Premonição 9: A Dama no Escuro escrita por Lerd


Capítulo 1
Preto


Notas iniciais do capítulo

Primeiro capítulo da nova fic, gente :D

Espero que gostem! É sempre bacana começar uma nova fic, e estou empolgado com essa. Tenho muita coisa bacana e original planejada.

Aos que nunca leram nenhuma fanfic minha, podem ler essa sem medo. Apesar de ser minha nona fic de Premonição, a história é completamente original e independente de todas as outras. Leiam! :)

As fotos dos personagens podem ser conferidas aqui: http://premonicaofanficsource.blogspot.com.br/2014/11/premonicao-9.html



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Riley observava a tarântula dentro do aquário se movendo de maneira lenta e metódica. Felicia virou-se na direção da dona e começou a tentar escalar o vidro, mas suas patas escorregavam. A garota aproximou o rosto da aranha e sorriu. Apesar disso, não soube dizer se ela sorria de volta. As aranhas sorriem? Ela sempre poderia perguntar ao seu pai que, como um bom biólogo, saberia lhe dizer. Mas era melhor não. Sean Driskill poderia ser bastante irritante quando queria.

Ao fundo, a música tocava bem alta. Iron Maiden.

Have you run your fingers down the wall

And have you felt your neck skin crawl

When you're searching for the light?

Sometimes when you're scared to take a look

At the corner at the room

You've sensed that something's watching you

Toc, toc. Batidas na porta.

— Filha? Abre a porta, eu quero falar com você.

Falando no diabo...

A garota pensou em não responder, fingindo que estava dormindo com a música ligada, mas então se sentiu cruel por isso. Eram poucos os momentos em que seu pai realmente demonstrava interesse por ela, de modo que ela não devia ignorá-lo. Fazer isso só contribuiria para o afastamento entre os dois.

Riley caminhou lentamente até a porta, passando diante do espelho de sua penteadeira. Observou por curtos segundos seu corpo no espelho, virando-se de lado e encolhendo a barriga. Continuava magra como sempre, no limítrofe do saudável. Prometera a si mesma que jamais voltaria ao estado em que chegara dois anos antes, mas as vezes voltava a ver-se larga e pesada. Nessas horas tinha de sair de frente do espelho e ligar para Andi. A amiga saberia o que lhe dizer, e tudo ficaria bem.

Além disso, não havia com o que se preocupar. Riley era bastante bonita, com nariz e boca finos e olhos grandes, escuros e expressivos. Os cabelos eram tingidos de vermelho, contrastando com a sobrancelha escura, mas combinando com o piercing no nariz e o piercing medusa, colocado em cima do lábio superior, bem ao centro, entre a boca e o nariz. Ela gostava de ambos, especialmente quando se lembrava da briga que teve com o pai quando decidiu colocá-los.

Colocou a mão em cima do rádio, as unhas pretas contrastando com o aparelho branco. Girou o botão do volume, diminuindo-o, embora ainda se conseguisse ouvir a letra ao fundo:

Fear of the dark, fear of the dark

I have constant fear that something's always near

Fear of the dark, fear of the dark

I have a phobia that someone's always there

Suspirou e girou a maçaneta.

Sean olhou atentamente para Riley, e então segurou seu rosto e lhe deu um beijo na testa. O homem vestia uma camisa social branca, suspensórios e uma gravata, sinal de que estava indo trabalhar. Ele dava aulas em uma universidade comunitária qualquer da cidade, a qual a ruiva não se dera ao trabalho de decorar o nome.

Ele caminhou através do quarto, reparando na bagunça em que ele estava, e então se sentou em cima da cama.

— Você não tem aula hoje, Riley?

— Não. — Ela respondeu de maneira firme. — O Senhor Mooney, nosso professor de química, morreu de um ataque cardíaco ontem a noite. O colégio está em luto, as aulas de hoje foram canceladas. Mas eu tenho o meu turno na hamburgueria no fim da tarde, e ainda preciso buscar a minha fantasia da festa de Halloween.

— Oh, é verdade! A festa. — O homem assentiu com a cabeça. — Qual é a sua fantasia mesmo?

— Nicki Minaj. — E diante da expressão de confusão do pai, Riley acrescentou: — Ela é uma cantora de rap que usa perucas coloridas.

Sean riu largamente, e a garota acompanhou-o na risada. Sentou-se ao lado do pai e ficou olhando de maneira displicente para o guarda-roupa de madeira escura. Ele fora herança de sua avó materna, que morrera quando Riley ainda era muito pequena.

— Certo. — O pai afirmou. — Acho que nós não vamos nos ver mais por hoje, então. Vou chegar lá pelas seis e meia da tarde, mas acho que a essa hora você já saiu pra trabalhar né?

