You make me feel wrong escrita por Lyssia


Capítulo 3
Broken Crown


Notas iniciais do capítulo

A música do título é de Mumford & Sons. Eu sinto que devia pedir desculpa à Liri-chan (Lirium-chan) por usar ela, mas é que REALMENTE não estava conseguindo achar nada pra pôr no lugar. Desculpe.



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Shey estava começando a perceber, talvez um pouco tarde, que a adolescência era uma fase ainda mais estranha do que ele supunha. Não falando sobre crescimento físico e mental, pois seus pensamentos vinham justamente tentando se desviar do fato desagradável de ter se descoberto apaixonado (apaixonado de verdade, não aquelas paixões de criança em que a gente fica pendurado na janela porque aquela menina doze anos mais velha tem um cabelo legal) pela primeira vez, mas sim graças às muito bizarras recaídas de infantilidade que vinham sem aviso.

Porque não importa se você passou a sua infância inteira sendo uma criança precoce que quase não agia como criança, se conseguia conversar sem problema com adultos aos onze anos, se no lugar de brincar de carrinho ou de pega-pega ficava na varanda lendo livros, fazendo desenhos e treinando caligrafia, não importa que só houvesse usado uma camisa de um desenho animado após os cinco anos porque a madrasta havia lhe dado, com a certeza que o agradaria. Nada disso importa, porque em algum momento dos seus dezesseis anos você vai acabar acordando de manhã e pensando “Ah, ok, eu quero fazer aquela coisa nostálgica que ninguém da minha idade continua fazendo, mas era legal”.

Foi assim que ele acabou entrando em uma maratona de desenhos com Leon às sete da manhã de sábado.

Bem, na verdade ele pretendia assistir sozinho, mas ao entrar na cozinha não pôde ignorar aquela criatura meio-adormecida que tentava fazer café, com os cabelos cacheados em uma juba desordenada e olheiras sob os olhos. Era um pouco engraçado, pois Leon era o tipo de pessoa que se esforçava para manter uma boa aparência, e ele estava derramando pó de café pela pia enquanto tentava acertar a cafeteira. Shey sorriu de leve enquanto tomava tudo das mãos do irmão e começava a preparar o desjejum ele mesmo, ouvindo resmungos de zumbi que deviam ser agradecimentos, embora normalmente recebesse reclamações sobre fazer café forte demais.

— Você vai dormir de novo? — questionou enquanto observava Leon se esforçar para engolir o líquido marrom, fazendo caretas exageradas, pois Shey novamente fizera com as medidas que lhe apeteciam.

— Sei lá. — respondeu, ainda um pouco aéreo. — Por quê? Tá sentindo alguma coisa?

— Não. — parou, tomando um gole do conteúdo de sua xícara e dando de ombros. — Se não for dormir, quer assistir desenho comigo? — Leon estreitou os olhos na direção dele por quase cinco minutos inteiros, deixando o caçula ansioso, depois olhou para o café com olhos duvidosos e tornou a encarar o irmão. — Leon?

— Você me chamou pra ver desenho contigo?

— Chamei. Eu não devia? — replicou, estranhado e um pouco na defensiva.

— Não tem problema, claro. — o mais velho se apressou em dizer, ainda com o cenho franzido em confusão. — Mas cê não tem, sei lá, 97 anos mentais?

— Acordei com vontade. — explicou, fazendo Leon abrir um sorriso de canto, embora todo seu rosto ainda transmitisse sono.

Assim sendo, eles acabaram sentados no sofá, passando pelos canais da TV a cabo e descobrindo que os cartoons atuais não eram assim tão divertidos em sua maioria, e que todos aqueles dos quais sentiam falta já estavam completamente fora da mídia, o que nunca deixaria de ser muito triste, e talvez por isso eles mais conversassem entre si que punham atenção à televisão, envolvidos em memórias não tão distantes assim.

O mais novo já estava quase se arrependendo de dar a ideia e sugerindo que deixassem pra depois, quando comprassem ou alugassem DVDs dos antigos clássicos, coisas como Pocahontas, que Leon adorava, Rei Leão, O Corcunda de Notre Dame ou Noiva Cadáver, essas coisas que pareciam adoráveis e na verdade eram muito tristes. Bem, não que Corcunda de Notre Dame soasse bonitinho. Aparentemente nada nesse mundo era capaz de tirar a dramaticidade de algo que Victor Hugo escrevia.

