“E mais uma noite, ele viria para me render.”

 

 

 

         As luzes do espelho brilhavam sobre seu rosto. Aquele rosto maquiado, meticulosamente produzido para mais uma noite, para mais um show. Era doce e perigoso imaginar como na verdade ela não tinha olhos, mas sim um par de orbes luminosos, incrivelmente trabalhos por camadas de rímel e sombra. Dois profundos abismos, cujo fundo não era possível ver. Porque simplesmente, aquilo era uma lasciva máscara.

 

 

 

First floor

 

“Primeiro andar”

 

Room 16

 

“Sala 16”

 

Smells like danger

 

“Cheira a perigo”

 

 

        

         Lábios perfeitamente desenhados pelo batom, formando um conjunto de sinuosas curvas onde o mais habilidoso homem poderia derrapar. Uma armadilha para a queda, um aperitivo para a perdição. Aquele corpo esculpido para o pecado, coberto pela luxúria, não era o seu. O corpo de Strashy era o que todos queriam, o que todos eles desejavam. Strashy, um nome tão sujo e deslumbrado quanto a lingerie vermelha de renda que ela vestia, tão sensual quanto os sapatos de salto impecavelmente alto que calçava. Strashy, aquele era o nome noturno que ela usava para esconder o verdadeiro, o que tinha se perdido há tanto tempo atrás, Inoue.

 

 

 

Even better

 

“Melhor ainda”

 

Set your goals

 

“Defina suas metas”

 

Bless our souls

 

“Abençoe nossas almas”

 

I’m in trouble

 

“Eu estou encrencada”

 

But it feels like heaven

 

“Mas é como estar no paraíso”

 

 

 

         E então, ela estava pronta para mais um espetáculo de prazer, para um pouco mais de pecado. A fantasia de Srta. Perigo estava em seu devido lugar, o rosto estava impecavelmente projetado para fazer delirar mais um homem naquela noite. Apenas aguardava o chamado, esboçando o morto sorriso nos lábios diante do espelho, esperando o momento em que a música começaria.

         A porta do pequeno camarim se abriu, e mais um rosto maquiado e ornamentado pelo pó rosado fez parte do pequeno teatro onde os corpos valiam mais que os corações.

 

- Seu cliente chegou, Strashy. – disse a cortesã com uma piscadela rápida.

 

- Quem é o idiota de hoje? – perguntou, terminando de arrumar os cabelos em um perfeito e desalinhado coque ruivo.

 

- Schiffer. – sorriu a outra, maliciosa e sarcástica, antes de sair.

 

         Ele, seu cliente preferido.

 

 

 

You were like one of those guys

 

“Você é como um daqueles caras”

 

The kind with a wandering eye

 

“O tipo com um olhar delirante”

 

But I said, Hey what the hell?

 

“Mas eu disse, Hey que diabos?”

 

Once in my life I’ll take a ride on the wild side

 

“Pela primeira vez eu vou andar do lado selvagem”

 

 

 

         Seu moreno de olhos verdes insubstituíveis, seu homem. Em quase todas as noites, ele estava ali para vê-la dançar tão perto, para tocá-la do modo como apenas ele sabia fazer. Ele estava ali por um pouco mais dela, por um pouco mais de Inoue. Strashy seria deixada para trás quando ela o tivesse sobre seus olhos maquiados. Ele, o único livre da hipocrisia daquele lugar, o único que a fazia se sentir realmente viva.

         Deixando-se tomar por um misto de prazer e euforia, ergueu-se elegantemente da cadeira ornada por plumas rosadas. Em seu rosto, um sorriso que agora vibrava.

 

 

 

You were so full of yourself

 

“Você era tão cheio de si”

 

But damn, were you cute, as well

 

“Mas que droga, era tão fofo, do mesmo jeito”

 

You liked my legs, I liked your moves

 

“Você gostou das minhas pernas, eu dos seus movimentos”

 

Anyone could tell not hard to deny that

 

“Qualquer um pode dizer que não é difícil de negar que”

 

 

 

         Abandonou as luzes do camarim, antes que elas a poluíssem mais do que deveriam. Estava enegrecida o bastante para ele, perfumada o suficiente para as mãos grandes e elegantes de seu cliente predileto. Enquanto caminhava pelo estreito e luminoso corredor, olhares pesados caíam sobre seu corpo. Com um pouco mais, eles a consumiriam a carne, desgastariam o sensual perfume que ela tinha sobre a pele, fariam dela um delicioso caco. Porque ela era Strashy, a cortesã que escondia um coração.