Riley meneou a cabeça positivamente. Sean continuou:

— Então bom trabalho e tenha um bom dia, filha.

Ele então se levantou e deu dois passos em direção à porta, mas mudou de ideia e deu meia volta. Ensaiou uma frase que nunca saiu, desistindo de falar qualquer coisa. Limitou-se a inclinar-se e dar um segundo beijo na testa da filha. Riley foi receptiva ao gesto, tocando levemente o ombro do pai. Quando ele saiu, o cheiro da colônia dele foi a única coisa que restou no quarto.

Riley não entendia o pai. Já tentara, mas não entendia. Algumas vezes, como aquela, ele era receptivo e interessado, parecendo realmente um pai de verdade. Mas em outras ele a ignorava completamente, como se ela não existisse ou não fosse digna de sua atenção. A ruiva tinha certeza que aquilo tinha a ver com sua mãe, mas não conseguia compreender o objetivo dele com aquelas atitudes.

Lana Summers, sua mãe, fora embora de casa dois anos antes, quando Riley tinha quinze anos. Desde então as duas trocaram poucas ligações telefônicas e um único encontro pessoalmente, em que a garota mais brigou do que falou alguma coisa coerente. A mãe a convidara para morar com ela, mas a ruiva sabia que aquele não era um convide genuíno. Ela só estava cumprindo o que Andi chamava de “protocolo dos pais divorciados”. A mulher era uma jornalista competente, que agora se dedicava a escrever uma coluna pequena em um jornal de Nova York. Riley não fazia ideia se ela estava solteira ou não, mas não se interessava nem um pouco.

O motivo da separação fora, mesmo que nem o pai e nem a mãe admitissem, ela. Tudo acontecera quando a garota estava passando pela pior fase de sua bulimia, e as discussões do casal a respeito do problema da filha eram constantes. Ambos tinham visões diferentes de como lidar com a crise de Riley, e pareciam incapazes de trabalhar juntos pelo bem estar dela. A garota admirava a mãe e amava o pai, mas tinha seus próprios demônios para enfrentar.

Quando Riley foi à sua primeira consulta com uma psicóloga, o que ela mesma definia como “o dia do recomeço”, a mãe a acompanhou. No carro de volta para casa, a ruiva sentiu que o clima estava diferente. Lana falou pouco, limitando-se a elogiar a atitude da filha e a encorajá-la em continuar sua batalha. Quando ambas chegaram em casa, a mulher deu um beijo na testa da filha e disse que ela deveria ir tomar um banho e se deitar.

Riley não a viu mais por vários meses. Aquele fora o dia em que Lana Summers abandonara o marido e a filha. Por mais que tentasse, a garota não conseguia perdoar a mãe. Admirava a força do pai e tomara as dores dele, odiando a atitude que a mãe tomara. Os dias que se seguiram à fuga dela foram penosos, talvez até piores que os dias mais tenebrosos de sua bulimia. Mas então, quando Riley conseguiu pensar com clareza a respeito de tudo, as coisas começaram a melhorar.

Sem a energia negativa que as discussões dos pais traziam, a garota foi capaz de prosseguir com seu tratamento com a Doutora Law. O pai fazia questão de acompanhá-la nas sessões, na maioria das vezes ficando mais de uma hora sentado em uma cadeira desconfortável na sala de espera. Mas era amável e gentil, como nunca fora em todos os anos da vida de Riley. Foi com a ajuda dele que a sua melhora fora possível.

Mas então tudo se tornou o caos que era até aquele dia. A alternância de humor de Sean, que navegava entre ser um pai amoroso e um pai negligente, era incompreensível. Riley aprendia aos poucos e com dificuldade que devia saber lidar com ambas as situações, mesmo que não as entendesse. Deveria ser ela também uma filha amorosa e uma filha negligente.

— O que eu faço com esse maluco, hein Felicia? — Ela disse, se aproximando do aquário onde a tarântula estava.

A aranha nada respondeu. Riley fez uma expressão de frustração e falou:

— Foi o que eu imaginei.

E então caminhou em direção ao aparelho de som, aumentando o volume no máximo, para que a música conseguisse abafar qualquer pensamento que ela pudesse ter a respeito de tudo aquilo.

x-x-x-x-x

O rapaz caminhava a passos largos pelas ruas da cidade, com os fones de ouvindo balançando em frente ao seu peito. Apesar disso, ele prestava bastante atenção a tudo ao seu redor, especialmente quando atravessava a rua. Aprendera cedo que precisava cuidar de si mesmo, especialmente naquele momento, em que as coisas estavam dando tão certo em sua vida.