— Ah, Shey. — Leon soltou repentinamente, em um tom curioso, arrancando-o de seus pensamentos. — E os seus amigos?

— Que amigos? — perguntou de volta, estranhado.

— Ah, desculpa não ser mais específico. Temos tantas opções. As pessoas que voltaram da escola junto com você na segunda-feira, idiota. — ele respondeu, com sarcasmo escorrendo da voz. — Você continua falando com elas, né?

— Hmmm... — ele resmungou, pensativo. A bem da verdade, ele vinha fugindo de passar o almoço com eles desde a terça-feira, desaparecendo no banheiro para ler, com medo de ter de responder perguntas sobre porque não estava comendo, mas se viam na hora da saída e Santini (e o casal simpático, quando estavam lá) costumava parar por um tempo para conversar com ele e, se Sarosh não estivesse por perto, lhe questionar com seriedade como ele estava. Se fosse ser completamente sincero, ele vinha pensando em se esforçar um pouco mais para entrar naquele grupo. — Um pouco, sim.

— Eles são legais?

Bem legais, na verdade. — respondeu, dando de ombros. — Você deve se lembrar de um deles... o garoto moreno que me trouxe em casa naquele dia.

— Que dia?

— Aquele dia, Leon.

— Aquele qu— aaaaah, aquele. — ele sorriu sem graça, tentando recuperar a expressão zombeteira. — Você está tentando conquistar ele? — Shey arregalou os olhos, sentindo toda e qualquer cor sumir de seu rosto e a garganta se tornar seca e arranhar graças a sua respiração que se acelerou repentinamente, fora de seu controle, com as mãos se tornando úmidas e levemente trêmulas.

— Não! É claro que não! Do que você tá falando?! Isso não faz o menor sentido! Por que eu tentaria conquistar outro garoto?

— Calma, Shey. — ele sussurrou, tentando lhe passar tranquilidade.

— Não, por que você disse isso?

— Calma, calma, respira. — ele continuou, pondo uma mão em seu ombro. — Lentamente, como a psicóloga tinha falado, lembra? Inspira pelo nariz, expira pela boca e tenta se concentrar na TV. — instruiu, fazendo ele mesmo o que indicava, como se para exemplificar, e Shey o copiou, ainda um pouco afobado.

— Por que você disse aquilo? — questionou, claramente nervoso. — Não tem motivo nenhum pra eu tentar fazer uma coisa dessas!

— Eu estava só brincando, calma. — explicou, puxando-o um pouco e pondo as mãos em seus ombros. — Mas olha, você sabe que eu não ligo, né?

— Pra quê?

— Shey, aqui é o Leon, lembra? O Leon. Leonard Völkers, seu irmão mais velho que nem religião tem. Eu não ligo mesmo. Para com isso.

— Não tem nada pra ligar!

— Shey, por favor.

— Eu... — sussurrou, em um tom derrotado. — Eu ligo, Leon.

— Não devia. Não devia mesmo. Isso é besteira. — ele insistiu, abrindo um pequeno sorriso persuasivo.

— Não é besteira. São regras e isso é errado. — resmungou, desviando o olhar. Leon bufou, batendo as costas no encosto do sofá.

— Você é muito chato e teimoso. — ele replicou, em um tom cansado, e ambos caíram em um silêncio desconfortável, sem nunca deixar o olhar atingir o outro e apenas permitindo que a luz da televisão e as vozes dos personagens de Scooby Doo inundassem a sala por longos minutos, até Shey se levantar e seguir para a cozinha, em busca de mais café.

Assim que abriu a porta, entretanto, quase voltou em um pulo para a sala, deparando-se com a mãe apoiada na bancada, com uma xícara cheia de algo fumegante em uma das mãos e uma torrada na outra. Ele estreitou os olhos na direção dela, incerto se era mesmo real, embora nunca houvesse tido uma alucinação tão fiel à realidade assim em momentos em que não estava extremamente tenso ou cansado. Ela logo de virou para ele, com uma expressão confusa no rosto cheio de farelo de torrada e abriu um sorriso pequeno que não mostrava os dentes.

— Bom dia, querido. —cumprimentou, tomando mais um gole do que havia em sua xícara e lançando um olhar à leiteira sobre o fogão. — Você quer café com leite? Acho que o que eu esquentei ainda não esfriou...