         E quando abriu a porta reservada, ele estava ali, esperando por ela como sempre. Despojadamente acomodado na confortável poltrona bordô, de joelhos afastados, tragando o infeliz cigarro entre os pálidos dedos. Seu viciante convidado.

 

 

 

I did it again, now, I've got it all wrong

 

“Eu fiz de novo, agora, fiz tudo errado”

 

But it felt so right, I can't believe it

 

“Mas parecia tão certo, não posso acreditar”

 

 

 

         Ela sorriu, ele retribuiu com discreta malícia. Seus olhos melancólicos caindo sobre ela, vasculhando-lhe com gentil desejo, aquecendo-a com sua chama interna. Os lábios finos, completamente irresistíveis depositados feito uma única linha horizontal no rosto pálido e sombrio. Os cabelos negros desalinhados, cuidadosamente caídos sobre a testa, quase a tocar os olhos. A camisa social azul escura encontrava-se com os primeiros botões abertos, revelando as linhas sutilmente rígidas do pescoço, assim como as mangas ligeiramente erguidas mostravam braços elegantes, propícios ao devaneio. Para completar, calça e sapatos escuros, contrastando com sua imagem de marfim.

         Mais uma tragada, um pouco mais daqueles olhos.

 

 

 

And all the mistakes that went on for too long

 

“E todos os erros que eu cometi por tanto tempo”

 

Wish there was a way I could delete 'em

 

“Queria que tivesse um jeito que eu pudesse apagá-los”

 

 

 

         Num suave e lento desfile, sensual o suficiente para fazer o elegante Schiffer abandonar o cigarro, ela atravessou o quarto. As notórias pernas movimentando-se no mais deleitoso ritmo, na mais impecável caminhada. Parou diante de uma cadeira escarlate, à frente de seu amável cliente, e sentou-se na mais invejosa delicadeza. Lasciva, cruzou as pernas e depositou as mãos sobre os joelhos, lançando constantemente seu olhar maquiado na direção dele.

         Por baixo daquela máscara de tinta, um coração batia acelerado. E a impecável Strashy tratava de o controlar pelo lado de fora, inabalável. Um misto da mulher e da cortesã, o resultado avassalador. A ruiva levou uma das mãos munida de unhas vermelhas até a boca perfeitamente delineada, pousando o dedo indicador sobre o lábio inferior. Arqueou a sobrancelha, fatal, expressando dissimulada curiosidade. Aquilo era o que ela fazia, fingia.

 

- Imagino que palavra bonita você tem para mim hoje. – comentou ela, tocando suavemente o mesmo dedo no canto da boca, como se retocasse o batom.

 

         Ele a fitou, praticamente cruel. Seu rosto de boneca noturna gelou quando percebeu que o olhar verdejante dele não descia para suas pernas, mas intensificava o foco em seu rosto transfigurado pelo brilho. Com um leve movimento de mão, ele gesticulou para que ela se aproximasse.

         O olhar fixo, quase insuportável. E então Strashy tratou de segurar as pontas novamente, avançando seguramente enquanto aquele coração vacilava. A manequim postou-se diante dele, e sensualmente inclinou-se sobre o homem sombrio que ali a fitava. Suas pequenas e sujas mãos pousaram nos braços da poltrona, enquanto seu rosto mascarado aproximou-se perigosamente do dele. O rosto pálido e imóvel de Schiffer, quase morto e vampiresco.

 

- O rosto de uma meretriz, coberto pela tinta sedutora dos enfeites, não é mais repugnante do que meu crime sob minha palavra enganadora. – recitou ele, frio e encantador.

 

         Sua voz de veludo caro, seu timbre abafado pelo peso daqueles olhos. Era pelo impecável e aliciante controle que ela o considerava seu melhor cliente, o único para qual ela se entregava completamente. Para ele, não havia segredos. Ele era o único que sabia que Inoue ainda existia em algum lugar ali dentro.

