You make me feel wrong escrita por Lyssia


Capítulo 21
Glassy Sky


Notas iniciais do capítulo

A música de título é de Donna Burke.



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— Como foi sua primeira aula de desenho? – Gramlich perguntou, com aquele tom suave e calmo de sempre, a caneta dançando entre seus dedos.

— Legal. – Shey respondeu logo em seguida, em uma voz tranquila calculada, os olhos viajando pela sala da psicóloga.

— “Legal”, a resposta típica jovem que você dá quando não quer entrar em detalhes.

— Isso.

Ela sorriu, assentindo de leve e girando a caneta entre os dedos. Ele continuou olhando ao redor, analisando a decoração, deixando os olhos passearem pela pequena estante, tentando ler os títulos dos livros. Gramlich parecia manter o gosto focado em Thomas Hobbes, Santo Agostinho, Victor Hugo (um pequeno gosto compartilhado, é verdade), Arthur Schopeuhaur, Stephen King e Aaron Beck: ele sempre gostara de passar os olhos por sua estante e pedir uma recomendação, quando estava sem nada para ler.

Ela também dissera para tomar cuidado com livros e filmes de terror, desde que um elemento de uma obra de ficção que lera surgira em uma alucinação no inicio de medicação, e ninguém precisava que isto piorasse. Mas Victor Hugo, Santo Agostinho e Schopeuhaur não haviam o matado ainda, então devia estar tudo bem com este tipo de livro.

— Eu já sabia de quase tudo. – comentou por fim, sem ter ideia de quanto tempo havia se passado.

— Quanto ao que?

— Ao que a professora de desenho estava falando. – respondeu, ainda sem olhar para a psicóloga.

— Por que você já fez um curso de desenho para iniciantes, não?

— Sim. E mais dois ou três anos de curso depois... eu não lembro bem quanto tempo fiquei.

— Três anos. – ela garantiu, sorrindo amigavelmente quando ele a olhou intrigado. – Estava na sua ficha.

— Ah. A minha volta depois de tanto tempo te obrigou a reler a minha ficha? – questionou, um pouco incomodado, e ela soltou uma risada agradável, negando com a cabeça.

— Eu gosto de reler a sua ficha de tempos em tempos. Muitos anos de terapia, e a sua psicóloga não tem uma memória tão boa assim, e gosta de tentar o melhor dela.

— E eu nunca evoluí muito.

— Quanto a isto nós discordamos. – ele deu de ombros, olhando ao redor novamente.

— Depois de Crepúsculo muitas... meninas, eu suponho que esta seja a maioria, começaram a achar que se pôr em risco por um garoto é bonito e romântico? – perguntou algum tempo depois, em um tom inexpressivo.

— Talvez. – ela respondeu apenas. – Por que a pergunta?

— Isto sempre me deixou um pouco preocupado.

— Você leu Crepúsculo?

— Li.

— Por quê? Não é bem o seu estilo, é?

— Não, não é. Achei que devia ler.

— Hm. E gostou?

— Não acho que devia entrar em méritos de qualidade da obra.

— Por quê?

— Não acho que entendi bem o conceito de romantismo do livro.

— Hm... o conceito de príncipe encantado?

— Não... sim... não... eu não sei?

— Você se identificou com algo no enredo e não entendeu isso?

— Não. Hn, eu também nunca tinha estado apaixonado.

— Ferir a si mesmo embasado em um sentimento de amor nem sempre precisa ser relacionado a

tipo de amor.

— Você acha que eu me firo por amor a algo?

— Por que você não responde esta pergunta? – ele ficou em silêncio, comprimindo os lábios com incômodo. – Esta pergunta não é uma insinuação de que o que você ama faz você se ferir, ou algo do tipo. Edward não incitava Bella Swan a se ferir, se bem me lembro.

— Você está me analisando usando Crepúsculo?

— Shey, querido, eu analiso até se você penteou ou não os cabelos.

Ele soltou uma breve risada silenciosa, mantendo a cabeça baixa e olhando sem de fato ver os joelhos da psicóloga.

— Talvez.

— Talvez o que?