— Hã... Você... Como você veio parar aqui? — questionou com desconfiança, indo até o fogão e sacudindo a leiteira, tentando ver se havia algo de estranho no leite dentro desta.

— Eu desci as escadas e vi você é seu irmão encarando a televisão com cara de enterro... — ela se aproximou, fitando-o atentamente com os olhos estreitados. — Você está achando que eu quero te envenenar ou algo assim? Porque se estiver eu vou te acertar um soco.

— Claro que não, mãe! — respondeu imediatamente, vendo-a apernas continuar a encará-lo de forma desconfiada. — Onde está o café? — ela abriu um meio sorriso irônico, embora ainda parecesse irritada.

— Eu só envenenei o leite, é isso?

— Claro que não, mãe. Eu sei que você não faria algo assim.

Talvez apenas dopá-lo. Se é que ela era mesmo sua mãe.

— Você está pálido e parece bastante nervoso.

— Não estou, não. — respondeu rapidamente, enchendo a xícara que trouxera da sala com café e jogando açúcar sem prestar muita atenção na quantidade. — Vou voltar pra sala e continuar vendo o desenho, tudo bem? — resmungou, já indo em direção à porta, parando repentinamente e virando-se para ela, com o coração acelerado e as mãos suando. — Quando você desceu?

— Faz uns cinco minutos. — ela cruzou os braços, irritada. — Toma essa porcaria de café agora, Shey Völkers. — ele apressadamente levou a xícara aos lábios, tomando um gole pequeno, encarando-a com um pouco de indignação, enquanto era retribuído ainda com desconfiança, antes de sair da cozinha.

Ele deixou a xícara em qualquer lugar pela sala e foi rapidamente ao banheiro cuspir o café na pia, observando o líquido escuro sumir pelo ralo, abrindo a torneira para mandá-lo para o esgoto mais rápido e pondo as mãos em concha debaixo da água logo depois, levando-as ao rosto. Ele olhou para seus cílios cheios de gotículas presas, perguntando-se o que diabos estava fazendo. Não era como se realmente não confiasse na própria mãe, apenas... suspirou, enchendo as mãos novamente e lavando a boca, expulsando qualquer resquício de café de lá.

~o~

— Eu posso almoçar com vocês, amanhã? — ele questionou, em uma voz muito baixa e hesitante, remexendo as mãos nervosamente e interrompendo o discurso de Santini sobre snowboard, no meio do qual sua mente havia divagado até todas as conversas que Leon e Aloá insistiram em ter com ele sobre como seria bom aprofundar amizades.

O moreno imediatamente parou de falar, virando-se para ele com uma expressão um pouco confusa, tirando os cabelos despenteados dos olhos em um gesto apressado. Eles estavam sentados na calçada em frente ao portão da escola, com as mochilas precariamente equilibradas em um galho de árvore, esperando Sarosh acabar a conversa que estava tendo com a direção sobre o clube de matemática, do qual era vice-líder, pois Santini e ele voltavam juntos quase todos os dias e Shey... bem... gostava de ficar por ali, com ele.

— O que você disse? — ele perguntou, parecendo curioso.

— Ah... eu só... nada. — sussurrou, com ainda menos convicção, com o rosto estranhamente quente.

— Você pediu algo, não foi? — ele questionou, virando o corpo para encará-lo mais de frente, como se tentando ler algo em sua expressão.

— Não é nada. — insistiu e Santini sorriu suavemente em sua direção, não parecendo minimamente convencido.

— Vai, fala logo. Aposto que não é nada grande. Você faz bem o tipo de pessoa que tenta resolver sozinho os problemas grandes. — Shey franziu o cenho por um segundo, se perguntando o que ele queria dizer com aquilo antes de desviar o olhar para frente, torcendo para que Sarosh aparecesse. — Eu nunca vou te deixar em paz enquanto você não falar. — Santini avisou em tom de ameaça, fazendo o loiro suspirar baixinho e morder o lábio, ansioso.

— É que eu... passo os intervalos sozinho e estava pensando se não podia, você sabe, ficar de mesa de vocês, mas esquece, isso é estúpido, eu não sei porque estou pedindo, não precisa deixar, melhor, não precisa nem pensar nisso, finja que eu não falei nada, deixa pra lá, deixa pra lá mesmo.