Brian Nowak vestia-se de maneira formal, o que não era comum para ele. Estava com uma camisa branca e um suéter azul marinho do irmão, e sentia-se incrivelmente ridículo. Junior era acostumado a vestir-se daquela forma, mas Paris não. Era ele quem deveria ter ganhado aquele apelido, aliás. Paris. Parece a porra do apelido de um mauricinho. Mas ele gostava de ser chamado assim, especialmente porque aquele apelido lhe fora dado pelo seu primeiro treinador do time de futebol americano, quando ele e Junior ainda eram crianças. Paris não se lembrava do exato motivo, mas quando se deu conta todos os chamavam assim. Ele só era Brian em casa. Fora dela, era Paris.

Já o irmão gêmeo, Jeremiah, era conhecido apenas pelo seu último nome, Junior. Ele tinha o mesmo nome do pai, o respeitável juiz Jeremiah Nowak, que era implacável no cumprimento da lei, e um verdadeiro canalha em casa. Desde pequeno Paris aprendera a lidar com essa dualidade do pai, sempre caminhando no limite entre o honrado e o cafajeste. Àquela altura do campeonato, aos dezessete anos, Paris só conseguia ver o cafajeste. Detestava o pai com todas as suas forças, por mais que soubesse que seria obrigado a amá-lo durante o resto de sua vida. Era sua maldição como filho.

Paris estava atrasado para buscar Nina, a namorada do irmão, de sua consulta no psicólogo. Junior deveria encontrar-se com a namorada e escoltá-la até em casa, já que o bairro em que a clínica ficava tinha sido palco, na noite anterior, de um assalto que deu errado. Clive Mooney, o professor de química deles, sofrera um ataque cardíaco após ter sido abordado por dois assaltantes, e morrera instantaneamente. O clima entre o grupo de amigos deles era pesado, e todos só falavam sobre aquilo. Junior tinha medo que algo acontecesse com a namorada, então combinara de buscá-la ali e deixá-la em segurança em casa.

Mas então viera a reunião do clube do livro de sua mãe. As velhas que se reuniam na casa dos Nowak eram insuportavelmente enfadonhas, mas para a sorte de Paris, elas se encantavam era por Junior. Era ele quem sabia tocar piano e conversar durante horas a respeito de música clássica, mesmo que odiasse o gênero. Paris nunca aprendera a tocar nada além de violão, e só conhecia a quarta sinfonia. Por conta disso, fora poupado da tarefa de fazer companhia às mulheres em sua casa. Restara a ele, então, a tarefa de ir buscar a namorada do irmão.

Era óbvio que Nina perceberia que ele não era Junior, mas o irmão fizera questão de que Paris se passasse por ele. Na cabeça maluca do gêmeo, as pessoas realmente se importavam com o que as outras faziam, e ficaria “feio” para ele se não fosse buscar Nina em sua consulta. O outro rapaz apenas ria daquela lógica absurda e concordava com o plano, sabendo que não valia a pena discutir. Se o tonto do meu irmão se importa com a opinião dos outros, que assim seja.

Paris passou em frente à loja de fantasias e viu uma enorme placa anunciando 30% de desconto para os alunos do seu colégio. Ele sabia que a maior parte dos seus colegas alugaria suas fantasias ali por conta disso, mas a dele e a do irmão tiveram de ser encomendadas, já que se tratava de uma ideia bem original. Os dois se vestiriam como as gêmeas do filme “O Iluminado”, com a certeza de arrancar gargalhada de seus amigos. A ideia fora do próprio Paris, que não precisara de muito para convencer Junior. Apesar de ser um pouco antiquado, seu gêmeo tinha senso de humor.

O rapaz parou em frente à vitrine e ficou observando seu reflexo no espelho. Julgava-se mais bonito que o irmão, mesmo sabendo que ambos eram idênticos. Paris tinha um rosto comum, coberto com uma espessa e precoce barba negra, coisa que o irmão também tinha. O nariz era grande e reto, e os olhos tinham uma coloração esverdeada bastante escura, parecida com a cor de musgo. Os cabelos também eram escuros, e tanto ele como Junior o mantinham em um tamanho normal. A diferença era que enquanto Junior o penteava para frente, Paris o penteava para o lado esquerdo. Mas não hoje. Hoje eu sou o besta do Junior.

A atenção de Paris foi rapidamente chamada para a garota que estava há alguns metros dele, na rua e com uma sacola da loja de fantasias em mãos. Ela tinha os cabelos vermelhos tingidos e era bastante magra. Ele rapidamente a reconheceu. Riley, a esquisitinha. A garota era da sua classe, e sentava relativamente próxima dele, embora os dois jamais tivessem trocado qualquer palavra além de um esporádico “bom dia” quando eles eram os primeiros a chegar à classe.