 

- E qual é o seu crime? – perguntou ela, esboçando um sorriso maduro.

 

- Pegar um pedaço seu a cada noite. – revelou ele, sem rodeios enquanto a encarava com desejo. – Não é o suficiente para você? – sondou o moreno, tocando o queixo pequeno dela com a mão quase fria.

 

- Você não pega. – corrigiu ela, repentinamente ofensiva. – Você compra.

 

- É o que você está oferecendo, um produto. – respondeu ele, cruel.

 

- É o que você quer. – e ela pousou o joelho entre as pernas dele, sobre a poltrona. – É o que todos querem, querido. – lembrou ela, profunda.

 

- Não, eu quero mais. – disse ele, subindo as mãos pelas laterais das pernas dela, arrancando-lhe arrepios que ficaram presos na garganta afogada.

 

 

 

I'm back in trouble

 

“Estou de volta ao problema”

 

I don't get it

 

“Eu não entendo”

 

But we ignore them

 

“Mas nós os ignoramos”

 

'Cause it's getting better

 

“Porque está melhorando”

 

 

 

         Afogada pelo que ela não podia demonstrar, não podia libertar. E aquelas mãos subindo ainda mais, tocando a barra da lingerie imunda em que tantos homens haviam posto as mãos, os lábios com cheiro de bebida. Não havia espaço para lamentações ou arrependimentos, porque aquela era a realidade.

         Ela aproximou os lábios dos dele, tocando-os superficialmente. Sentiu o hálito fresco da boca de seu convidado, de seu fantasioso amante. Queria embeber-se dele, mais ainda do que ele embebia-se dela.

 

- Me diga, o que você quer? – perguntou ela num sussurro lascivo.

 

         De imediato, repreendeu-se pela pergunta. Poderia receber uma resposta dolorosa, o que seria ainda pior do que o esquecimento e o silêncio.

         Schiffer apertou as mãos no quadril de sua meretriz, forçando-a a cair sobre seu colo quente. Um suspiro profundo se foi pelos lábios tingidos da ruiva, e sua cabeça pendeu para trás, lutando com o auto-controle. Precisava manter Strashy ali, protegendo a frágil Inoue. Ele segurou-a pelos cabelos, desfazendo completamente o coque em que ela trabalhara durante algum tempo, conduzindo o rosto dela para junto do seu, onde depositou um protuberante e insano beijo.

 

 

 

'Cause I always trip and fall

 

“Porque eu sempre tropeço e caio”

 

On the same old rock and repeat and go back

 

“Na mesma velha pedra que repete e eu vou de novo”

 

How blind a girl can be

 

“Como uma garota pode ser tão cega”

 

To miss you hide your ring?

 

“Para esquecer que você esconde seu anel?”

 

 

 

         Uma boneca manipulada por outras mãos, era o que ela era. No entanto, quando as mãos eram as de Ulquiorra Schiffer, o que estava ali todas as noites para vê-la, aquela marionete adorava ser cortejada.

         Seus pequenos braços formaram um elo ao redor do pescoço dele, agarrando-se àquele corpo como se fosse seu último escape, sua única chance de sentir o ar entrando nos pulmões. Embevecida, alimentou-se dos lábios dele, não imaginando o quanto aquilo era doloroso para ele. Ver sua garota, possuída daquela maneira, debaixo de trapos tão sensuais quanto imundos.

         O convidado especial ergueu-se da poltrona, carregando sua cortesã de luxo nos braços. As pernas dela – as que ele tanto adorava – estavam bem presas ao redor da cintura dele, assim como seus lábios nos dele. E com não mais de dois passos, ela sentiu o impacto macio e confortável da cama debaixo de suas costas. Ele a jogara sobre os lençóis do pecado, esparramando seus belos cabelos cor de fogo sobre um dos travesseiros vermelhos. Com voracidade, ela alcançou a gola descomposta da camisa dele e puxou-o para junto de si, acomodando-o deliciosamente entre suas pernas pálidas.