— A gente almoça em alguma das mesas do pátio externo que fica próxima da entrada pro refeitório, tá ok?

Ah, ele não fazia ideia de onde isso ficava. Não é como se já houvesse ido ao pátio externo almoçar ou procurar mesas: no primeiro ano estava sempre com seus antigos “amigos”, que no geral ou pegavam mesas o mais perto da cantina possível ou ficavam pelas escadas, e depois que parou de andar com eles apenas ficava pelos corredores ou na sala. Perguntou-se que tipo de pessoa pareceria caso dissesse isso, embora talvez não precisasse se preocupar, afinal que tipo de coisa poderia piorar sua imagem?

— Se você não for agora que me perguntou eu vou te buscar pelas orelhas, Shey Völkers. — ameaçou, em um tom bem-humorado e um sorriso nos lábios, mesmo que não soasse como se estivesse brincando.

Era realmente uma lástima, e um pouco doloroso, que ele estivesse fazendo aquilo por pena. E era ridículo que mesmo sabendo disso o forçasse a ficar mais tempo ainda em sua presença, que não podia ser agradável de verdade. Doía de um jeito esquisito, fazia-o sentir-se como um inseto insistente tentando entrar no ouvido de alguém piedoso demais para usar um inseticida.

O garoto tinha amigos mais legais para gastar o tempo, e Shey sabia disso. Ele tinha Daniel e Helena, que deviam ser muito divertidos e engraçados no almoço, principalmente considerando que não podiam atracar-se no refeitório. Ele tinha Sarosh, por Deus. Sarosh com certeza odiaria vê-lo se juntar a eles na mesa. Eles nem poderiam conversar sobre coisas realmente pessoais com ele lá, como um intruso inconveniente. O que ele estava pensando? Não devia ter pedido nada, nada, nada, nada.

Pensando bem, já era bastante repugnante de sua parte querer ficar mais tempo com Santini e seus olhos hipnotizantes, seus lábios estranhamente marcados por mordidas que estavam sempre se renovando, sua aparência desleixada e sua voz rouca que não combinava muito com seu jeito de falar. Ele queria nunca tê-lo visto no baile, nunca ter seguido aquela risada ridícula, nunca ter hesitado antes de se deixar cair, na ponte.

— Você tá me ouvindo? — Shey ouviu Santini perguntar, em uma voz estranhamente séria, mas que não conseguia acalmar a confusão de sua mente no mais mínimo. Havia um chiado insistente em seu ouvido direito, um no qual ele não queria pensar, mas que ia se fortalecendo a cada segundo, tornando-se mais perturbador, deixando-o com a sensação que a cabeça explodiria.

Levantou repentinamente, começando uma corrida desembestada para qualquer lugar porque, meu Deus, ele só queria ficar sozinho. Não fazia ideia de porque estava tão nervoso, ou porque as coisas estavam chegando àquele ponto em sua mente, mas sentia coisas, várias delas, caminhando pelos dedos de seus pés, sob os tênis, lutando contra isso, pois não queria parar para expulsá-las, não enquanto não estivesse distante o suficiente. O chiado absurdo em seu ouvido continuava, fazendo-o dar pequenas pancadinhas com o pulso no lado da cabeça, querendo “ajustar a frequência” como se seu cérebro fosse um rádio defeituoso.

Ele esbarrou em pessoas aleatórias, sem nunca parar de correr, deixando de pronunciar todos os pedidos de desculpas que devia, até tropeçar em algo pelo meio da rua e ter de engolir a humilhação, ignorando uma risada soluçada e divertida que se sobressaia aos chiados, até que se levantasse e seguisse em frente. Nada disso é real, uma parte de sua mente insistia, e era apenas por ela que ele não se jogava no chão e arrancava os tênis para expulsar os bichos de seus pés. Não é real, não é real, não é real, não é real!

Ele desviou o caminho ao avistar um enorme parque cheio de árvores, indo para lá, tentando evitar os caminhos com mais pessoas, mesmo que a visão se escurecesse e se enchesse de pontinhos negros o tempo todo, até conseguir alcançar uma parte que julgou estar suficientemente vazia e sentou sob a sombra de uma árvore, encostando as costas no tronco e levando as mãos trêmulas e agitadas aos cadarços, puxando-os para desfazer o laço e poder jogar os sapatos longe, arrancando as meias apressadamente e avistando seus pés, livres de qualquer bicho, embora ainda comichassem e parecessem estar sendo pisoteados por um monte de insetos.