Mas Riley parecia distraída. Com os fones no ouvido, olhava fixamente para um ponto no horizonte, caminhando de maneira cega pela calçada. Ela estava prestes a atravessar a rua quando Paris percebeu o veículo vindo em alta velocidade. O sinal estava fechado para os pedestres, mas a ruiva parecia alheia a isso. Caminhava para frente do carro como se fosse uma mariposa atraída pela luz de uma lâmpada.

— Ei! — Ele exclamou, e correu na direção da garota.

Paris puxou Riley exatamente um segundo antes do veículo acertá-la em cheio. Os dois caíram na calçada com baque surdo, sendo que a ruiva soltou um gemidinho de susto, deixando seus fones de ouvido caírem.

— Você tá querendo se matar, é? Presta atenção por onde anda. — Ele exclamou, um pouco irritado com a imprudência dela.

O rapaz levantou-se num pulo, e esticou a mão para ajudá-la. Riley pegou a mão dele e ergueu-se do chão, abaixando-se em seguida para recolher sua sacola e seus fones. Ainda estava vermelha e envergonhada quando disse:

— Obrigada, Junior...

Mas o rapaz não estava mais ali. Riley olhou para todos os lados e conseguiu vê-lo há vários metros, caminhando em direção ao centro. Pensou em correr até ele e agradecê-lo, mas haveria outra oportunidade. Ele provavelmente nem se lembraria do ocorrido, mas ela sim.

Jeremiah Nowak Junior acabara de salvar sua vida.

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As mulheres reunidas na sala de estar da casa dos Nowak não paravam de falar um único segundo. Junior retirou seu celular do bolso e percebeu que havia uma mensagem de Nina no Whatsapp. A namorada dizia:

Onde vc tá?

Ela havia sido enviada cerca de dois minutos antes, o que significava que Paris estava atrasado. Junior fechou o aplicativo sem respondê-la, esperando que o irmão pudesse acalmar a fúria de Nina quando ela percebesse que ele não havia ido buscá-la. Mas eu já fiz a minha parte disfarçando o Paris com as minhas roupas. A Nina precisa relaxar.

Além disso, o irmão lhe devia aquele favor. Afinal Junior passara uma madrugada inteira, na semana anterior, ensinando alemão para a namorada de Paris, Michaela. A garota era um doce, mas uma negação na língua, exatamente como o namorado. Junior, porém, era habilidoso, de modo que se dispusera a ensinar a namorada do irmão. Esse favor havia ficado guardado e estava sendo retribuído naquele dia. Nina e Michaela eram melhores amigas, de modo que não havia ciúmes de nenhuma das partes. Era uma situação que beneficiava a todos os envolvidos. Pelo menos era o que Junior esperava.

— E então, Junior? Conte-nos como foi! — Uma das velhas disse, interrompendo seus pensamentos.

— Como foi o quê? Desculpe-me senhora Tattler, eu estava um pouco distraído.

A mulher olhou para ele com uma expressão severa, mas que logo se dissolveu nos olhos verdes do rapaz. Ela então repetiu em um tom doce:

— O seu recital em Nova York. Como foi? Eu fiquei sabendo que a Priscilla Presley compareceu...

Junior queria se enforcar com a própria gravata no lustre da sala, se fosse possível. Apesar disso, respondeu cordialmente:

— Infelizmente eu não tive o prazer de conhecê-la pessoalmente, mas foi um grande concerto.

E deixou que as velhas falassem entre si por mais vários minutos. A mãe meneou a cabeça positivamente, secretamente aprovando o comportamento dele. Ela há anos havia desistido de ensinar bons modos à Paris, mas Junior ainda era seu menino de ouro. Dela e do seu marido Jeremiah, que convenientemente dera o próprio nome ao gêmeo mais velho. O nome que carregava em si um peso muito maior do que eles jamais poderiam imaginar.

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— Você está atrasado vinte minutos, Jeremiah Nowak Junior! — Nina exclamou ao ver o rapaz se aproximando da fachada da clínica. — Você sabe como essas ruas estão perigosas, mas mesmo assim me deixou... — E então se calou, quando Paris se aproximou o suficiente para que ela percebesse que não se tratava do namorado.

— Foi mal, Nina. O Junior ficou preso em casa com a mamãe e outras bruxas do clube do livro dela. Eu vim o mais rápido que eu pude.

Nina parecia surpresa com aquilo, mas escondeu sua irritação o melhor que pôde. Não poderia demonstrar instabilidade emocional na frente do irmão do namorado. Guardaria aquela frustração consigo e despejaria em cima dele na primeira oportunidade que tivesse.

— Tudo bem. Me leva pra casa. Onde você estacionou o carro? — Ela perguntou, olhando para todos os lados.

Paris riu de maneira nervosa. Disse, sem graça:

— Eu vim andando mesmo. A gente vai ter que ir caminhando.

— Mas eu estou de salto alto! — A garota exclamou.

Paris revirou os olhos.

