Angelique escrita por Miss Lolly


Capítulo 2
Capítulo 2




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Pílulas estavam espalhadas na cama, no criado-mudo e no chão. Eram de várias cores e tamanhos, mas nem todas registradas na agência nacional de saúde. A maioria não havia sido usada para o fim que havia sido produzida. Garrafas de cerveja faziam uma trilha da cozinha para a sala e para o quarto. Todas vazias. Uma e outra dando poucos pingos com o restinho que sobrara. A luz da lua e um abajur que ficava no balcão da cozinha eram as únicas coisas que clareavam aquele pequeno apartamento que se localizava ao lado de uma linha de metrô. As garrafas balançavam toda vez que um passava por ali.

A barba por fazer roçava na fronha que cheirava a cigarro e pizza velha, o lençol cobria uma das pernas e seguia até a nuca. O rapaz estava de bruços. Seu piercing de argola grossa por sorte não enroscava no travesseiro, caso isso fizesse, o rapaz iria ter que tomar muito cuidado com seu nariz nas próximas semanas. Como também os dos mamilos. Seu cabelo ainda estava crescendo, sua barba era maior do que ele, para ser realista. A cor loira refletia com a luz da lua. Se o cenário fosse completamente excluído, facilmente o comparariam com algum ator de televisão ou jogador de futebol, mas aquele rapaz estava extremamente longe de ao menos ter uma oportunidade para escolher alguma dessas profissões. Uma garota saía do banheiro somente com calcinha, era magra demais, sua pele contornava suas costelas, mas não era do tipo que passava fome para ficar magra, sempre que lhe perguntavam sobre isso, respondia que era genética. Ela sentou na beirada da cama e observou por breves segundos aquele rapaz, passou uma das mãos na cabeça dele e sorriu. A situação de ambos não era das melhores, mas quem se importava?

Seu sutiã estava em cima da cômoda antiga, ela o vestiu e em seguida colocou seu micro vestido de paetê dourado, passou seu batom pink e beijou o pedaço de um guardanapo colocando-o em uma das mãos do rapaz, calçou seus saltos e foi embora. Angelique assistiu a toda aquela cena, sentada em cima do guarda-roupa que rangia a cada tremor do prédio. Suas flechas e seu arco pousavam em seu colo e duas lágrimas escorriam em seu rosto. Eram lágrimas negras. Lágrima negra é o resultado de incompetência e tristeza de um cupido, elas aparecem sempre quando um trabalho não é cumprido, independentemente do motivo. Era um tipo de punição. Essa lágrima – o único tipo que um cupido derramava – causava dor e culpa intensa no ser místico, elas pesavam de maneira descomunal. Era um grande erro não juntar duas pessoas que eram para ser. Por isso que eram raríssimas as ocasiões em que um cupido que não fazia seu trabalho perfeitamente, pode-se dizer até mesmo que eram nulas. Mas essa história está contando sobre Angelique, não? Ela é uma cupido que deixou de fazer seu trabalho não uma, como duas vezes com a mesma pessoa. Por isso as duas lágrimas em seu rosto. Sim, ela estava sentindo em dobro a dor e a culpa.

Kyle era o nome do rapaz, ela soube da história dele a partir do primeiro momento em que viu seus olhos, tão verdes quanto a relva após uma tarde de chuva, era uma das mais tristes que viu nesses seus anos de existência. O pobre rapaz estava condenado a levar uma vida de miséria emocional. Sua flecha poderia ajudar ele a melhorar? Claro que sim, mas Angelique tinha esse sentimento estranho dentro dela, de que aquela hora não era a certa para Kyle, de que precisava de mais para ele antes de encontrar o amor de sua vida. Talvez Angelique não tenha que ser a cupido que o flechará.

Uma simples cupido de insignificantes quarenta anos desafiando algum poder muito além do que ela poderia imaginar? Com toda certeza. Escute, Angelique nunca quebrara as regras, não antes de conhecer esse rapaz. Ela se sentia inexplicavelmente atraída por ele, não sabia dizer que tipo de atração, visto que humanos nunca lhe chamaram a atenção, apenas se pegava observando-o em alguns momentos de seu tempo livre, onde quer que ele estivesse. Ela desceu no armário e parou na frente dele, observava-o, admirava-o. Pensou em acariciar sua cabeça, mas não poderia arriscar. Kyle emanava energia pura, a energia que indicava para a cupido que as chances de ele conseguir vê-la eram enormes. Ela então o deixou ali com seu sono profundo e foi até a sala. Dentre a bagunça instalada, vários papéis se encontravam jogados aleatoriamente e alguns grudados na parede. Eles não estavam ali na última vez que ela visitou esse apartamento, que fora quando ela se recusou a flechar pela primeira vez. Era destino de Kyle encontrar seu amor em alguma transa casual em seu apartamento. Angelique se aproximou e viu que todos os desenhos eram com a mesma imagem, apenas o que mudava era cenários e posições. Parecia que ele havia descoberto um dom. Era como fotos que Kyle tirava de seus sonhos, ou frutos de uma imaginação fadada a grandiosidade. A cupido se aproximou e foi surpreendida quando reconheceu os traços da mulher desenhada, era ela.