Começou a coçá-los, involuntariamente soltando alguns sons de aflição, primeiro com as duas mãos, resvalando as unhas sobre a pele em busca de algum alívio momentâneo, e depois apenas com uma, levando a outra até a orelha direita, querendo que o maldito chiado sumisse, acertando-a com tapas uma, duas, três quatro vezes, não sabendo se tentava matar algo ou empurrar mais para dentro, mas não se importando no mais mínimo no que aconteceria, se isso significasse que os sons parariam.

Shey, aqui é o Leon, lembra? O Leon. — ele ouviu a voz do irmão, em algum lugar distante, arregalando um pouco os olhos enquanto procurava ao redor. — Leonard Völkers, seu irmão mais velho. Não devia. Não devia mesmo. Isso é besteira. Isso é besteira. Isso é besteira. Você é muito chato e teimoso. Isso é besteira. — ele engoliu em seco, sentindo algo com garras tentar escalar sua garganta e os olhos arderem e encherem de água.

— Eu não gosto dele, Leon. — sussurrou para o nada, encolhendo-se contra o tronco. — Eu realmente não gosto. Por favor... por favor... desculpa. Eu não gosto, Leon. — continuou, tampando os ouvidos com as mãos, pois o chiado continuava lá e ele não queria ter de ouvir mais nenhuma voz que sabia não ser real. Perto disso, a sensação em seus pés não era nada. Ele podia suportar.

Não soube muito bem quanto tempo passou ali, daquele jeito, ou quando as coisas se acalmaram e ele apenas ficou entorpecido, sentado debaixo da árvore, descalço e com os tênis jogados ali por perto, com a cabeça latejando e sem ânimo algum para tentar se levantar, mas em algum momento percebeu os mosquitos o rodeando e roubando seu sangue e o sol já quase totalmente posto, o que lhe servia apenas para reafirmar que já deveria ter ido para casa.

Ele só atreveu-se a levantar a cabeça, exausto, quando achou ouvir seu nome sendo gritado por uma voz não exatamente desconhecida, virando para ver uma menina de cabelos cacheados, negros e até os ombros correndo em sua direção, com uma faixa colorida na cabeça, as sobras de pano dos nós jogadas sobre o ombro e roupas claras, simples e folgadas no corpo.

— Padma. — sussurrou mais para si mesmo, reconhecendo a amiga do irmão, que logo chegou até ele, com um sorriso aliviado.

— Eu e o Leon estávamos loucos atrás de você. — ela comentou, com uma voz ofegante. — Que susto. — acrescentou, estendendo uma mão para ele. — Vem, vamos pra sua casa, está quase na hora da sua mãe chegar do trabalho.

— Quero ficar um pouco sozinho, agora. — murmurou, desviando os olhos dela e fitando a frente com desinteresse.

— Tudo bem... — ela resmungou, um pouco hesitante. — Eu vou ligar pro seu irmão pra ele resolver isso, certo? Vou estar logo aqui perto.

— Tá bom, Padma. — respondeu, sem se importar muito com o que ela dizia, vendo-a se distanciar com o canto dos olhos e esticando a perna para tentar agarrar os tênis com os dedos, falhando miseravelmente e soltando um suspiro, escorrendo mais para baixo, se aproximando mais da posição deitada, até conseguir o que queria, recolocando as meias e os sapatos lentamente e fazendo o laço com uma calma que não sentia.

Quando Leon chegou, ele apenas se levantou sem vontade, respondendo a suas perguntas sobre o que acontecera com uma sequencia de “nadas” sem emoção. Os dois e Padma foram até o carro, onde Shey se sentou atrás principalmente porque não queria ficar do lado dele, escolhendo ficar atrás do banco do carona, onde a mulher estava, exatamente para não manter os olhos por muito tempo nos cabelos loiros de Leon, olhando pela janela sem realmente ver algo, fingindo não notar o clima pesado no interior do veículo.

— Onde está sua mochila? — Leon perguntou, ao que ele apenas deu de ombros, sem se lembrar onde havia a deixado e não conseguindo se importar muito com isso, ouvindo o irmão bufar baixinho. — Você tomou os remédios?