— Então eu sugiro que você os leve na mão. Vamos. — Ele respondeu, dando as costas para a garota e seguindo seu caminho.

Nina o seguiu visivelmente irritada com tudo aquilo. Mesmo naquela situação, ela ainda era extremamente bonita. Tinha um rosto angelical e levemente infantil, com olhos, nariz e boca de tamanhos proporcionais. Os dentes eram brancos e retos, e os olhos tinham uma coloração castanha clara bastante bonita. Os cabelos loiros estavam presos num coque desajeitado em cima da cabeça, o que somado com o cachecol xadrez amarelo e sua camiseta branca, lhe dava uma aparência despojada e moderna.

Apesar disso, Paris achava sua namorada Michaela muito mais bonita. Fisicamente ela poderia não ter os mesmos atributos de Nina, mas tinha uma personalidade irretocável. Era mulata e tinha um rosto um pouco comprido e coberto de sardas, que Paris achava extremamente charmosas. A boca era grande e carnuda, com dentes brancos e retos com os de Nina. Michaela era também bastante alta, mais do que a amiga e da mesma altura que os gêmeos. Ela tinha os cabelos lisos e castanhos claros, indo até pouco abaixo da altura dos ombros.

A caminhada durou muito mais do que Paris desejava. Nina foi o caminho todo em silêncio, digitando qualquer coisa no celular, que o rapaz imaginava serem ofensas e xingamentos ao irmão. Ele por sua vez colocou seu fone de ouvido e desligou-se mentalmente da garota que estava ao seu lado, limitando-se a prestar atenção a tudo ao seu redor.

Desejou que fosse Michaela quem estivesse ali. Apesar de ter visto a namorada no dia anterior, estava com saudades dela. Sentia falta do seu sorriso doce e infantil, assim como sentia falta do toque macio dos dedos dela em seu cabelo. Não gostava de pensar no futuro, mas imaginava que ele e Michaela um dia se casariam. Temia, porém, que Nina e Junior também fizessem o mesmo. Isso significaria uma vida inteira tendo de aguentar as histerias e caprichos da futura cunhada. Não permita que isso aconteça, ó meu bom Deus.

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Paris deixou Nina na porta de casa e se despediu dela com um aceno desinteressado. A garota não se deu ao trabalho de retribuir o gesto, entrando em casa e fechando a porta atrás de si. Deu de cara com a empregada, Dora, que vinha com uma bandeja com uma jarra de água e dois copos em mãos.

— Eu vi vocês dois chegando e ia oferecer um copo de água pro Junior. Está um calor infernal por esses dias, né? — Ela comentou.

Nina assentiu com a cabeça, concordando.

— O Junior estava atrasado pra uma reunião dum clube do livro da mãe, mas obrigada pela iniciativa, Dora.

A garota então subiu as escadas sem olhar para trás, deixando a outra mulher sem entender direito o que havia acontecido ali.

Ao abrir a porta do quarto, Nina foi recepcionada por Frank N Furter, seu pequinês. O cachorro correu na direção da dona e começou a pular em suas pernas, extremamente feliz por vê-la.

— Meu bebê, meu bebê!

Nina pegou o bicho no colo e começou a fazer carinho na barriga dele, que parecia divertir-se largamente com aquilo. Não que fosse muito difícil diverti-lo, já que Frank parecia ficar feliz com qualquer gesto de carinho que a dona demonstrasse para com ele. Ela imaginava que fosse porque ele sentia saudades de sua primeira dona, Mia, prima de Nina. Ela sabia da existência da prima, mas jamais chegara a vê-la. Quando a garota foi assassinada na chacina que ficou conhecida como “Massacre da Babilônia”, os pais da garota foram até o apartamento de Mia e encontraram o pequinês faminto e carente. Quando Nina, na época com quatorze anos, o viu, não houve quem a fizesse desistir da ideia de adotar o cachorro.

Frank N Furte pulou do colo da dona e deitou em cima da cama, com a cabeça apoiada nas patas dianteiras. Nina aproveitou o momento para seguir até sua escrivaninha e ligar seu computador. Percebeu que havia o esquecido ligado, de modo que não precisou esperar que ele carregasse. A página do Facebook ainda estava aberta, mas atrasada no feed de notícias, com um post de várias horas antes. Nina atualizou o navegador e bateu impacientemente os dedos com as unhas cor de rosa em cima da mesa de madeira.

O post que apareceu em sua timeline fez a loira soltar um gritinho de frustração.

O robô. O maldito robô! Esse Lucas é um filho da puta!

Nina respirou fundo três vezes e conteve a fúria. Precisava ser calma e racional. Mesmo que ele ganhe a porcaria da feira, isso não vai aumentar a nota dele o suficiente para que consiga me passar. A bolsa vai ser minha!