— Talvez eu tenha me identificado com isso. Eu não sei. Não tinha pensado nisso, pra ser sincero.

— É para isto que estamos aqui. Pensar em relações assim, não?

— Mas eu nunca me pus em perigo físico por outra pessoa.

— Eu não estava falando apenas de amor por pessoas.

Ele ergueu os olhos para ela, surpreso, e imediatamente os abaixou novamente ao encontrar os olhos de Lisbeth Gramlich, pois ela era uma das poucas pessoas que sabiam ler bem suas expressões diminutas e interpretá-las, e não estava muito disposto a deixar isso acontecer, no momento.

— A minha religião não me faz mal. – pronunciou quase sete minutos depois, ainda vacilante sobre falar, e viu a psicóloga rodar a caneta entre os dedos.

— Eu não disse isso.

— Então o que você disse?

— Eu não disse nada. Foi você quem foi por este caminho.

— Minha religião não me faz mal.

— Eu disse que o que você ama não é necessariamente o que faz mal.

— O que isso quer dizer?

— O que você acha que quer dizer?

— Por que você não responde uma questão simples?

— Porque isso não é sobre mim e, principalmente, não é sobre questões simples.

— Então, o que, eu estou interpretando a Bíblia errado?

— Não sei. Quem sabe? A Bíblia foi escrita dois mil anos atrás. Certamente não é uma tarefa fácil interpretá-la, você não acha?

— Não. Os padres repassam a interpretação correta.

— Os padres repassam uma representação.

— O que você quer dizer?

— Que os padres repassam uma interpretação.

— Você apenas repetiu o que disse antes.

— Porque não há sentido oculto algum na frase.

Eles ficaram em silêncio novamente, e Shey ergueu o olhar para fitar a psicóloga com desconfiança, sem saber bem para onde seguir.

— Eu quero ir embora. – acabou soltando, em um tom baixo e incomodado.

— Ainda temos vinte minutos.

— Eu quero ir embora.

— Tudo bem. – ela se levantou, estendendo a mão para ele, que aceitou em um movimento praticamente instintivo, se inclinando para pegar a mochila sobre o sofá e colocá-la nas costas. – Até semana que vem.

— Até. – murmurou, ainda desconfortável, e atravessou o corredor até a recepção, assinando apenas o papel de sua presença, pois os demais sua mãe tinha de passar ali no final do mês para assinar, já que não era maior de idade.

Lisbeth acenou uma despedida calma enquanto ele ia embora, e Shey tomou caminho até a praça que ficava apenas alguns minutos de distância, foi até uma das mesas de xadrez debaixo de uma árvore, sentou-se em uma cadeira, jogou sua mochila em outra e catou seu lápis, sua borracha, seu apontador e seu caderno sem pauta, pois simplesmente precisava dar vida a um desenho naquele momento, e esquecer que o mundo estava girando.

~o~

Ele começara a pintar na faixa de tecido de tela logo depois que terminou de ajudar o irmão a colocar em uma caixa os enfeites que fizeram “juntos”, já que Leon não era muito bom nesse tipo de trabalho, ainda; os ovos de Páscoa coloridos e com purpurina, de papel, um “FELIZ PÁSCOA” de letras coloridas em E.V.A, cenourinhas contornadas de gliter laranja, patinhas de coelho em papel colorido e as caixinhas onde iriam os bombons quando a escola os entregasse.

Já havia feito o esboço antes, é claro, e aquela era a primeira camada de tinta, um amarelo-claro que misturara com apenas um pouco de marrom em um pote de tinta que também tinha tampa, mas já havia esvaziado, que passava no fundo, depois preencheria as borboletas com um amarelo mais puxado para laranja e trabalharia com sombras e efeitos com laranja, tons de amarelo e marrom.

Leon se aproximou dele com duas canecas de café, pisando com cuidado no plástico que colocara no chão da sala para não sujar nada e abaixando-se perto dele, estendendo uma das canecas.