— Sim.

— E o que aconteceu? — ele hesitou, franzindo um pouco o cenho antes de tornar a dar de ombros. — Eu já não te pedi pra me ligar ou ao menos ficar sempre com o celular?

— Desculpe.

— Você não tem mais doze anos pra eu ter de repetir isso o tempo todo. Eu te mandei ficar sempre com a porra do celular. É muito difícil?

— Não. Desculpe.

Para de me responder como se não estivesse nem aí!

— Olha, um McDonald’s! — Padma soltou, em um tom nervoso. — Pode me deixar aqui, Leon? Eu não quero fazer janta hoje. — Leon respirou fundo, desacelerando o carro aos poucos e o aproximando da calçada até pará-lo, perto do enorme e brilhante M amarelo em fundo vermelho. — Obrigada.

— Eu que agradeço, Patty. — respondeu, e Shey tinha certeza que forçava um sorriso para a amiga, embora não olhasse. — A gente se vê amanhã.

— Tudo bem. Tchau, Leon. Tchau, Shey.

— Até. — o mais velho respondeu e ela abriu a porta, descendo do carro. — Não precisa fechar. — ele avisou e ela assentiu e acenou uma última vez antes de virar as costas e começar a caminhar até o fast-food com passos rápidos. — Passa pra frente, Shey. — mandou, ainda em um tom levemente irritado.

— Eu não gosto muito de—

— Passa pra frente agora.

— Tudo bem. — concordou a contragosto, abrindo a porta do lado direito, fechando e indo sentar-se no banco do carona, fechando a porta deste também e pondo o cinto, enquanto Leon começava a acelerar lentamente.

— O que você acha que passa pela minha cabeça ou pela da mãe quando você some?

— Foram só algumas horas. — replicou, quase inaudível.

— Você tentou se matar acho que tem um mês, imbecil! — ele exclamou, contorcendo o rosto de raiva e respirando fundo novamente. — Eu só te mandei ficar com aquela merda de celular!

— Eu estava nervoso, não pensei nisso. — respondeu, incerto, virando a cabeça para olhar pela janela.

— Você tem calmantes na sua mochila e no armário da escola, não tem?! Não podia ter tomado uns e me ligado?!

— Eu também não pensei nisso. — Leon soltou um som de descontentamento, balançando a cabeça negativamente. — Vocês vão me internar de novo?

— Cala boca, Shey. Por tudo que é mais sagrado, cala boca. — pediu, em tom que misturava perfeitamente cansaço e indignação.

O resto da viagem foi feito em silêncio.

~o~

— Ei, eu te trouxe batata frita. — Aloá falou, com um sorriso um pouco forçado, acendendo a luz e entrando no quarto com um prato cheio, abaixando-se perto da bancada, pois ele havia afastado a cadeira, se posto lá embaixo e estava lendo Guerra dos Tronos com uma lanterna desde que saíra do longo banho que tomara assim que se viu dentro de casa, tentando fingir que todo o resto do mundo não existia, que só havia vazio depois da porta de seu quarto.

— Não estou com fome. — respondeu baixinho, assistindo-a sentar-se ao seu lado, pondo o prato cheio de batatas sobre as pernas.

— Você não pode ficar tento tempo sem comer. Essa bíblia aí não vai fugir. — afirmou, tomando o livro se suas mãos e o substituindo pelo prato. — Come e depois eu te devolvo.

— Tudo bem. — respondeu, em um tom cansado, pondo a primeira batata na boca e mastigando-a enquanto olhava a mãe, que o observava atentamente. — Desculpe pela mochila.

— Ah... bem, você estava com ela já ia fazer dois anos, então... não tem muito problema. Vou te emprestar uma das minhas até a gente comprar outra.

— Eu não deixei ela pra trás de propósito.

— Eu sei, Shey. — ele assentiu, um pouco aliviado, voltando a comer lentamente, ainda sendo analisado pela mãe. — Que tipo de crise você teve hoje? — ela questionou após algum tempo, em uma voz vacilante.

— Foi só ansiedade.

— Motivos?

— Eu só... estou tentando fazer amigos, acho. — ela ergueu as sobrancelhas, entreabrindo um pouco os lábios, claramente surpresa.