Na foto, Lucas Arthur Alighieri, colega de classe de Nina, aparecia ao lado de Stephen Hawking, em uma palestra que ele ministrara na Universidade de Harvard. Nina também comparecera àquela palestra, que fora aberta ao público, desde que eles se inscrevessem no site. A diferença, porém, era que na foto de Nina só apareciam ela e o cientista, enquanto na de Lucas, o rapaz tinha em seu ombro àquele que poderia ser o causador da ruína da vida acadêmica de Nina Spradlin. O robô tinha pouco mais de quinze centímetros e era bastante feio, além de pouco funcional. O problema era que Lucas tinha um robô, enquanto Nina não tinha nada.

Harvard oferecia anualmente uma bolsa para o melhor aluno do colégio deles, graças a uma parceria entre a diretora Hardscrabble e o reitor da universidade na época. A vaga era sempre bastante concorrida, e em geral era ganha pelos estudantes que se dedicavam ao máximo àquilo, sendo que nunca fora vencida por um atleta ou uma cheerleader. Nina era uma cheerleader, e estava disposta a quebrar aquela tradição, conseguindo a bolsa. A tarefa não parecia tão difícil naquele ano, já que a garota sempre conseguia as melhores notas dentre todos os alunos. O problema é que ao lado dela vinha sempre Lucas. Esse geek maldito!

Nina o odiava com todas as forças. O desprezo parecia ser mútuo, e os dois competiam em todas as matérias, sendo que um levava uma leve vantagem sobre o outro em diversas áreas. Enquanto ela era excelente nas redações, por exemplo, Lucas era craque em geografia. Se Nina tinha domínio total das fórmulas químicas, o geek sabia como ninguém efetuar contas matemáticas. Era uma batalha diária para ambos.

— Você me paga, Alighieri. Você não perder por esperar. — Ela disse pra si mesma em voz alta.

Frank N Furter inclinou a cabeça, confuso, sem ter ideia do que a sua dona estava querendo dizer.

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A hamburgueria 18 O’Riley estava lotada naquela quinta-feira à noite, o que não era habitual, especialmente com o clima de pânico que se instalara no bairro após a morte de Clive Mooney. Riley imaginava que o motivo fosse justamente esse, já que as pessoas tendem a ficar ansiosas quando algum evento trágico assim acontece, resultando num grupo maior saindo de suas casas para jantar fora. Fosse qual fosse o motivo, isso significava mais trabalho para ela, Andi e Lucas.

O nome da hamburgueria nada tinha a ver com a ruiva, sendo apenas uma infeliz coincidência. Ele era somente uma referência à música “Baba O’Riley”, da banda The Who, já que o local tinha a temática de rock, com diversos discos e pôsteres colados nas paredes. Riley gostava de trabalhar ali, já que além de ganhar um dinheiro razoavelmente bom, ainda ficava a noite toda ouvindo músicas que gostava.

Tanto ela quanto Andi e Lucas eram garçons. Os três usavam um uniforme preto razoavelmente bonito e tinham certa liberdade com relação a cabelos e acessórios, já que o público-alvo da hamburgueria eram os adolescentes. Isso significava que os cabelos vermelhos de Riley ou os cabelos azuis de Andi não eram qualquer empecilho para o seu trabalho.

— Mesa 13, Riley, chegou o quarteto fantástico. — Andi disse para a amiga, ao se aproximar dela.

Riley assentiu com a cabeça e escorregou até lá com os patins. Andi ficou observando de longe, agradecendo por estar ocupada esperando outro pedido. Ela detestava quase todos os populares do seu colégio, mas o desprezo por Nina era maior do que por todos os outros. Michaela parecia ser pelo menos educada, e os gêmeos nunca haviam lhe feito mal algum, mas Nina já tivera problemas mais do que pessoais com Andi.

Acontecera quando as duas estavam no com treze anos, quatro anos antes. Na ocasião Nina ficara extremamente irritada com Andi por um motivo qualquer que ela não se recordava. Ela confrontou a outra, mas a garota de cabelos azuis não foi muito receptiva à crítica, e retribuiu com um empurrão de leve, mas que acabou por quebrar um broche qualquer que Nina tinha preso em sua blusa. A loira, ao invés de reclamar com a diretora ou com os pais, fez algo muito pior, que significou à Andi um ano inteiro de ostracismo antes de ter coragem de voltar a falar com o restante dos colegas de classe.

