dele.

Que nada de ruim aconteça, pensei, naquele momento. Que dê tudo certo pra ele. E que nenhum americano safado se aproxime!


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