— Então... hmmm... não desista, tudo bem? Acho que um pouco de ansiedade é normal nesses casos... — ela mordeu um pouco o lábio. — Ou muita ansiedade. — ela riu baixinho, encolhendo os ombros. — Bem, vai te fazer bem depois de um tempo, eu aposto. — ele pôs mais batatas na boca para conseguir tempo, respirando fundo pelo nariz ao engolir.

— Como eu faço pra saber se eles não estão só com pena? — ela hesitou, franzindo as sobrancelhas.

— Eles parecem com pena?

— Eu não sei. Talvez estejam.

— Estão mostre a eles que não precisa de pena, ué. — respondeu, dando de ombros. — Se mostrar os seus desenhos ou o seu boletim aposto que ficam até dando uma com inveja. — completou, pequena risadinha.

— Você não me acha digno de pena, certo?

— Não, não. Preocupante, com certeza. Mas digno de pena não.

— Ainda sou esquisito demais pra qualquer um conseguir manter amizade por muito tempo. — ela sorriu mais largo, se aproximando um pouco mais dele.

— Deixa eu te contar uma coisa, moleque. — começou, em um tom esperto. — Ninguém é tão estranho que não há outra pessoa no mesmo nível. Principalmente no Ensino Médio. Talvez você seja o psicótico do seu grupo, mas o mais estranho? Eu duvido. A sua linha de raciocínio é anormal mesmo, mas, ei, você até tenta ser normal. Tem que ter alguém mais estranho que isso no grupo.

— Você meio que me chamou de psicótico anormal. — comentou, vendo-a encolher os ombros. — Mas tudo bem.

— Vocês crianças são todas meio malucas. Está aí igual um vampiro porque não queria ser o mais estranho do grupo. Faça-me um favor. Vai, acaba de comer, levanta daí e vamos jogar Naruto com o seu irmão.

— Não é só por isso. — resmungou baixinho, incomodado. — E o Leon está com raiva de mim. Com razão. Então eu vou deixar ele em paz por enquanto.

— Deixa de ser anta. — ela mandou, com uma expressão indignada, levantando com o livro na mão e o colocando em um lugar qualquer na estante.

— Não é aí que ele fica. — avisou, vendo-a olhá-lo friamente.

— Agora é. — retrucou, tomando o prato de sua mão e começando a puxá-lo para cima pelo braço, até que cedesse e se levantasse.

Ela o puxou até a porta e, em desistência, ele começou a andar lentamente em direção às escadas, sentindo-a pôr a mão em suas costas, empurrando-o para que fosse mais rápido, o que ele começou a obedecer quando ocorreu pela segunda vez, descendo os degraus rapidamente quando chegou à escada, com ela logo atrás de si, até que chegassem à sala, onde Leon jogava Mortal Kombat, com seu personagem absolutamente ensanguentado, e Aloá empurrar o filho mais novo para uma poltrona, pondo o prato em seu colo.

— Pode ir tirando desse jogo de psicopata. — ela mandou, emburrada. — Eu sou um lixo nele e você sabe disso.

— Você é ruim e Naruto também. — Leon teimou, revirando os olhos, mas já saindo do jogo.

— Mas pelo menos lá não sai sangue desse jeito e tem magia.

— São jutsus.

— Ah, é magia.

— Tá, tá bom. — ele respondeu, rindo um pouco, e se virou para Shey, vacilante. — Quer começar?

— Ele tá comendo agora.

— Ah, é. Foi mal. — respondeu, levantando para retirar o CD do console e pôr outro. — Você vai ficar indo comigo pro meu trabalho até a gente te comprar outro celular. — Leon informou, fazendo o mais novo ter um sobressalto.

— Mas eu tenho aulas importantes—

— Nem eu nem ele somos irresponsáveis de te deixar sozinho na rua sem ter como contatar a gente. — Aloá replicou, sem olhá-lo, ligando o segundo controle.

— Pois é, não somos os malucos aqui, irmãozinho. — Leon resmungou, abrindo um sorriso sarcástico em sua direção.

— Na história real a Pocahontas é vendida pros ingleses e morre. — Shey soltou com indiferença, um segundo antes de pôr mais uma batata na boca, vendo Leon arregalar os olhos e crispar os lábios.

— Seu... maníaco maldito.

Leon. — Aloá chamou, indignada. — Quantos anos você tem?

— Mas ele disse que a Pocahontas morre!