Nina começou a espalhar boatos de que Andi havia dado em cima dela e tentado apalpá-la por debaixo da blusa, no vestiário, depois de uma aula de educação física. O boato foi confirmado por duas amigas da loira, que, assim como ela, queriam destruir Andi. A história não tinha qualquer fundamento, já que além do fato de naquela época Andi não ter ciência de sua bissexualidade, mesmo agora Nina não fazia seu tipo. Ela jamais dera em cima de uma garota hétero, e jamais daria. Mas as pessoas não se importaram em ouvir a sua versão da história, limitando-se a condená-la a todo tipo de bullying. Riley e Lucas foram as únicas pessoas que não a abandonaram, e eram, desde então, seus únicos dois amigos. A dívida com a ruiva tinha sido paga quando ela passara pela crise de bulimia, e então pelo divórcio dos pais. Já a dívida com Lucas estava sendo paga agora, na rixa entre ele e Nina com relação à bolsa de estudos. Andi faria o possível e o impossível para que o amigo conseguisse vencer a cheerleader.

Apesar do cabelo colorido, Andi tinha um rosto bastante comum e bonito. Por trás dos óculos de grau ela tinha brilhantes olhos azuis, e usava um piercing no meio do lábio inferior, geralmente pintado com um batom vermelho sangue. Andi era bastante branca, beirando uma palidez cadavérica, e gostava de se vestir com roupas escuras, especialmente pretas. Com tudo isso somado, acabava parecendo um clichê gótico ambulante, o que mesmo em 2014 ainda rendia todo tipo de piadas. Por conta de sua atitude de quem “não dava a mínima”, porém, as ofensas tinham diminuído ao ponto de que só as pessoas que não a conheciam pegavam no pé dela, o que significava que o último ano de Andi no high school corria muito bem, obrigada.

Ao longe, Riley tentava anotar o pedido do grupo, mas por algum motivo que Andi não sabia dizer, Nina continuava falando e fazendo a ruiva riscar o pedido anterior. Quando a amiga riscou o pedido da loira pela quinta vez, Andi decidiu seguir até lá. Lucas interceptou-a no caminho, entrando em sua frente e dizendo:

— Relaxa. Cuida da sua mesa que o pedido deles já saiu. A Riley lida com o quarteto fantástico.

Andi respirou fundo e tocou o ombro do amigo, agradecendo-o pelas palavras. Ela sabia que Lucas tinha razão, mas não conseguia entender como ele conseguia ser tão calmo e complacente diante das provocações de Nina. Era óbvio que o alvo dela não era Riley, já que ela nem ao menos tinha consciência da existência da ruiva. Ela queria era atacar Lucas através da garota, e isso irritava Andi ainda mais.

Há alguns metros dali, Riley insistia em tentar anotar os pedidos, da maneira mais calma e educada que conseguia:

— A senhorita não precisa fazer um pedido agora. Eu trago a entrada e você pode olhar o cardápio com mais calma.

Michaela, Junior e Paris estavam visivelmente constrangidos com a situação, já que Nina continuava fazendo pedidos somente para no segundo seguinte desistir deles e fazer Riley ter de começar tudo de novo.

— Talvez você devesse mandar o Lucas vir nos atender. Ele vai ser mais útil em me ajudar na minha indecisão, querida. — A loira disse, com um cinismo latente em sua voz.

— Eu posso ajudá-la da mesma forma. — Riley insistiu, com o tom de voz mais calmo do mundo.

A fúria nos olhos de Nina era evidente. Paris observava toda aquela cena com um desprezo no olhar, meneando a cabeça negativamente. A Nina é patética, pensava. Ao seu lado, Michaela tentava reagir como se nada estivesse acontecendo apontando para o namorado as opções de sobremesa no cardápio. Junior por sua vez estava ficando irritado com a atitude da namorada. Quando Nina ergueu o dedo e abriu a boca pra pronunciar mais uma sentença, ele a interrompeu:

— Nina, para de ser ridícula. A gente veio aqui pra se divertir, não pra criar confusão. Deixa a Riley em paz e faz um pedido. — Ele soltou num rompante, deixando transparecer a irritação em sua voz. Riley por sua vez, surpreendeu-se com o fato do rapaz saber seu nome. Ele percebeu a reação de ambas, e então continuou num tom falsamente doce: — Por favor, minha linda. Não vamos estragar nossa noite.

A frase de Junior só serviu para fazer Nina ter mais vontade ainda de continuar a confusão.

— Ei, Einstein. Ei! — Ela disse de maneira um pouco alta, assoviando. Lucas imediatamente percebeu que a provocação era dirigida a ele, e virou-se na direção da garota. Terminou de servir sua mesa e seguiu até o grupo.

— Pois não?

A expressão no rosto do rapaz era de tensão. Riley e Andi sabiam que ele tinha pavor de conflitos, evitando-os a todo custo. O que Nina estava fazendo era duplamente cruel, especialmente porque o rapaz não conseguia ser rude com alguém mesmo que quisesse. Tudo em Lucas era doce e inofensivo.