 

 

 

It may seem to you that I am in a place

 

“Parece que para você eu estou em um lugar”

 

Where I'm losing the direction of my life

 

“Onde estou perdendo a direção da minha vida”

 

But I'm sure that this is nothing but a phase

 

“Mas tenho certeza que não é mais que uma fase”

 

'Right back at ya, 'cause I'll survive

 

“De volta para você, pois vou sobreviver”

 

 

 

         E ele caiu sobre ela feito álcool no fogo. Agora, em seu mais perfeito descontrole, arrancou do belo corpo dela toda aquela fantasia ridícula. Queria-a sem aquele lixo, aquela sujeira de outros homens. Queria-a para si, unicamente, mesmo sabendo que seu sonho jamais chegaria perto da realidade. Porque ela era a mais doce meretriz daquela cidade, a única com um coração.

         Suas mãos ávidas transformaram em farrapos a lasciva lingerie que ela tinha sobre o corpo, apoderando-se do corpo dela com insana possessão. Não era mais Strashy quem gemia de prazer a cada vez em que ele parecia arrancar uma parte de seu corpo junto com os pedaços de renda, mas sim Inoue. E nua debaixo do corpo efervescente de Ulquiorra, ela sentiu-se um pouco mais mulher, menos objeto. Ele pôde visualizá-la como ela realmente era, sem cascas, sem máscaras, percebendo o quão tudo aquilo estava errado. Não queria-a daquela maneira, naquele lugar sujo por mais uma noite. Lembrava-se de todas as madrugadas em que a possuíra daquele mesmo jeito naquela mesma cama, e as recordações ainda tão recentes lhe geraram profunda dor.

         Mantendo-a ofegante entre seus braços quentes, ele pôde ver o real sentimento através da camada de maquiagem nos olhos de lince dela. Ela o amava, e cedia constantemente um pouco de si para os imundos cafajestes daquela casa de perdição, dolorosamente. Não, ele não poderia mais mantê-la ali.

 

 

 

It may seem to you that I am in a place

 

“Parece que para você eu estou em um lugar”

 

Where I'm losing the direction of my life

 

“Onde estou perdendo a direção da minha vida”

 

 

 

         O moreno afastou-se da cortesã, capturando no chão a camisa que havia sido jogada. Vestia-se sombrio e extremamente perturbado, até que parou e olhou-a profundamente. Aquela imagem pequena, frágil e pálida sobre os lençóis perfumados, inutilmente tentando parecer forte e profissional diante dele. Era triste, e ele daria um jeito de nunca mais deixá-la estar naquele quarto.

 

- Eu quero o que está aqui dentro. – disse ele em resposta à ultima pergunta dela, apontando para o peito nu e palpitante dela sobre a cama. Seu coração.

 

         E seus olhos verdejantes abandonaram os dela, apenas por aquela noite.

Afastou-se na direção da porta do quarto, jogando sobre a cômoda algumas notas de dinheiro e um cartão branco. Ia abrir a porta e deixá-la, quando Inoue se manifestou.

 

- Vai embora? – perguntou ela confusa enquanto cobria-se com os lençóis.

 

- Você está suja. – disse ele frio, de costas para ela e com a mão na maçaneta. – Pegue suas coisas e vá ao endereço no cartão, eu estarei esperando.

 

- Você... – murmurou ela atônita e desconcertada, sentindo que a visão tornava-se distorcida por efeito das lágrimas a borrar sua maquiagem.

 

- E não volte mais aqui. – ordenou ele, saindo pela porta.

 

         Ele havia visto o coração de Inoue, havia a descoberto.

 

 

 

And all the mistakes that went on for too long

 

“E todos os erros que cometi por tanto tempo”

 

Wish there was a way I could delete 'em

 

“Queria que tivesse um jeito que eu pudesse apagá-los”

 

 

 

         Seu cliente predileto havia lhe dado uma opção, a que ela nunca conheceu. Ele havia a rendido, fazendo-a deixar cair todas as armas, toda a sensualidade e lascívia, toda aquela máscara.

         Ele, aquele que mandara Strashy para o passado. Aquele que teria Inoue eterna e unicamente para si, a partir daquele momento.

 

 

 

“Porque eu havia sido perdidamente rendida.”