— Porque ela morre. — reafirmou, dando de ombros. — E o nome dela não era esse, era... Makoata, eu acho. Pocahontas é só um apelido maldoso que quer dizer mimada.

Aaaaaaah! Por que você sempre tem que pôr uma camada de cinza e tristeza em tudo?!

— É só a verdade.

— Não quero saber!

— Leon, você tem vinte e três anos. — sua mãe o lembrou, arqueando uma sobrancelha.

— Não interessa! Eu não saio por aí dizendo que fadas não existem!

— Não tem como você ter certeza, tem? — Shey respondeu, emburrado.

— Ah, que ótimo. Agora vamos falar das fadas. — Aloá soltou, exasperada. — Por que não, né?

— Estou só dizendo que não é porque ele nunca viu que não existe.

— Cara, você tá velho demais pra acreditar em fada do dente.

— Bem, eu não acredito na do dente, mas isso não quer dizer que as outras não existem também.

— Qual sua prova que existem?

— Eu vi uma no vaso de violetas.

— Desde quando você ter visto prova alguma coisa? — Shey hesitou, arregalando um pouco os olhos. — Ha!

— Tudo bem, não é uma prova. — resmungou, remexendo os dedos. — Mas era real.

— Duvido.

— Era sim, eu lembro dela perfeitamente!

— Lembra nada.

— Claro que lembro.

— Tenho certeza que não lembra.

— Você pode ler a minha mente, por acaso?

— Por quê? Se eu lesse ia poder dizer que você não lembra? Isso quer dizer que você não lembra, mas quer fingir que lembra porque se não lembrar não vai poder discutir comigo direito?

— Hã?

— Isso foi igual àquela coisa do “Eu não queria querer, mas sem querer eu quero”, não foi?

— O.K, chega, isso é infantil demais pra mim. — Aloá resmungou, olhando para o filho mais velho com indignação. — Você tem vinte e três anos. Agora senta aqui e vamos jogar Naruto.

A sala ficou silenciosa por um momento, enquanto Leon parecia processar a frase, logo antes de explodir em gargalhadas enérgicas pela contradição da fala, jogando-se no sofá sem parar de rir e pegando seu próprio controle, começando a selecionar as opções de jogo enquanto repetia o que ela havia dito, ignorando o olhar massacrante que recebia por isso.

Shey terminou de comer, sentindo o estômago se revirar graças ao alimento recebido, se levantando para ir lavar o prato e guardá-lo. Ele virou para trás por um momento antes de entrar na cozinha, vendo a mãe e o irmão mais velho jogando como se fizessem algo importante e suspirou, tornando a andar e indo até a pia, passando a esponja pelo prato, enxaguando-o e secando-o antes de guardar, indo então, com passos silenciosos, até a janela da cozinha, abrindo-a lentamente e olhando para a varanda, tentando ver se havia alguém nos vasos de violetas. Estava vazio.

Ele sentia falta de ver uma fada. Não tinha muita certeza de que tipo de poderes possuíam, mas talvez pudesse pedir a uma delas que curasse seus pés, para que não precisasse andar o tempo todo de meia até que os arranhões que causara ao tentar livrar-se dos bichos imaginários sumissem, a fim de não deixar a mãe e Leon verem. Eles ficariam desconfiados que não houvesse sido apenas ansiedade, e isso acabaria em uma conversa realmente incômoda. Contaria ao psiquiatra, apenas. Não havia motivo para envolver mais gente naquilo.

Quando voltou à sala, ouvindo a mãe soltar chiados e sons de exasperação enquanto tentava vencer Leon, ele se sentou na mesma poltrona de antes, fitando aos dois com atenção, as duas pessoas mais importantes de sua vida, notando Leon ainda lhe lançar olhares tensos com o canto do olho, por motivos que não deviam ter nada a ver com sua pequena revelação sobre Pocahontas, e pensou em sua paixão patética por Santini di Quercia, em como Leon devia ter nojo disso, lá no fundo, embora não o dissesse. Sua família simplesmente seria mais feliz caso não houvesse nascido, e esta era uma noção que fazia muito mais diferença que a maior parte das pessoas imaginava.

Mesmo assim, ele sorriu quando sua mãe o ofereceu o controle, passando a vez após ter perdido, ignorando o revirar furioso do estômago e a vontade de ficar na cama, encolher-se e nunca mais levantar.


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