Lucas não era exatamente bonito, já que tudo nele lembrava uma criança grande. Seu rosto era infantil e um pouco desproporcional, com orelhas grandes e dentes também grandes e desalinhados. Havia uma fina barba escura em seu rosto, mas nenhum bigode ou cavanhaque. O cabelo era relativamente curto e castanho, combinando com as sobrancelhas levemente arqueadas e não muito espessas.

Nina sorriu cinicamente com a fala do rapaz.

— Eu queria parabenizá-lo pelo robô. Um trabalho e tanto.

— Obrigado. — Ele agradeceu de maneira trêmula, sabendo que se tratava de uma ironia.

— Nina, para. — Junior voltou a repetir, falando baixinho no ouvido da namorada.

Mas a garota o ignorou solenemente, continuando:

— Eu ouvi um comentário de que o seu namorado Eddie lhe ajudou a construí-lo, é verdade?

— O Eddie é meu amigo. Eu não sou gay, Nina. — E então se calou.

— Não foi o que eu ouvi. Nos corredores do colégio corre outro rumor.

Lucas tremia violentamente, extremamente vermelho. Riley sabia que se ele pronunciasse qualquer palavra que fosse iria chorar, e ela preferia ser demitia a ter que presenciar a humilhação do amigo, de modo que tentou intervir:

— Você vai querer fazer algum pedido ou não?

— Só se essa bichinha sair da minha frente. — A loira respondeu no mesmo instante.

O silêncio que pairou na hamburgueria foi mortal. Lucas engoliu em seco, os olhos se enchendo de lágrimas. Perto da cozinha, Andi observava a cena com curiosidade e cautela, sabendo que se entrasse na discussão, provavelmente iria ser na melhor das hipóteses demitida.

Paris levantou-se da mesa no mesmo instante, pegando na mão de Michaela e levando-a consigo. Ao passar por Riley e Lucas, cochichou próximo deles:

— Me desculpem por essa cena. — E saiu.

Lucas fez o mesmo, escorregando com os patins até dentro da cozinha, cuidando para segurar o choro até o momento que passasse pela porta. Só restaram na mesa Nina, Junior e Riley. O rapaz abaixou a cabeça, completamente envergonhado e sem saber o que dizer ou fazer. A ruiva continuou olhando de maneira estática para o bloco que tinha em mãos, incapaz de ter qualquer reação. Limitou-se a dar meia volta e sair dali, deixando o casal a sós.

Nas outras mesas, todos estavam em silêncio olhando para Nina. A loira aos poucos foi ficando extremamente vermelha, envergonhada com a proporção que as coisas tomaram. Não iria chorar, jamais choraria em público, mas sentia uma pontada de vergonha e arrependimento. Sem dizer qualquer palavra ela levantou-se e saiu, deixando o namorado sozinho sentado na mesa.

Junior ficou ali durante vários segundos, olhando de maneira incerta para o cardápio. Como eu pude me apaixonar por uma garota tão mesquinha? Era difícil dizer. Nina podia ser uma garota meiga e doce, mas a sua natureza parecia ser pura e simplesmente ruim. Para o rapaz, que de certa forma a amava, era difícil aceitar isso. Por que você não pode ser boa com as pessoas, Nina?

Decidiu no mesmo instante que não iria atrás dela. Esperou que a poeira baixasse e as pessoas voltassem a conversar nas mesas, e então chamou Riley com o dedo. A ruiva seguiu até ele com o bloquinho e a caneta em mãos.

— Me desculpe por tudo o que a Nina fez. Eu estou muito, mas muito envergonhado.

— Não se preocupe com isso. — Riley disse de maneira séria. Havia sinceridade em suas palavras. — Você gostaria de fazer um pedido?

O rapaz meneou a cabeça positivamente e então pediu um combo qualquer, que parecia ser o mais calórico do cardápio. Riley anotou o pedido em seu bloco e deu meia volta, prestes a seguir até a cozinha para entregar o papel ao cozinheiro. Mas então decidiu que aquele momento seria adequado para agradecer ao rapaz pela atitude que ele tomara mais cedo. Pigarreou e então se virou na direção dele. Junior a olhou de maneira incerta, porém receptiva.

— Obrigada por hoje mais cedo. Eu não quero ser dramática e nem nada, mas você salvou a minha vida. Obrigada.

E então escorregou para longe, antes que o rapaz pudesse responder qualquer coisa.

Obrigada pelo quê?, ele se perguntou.

Mas não fazia diferença. Depois da deplorável cena que Nina fizera ali, qualquer ato de gentileza seria suficiente para melhorar a noite de Junior.


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Notas finais do capítulo

Segundo cap. já está sendo escrito e será postado em breve :D

A música que toca no capítulo é Fear of the Dark, do Iron Maiden: https://www.youtube.com/watch?v=Nba3Tr_GLZU