Como se essa descoberta tivesse o poder de torná-la humana por milésimos de segundos, Angelique sentiu um choque, uma corrente elétrica passando dentro de si. Um bolo em sua garganta. Como ele poderia tê-la desenhado sendo que nunca se deixou ser vista? Como ele conhecia cada traço de seu rosto sendo que nunca imaginaria que ela realmente existisse? Angelique ficou atônita e deu alguns passos para trás, sem querer chutou algumas garrafas de cerveja que fizeram barulho suficiente para que Kyle acordasse. Sem entender o que estava acontecendo, a cupido desapareceu poucos segundos antes do rapaz aparecer na sala para descobrir o que ocasionou tal barulho. Ela não ficou ali para ver o que ele pensaria. Angelique voou o mais rápido que conseguia até seu local de refúgio: a capela do primeiro casal que flechou. Ela não sabe o motivo de fazer dali sua “casa”, provavelmente seja algo simbólico. Eles morreram há vinte anos em um acidente de carro, mas por vinte antes permaneceram juntos. Ela costumava ficar sentada em cima da capela e imersa em suas questões existenciais, mas hoje em especial, a cupido estava extremamente fora de si.

Nunca havia visto alguma de suas pessoas fazerem isso com relação a ela. Angelique não poderia perguntar para algum outro cupido mais experiente o que isso significaria. Ela não sabia como falar com o poder superior. A cupido estava no escuro e isso a atormentava. Em um ataque de raiva e de sentimento autodestrutivo, Angelique passou a arrancar suas penas. Uma por uma. A última vez que havia feito isso foi há quatro anos, mas desta vez a dor era muito maior. Seu azar era que seres místicos não desmaiavam com a dor. Após arrancar todas suas penas, suas costas derramavam um líquido viscoso de cor marrom, podemos chamar aqui de sangue superior. Ela encarou suas tatuagens e começou a berrar com elas, como se aqueles desenhos inanimados fossem os culpados de nunca lhe darem uma única resposta a respeito de sua vida. Se um mortal se sente impotente quando não se sente satisfeito com sua vida e não consegue sentir felicidade ou um propósito que lhe toque, imagine um semi-imortal.

Em um ato de loucura, Angelique pegou uma de suas flechas e tentou arranhar suas tatuagens, porém sem sucesso, aquelas flechas não eram destinadas a causar o mal. Ah, o destino! Angelique não queria que o dela fosse vagar causando a felicidade a simples humanos, enquanto ela, uma superior, não era digna de ao menos conhecer outros sentimentos a não ser os que já vieram consigo. Aquela dor de quando estava retirando suas penas voltou, ela passou as mãos em suas costas e sentiu seu sangue seco. Suas asas estavam crescendo novamente. Como foi dito no capítulo anterior, não adiantava a cupido querer se livrar daquilo que a caracterizava, eles sempre voltavam. Ela jogou sua cabeça para trás enquanto apertava os olhos de dor, sua voz não saia, mas aquilo bem que poderia ser um dos mais agonizantes gritos já escutado pela raça humana. A dor desapareceu no instante em que as asas se recompuseram. Era como se Angelique nunca a tivesse sentido.

Isso a enraivou. A cupido tomou o sentido do voo para a atmosfera, saiu dela, parou na exosfera e observou a escuridão e o silêncio do universo. O poder superior não se encontrava vagando pelo universo, na verdade, Angelique não fazia ideia em qual lugar ele existiria. Ela não tinha ninguém para descontar sua frustração. Voando de volta para seu lugar, a cupido fora puxada pela força usual, havia nominado de “força do amor”, algo bem clichê, mas que era a perfeita descrição. Ela não se sentia preparada para fazer seu trabalho, algo de errado estava acontecendo dentro dela. Por isso não se importou em ver a história do futuro casal e apenas lançou sua flecha na direção de ambos. Viu a primeira troca de olhar, o primeiro sorriso bobo e ficou observando até a troca de telefones, quando teve a certeza de que seu trabalho estava feito, ela desapareceu.

Procurou pela energia pura de Kyle e o encontrou junto com uma mulher, cinco anos mais velha do que ele e muito elegante. Eles estavam em uma animada conversa. De longe, Angelique assistia a conversa deles. Parece que Kyle havia enviado alguns desenhos dele para ela há poucos dias, era dona de uma galeria, ela havia pedido para que ele desenhasse no guardanapo a fim de verificar o talento do rapaz. Nesse momento, Angelique sentiu a outra força começando a crescer entre aqueles dois. A força do amor. Subitamente, um “não” saiu da boca da cupido que nunca falava e, estranhamente, Kyle escutou. Olhou curioso para o lado e Angelique rapidamente se escondeu atrás de uma planta do café em que se encontravam, não viu ninguém, mas a cupido estava ali, agachada, sentindo uma lágrima negra se formar e desaparecer em um de seus olhos. Ela sentia como se aquilo fosse um aviso que havia sido dado para ela. O amor rondava Kyle e procurava de todas as maneiras o alcançar.

Ela escutou Kyle perguntando para a moça se ela também havia escutado alguém falar, sua companhia lhe respondeu que não e em seguida elogiou o desenho que ele fizera, apesar de ser a mesma pessoa dos outros desenhos, os traços estavam bem mais definidos e realistas, como se ele tivesse evoluído seis anos de prática em poucos dias. Ela aceitou expor por duas semanas os desenhos em sua galeria. A felicidade do rapaz emanou o suficiente para que atingisse Angelique, porém, a cupido não sabia sentir, apenas sabia que se tivesse flechado-o naquela manhã, esse acordo não iria ser fechado. Mas ela ainda não sabia o que estava acontecendo. Andando sem rumo, Angelique não sabia sobre seu futuro, mal conhecia seu destino, ainda tentava entender o sentimento que ajudava a despertar nas pessoas, o sentimento que tornara sua espécie conhecida e que foi motivo de imaginação humana durante mais séculos do que pudera contar.

Ansiava saber o porquê de teimar tanto quando o assunto era Kyle. Qual era o motivo de se importar com o momento certo para ele, de se achar com mais sabedoria do que Aquilo que existe há mais tempo que a humanidade, de pensar que sabia o que era melhor para alguém sendo que não sabia nem o que era razoável para ela mesma.


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