Shey abandonou sua posição inclinada, sentando-se com as costas mais retas e pegando a caneca com cuidado para não entornar em sua pintura. Estava com uma camisa verde-escura que ganhara de presente da avó, e nunca usaria fora de casa, pois não fazia parte de seu sistema de três cores, e uma calça de moletom preta, mas as manchas de tinta estavam praticamente apenas em seus antebraços.

— Obrigado. – murmurou baixinho, tomando um pequeno gole do café. Leon sorriu, negando com a cabeça.

— Cheiro forte. – comentou, observando a pintura que apenas começava a se formar. – Não tá ficando com dor de cabeça?

— Não. – respondeu, continuando a bebericar o café quente. – Eu gosto do cheiro. Cheira a paz.

— Hm. – Leon soltou, pensativo, depois sorrindo novamente para ele. – Não pensa em entrar para um curso de pintura, então?

— Por enquanto prefiro continuar focando em desenho.

— Entendi. – Shey desviou novamente o olhar, bebericando o café uma vez mais e Leon ficou em silêncio por um momento até soltar um suspiro fraco e atrair o olhar do irmão mais novo, que percebeu que ele estava com o cenho franzido, fitando-o com estranhamento. – O que você tem pensando em fazer da vida?

— Estou pensando nisso. – Leon comprimiu os lábios, incerto.

— De verdade?

— Sim. – ele assentiu, embora não parecesse ainda completamente convencido, e abriu um sorriso ameno, terminando o café de uma vez.

— E como estão as consultas?

— Legais.

— Legais... – ele repetiu, estreitando os olhos em sua direção. – Gramlich ainda te deixa à vontade? – Shey hesitou, umedecendo os lábios, e voltou o olhar para a pintura. Ela o deixava tão à vontade quanto sempre, quando não estava dando a entender que ter uma religião o fazia mal.

— Eu vou continuar aqui. – murmurou, repousando a caneca ainda não completamente vazia um pouco afastada da faixa e voltando a pegar o pincel.

Leon se levantou pouco depois, voltando à cozinha e retornando imediatamente depois, sentando-se no sofá e ligando a televisão. Não demorou muito para Shey reconhecer o programa que ele via, aquela porcaria de competição estilo reality show entre Drag Queens. Franziu um pouco o cenho, erguendo a cabeça da pintura e fitando a cabeça de Leon por sobre o encosto do sofá.

— Você pode mudar de canal?

— Nem fodendo. Adoro essas competições, na boa. – Shey apertou o pincel mais forte entre os dedos, tentando respirar fundo.

— Você não pode ver isso depois?

— É programação, não é DVD.

— Leon.

— Direitos iguais. Você não tava usando a TV.

— Por favor.

— Não dá, eles são engraçados pra caralho. O loirinho é o melhor de todos. E fica uma drag muito gata, também.

Ele se levantou, deixando o pincel para trás, mas levando a caneca consigo e terminando o café, largando a caneca na cozinha e indo até seu celular, plugando seus fones de ouvido e colocando-os, fazendo Lacrimosa encher sua cabeça.

Foi difícil se desconectar, mesmo assim, sabendo o que passava na TV, sabendo o que seu irmão estava assistindo, e desistiu logo depois da mãe chegar em casa e ele a cumprimentar e dizer que estava tudo bem, arrastando o plástico com a pintura para o canto, guardando as tintas e subindo para tomar banho e se trancar no quarto, jogando-se na cama após engolir uma pílula para insônia, pois não achava que conseguiria o ânimo para engolir a comida e queria simplesmente apagar até ter de forçar-se a levantar no dia seguinte.

~o~

A primeira coisa que passou pela cabeça de Shey ao ouvir seu nome ser chamado enquanto descia das escadas do segundo andar da biblioteca moderna, foi que deveria correr. O principal motivo disto era o inegável fato de que reconhecera a voz daquele que o chamara de imediato, e com isto veio a resolução de que o melhor que podia fazer era não falar com aquela pessoa, que isto seria o melhor para todos os envolvidos, e que ele estava apavorado com a ideia, se fosse ser sincero. Não houve tempo para isso.

Daniel logo surgiu à ponta da escada, com um sorriso simpático e um olhar intrigado, parecendo tão amigável quanto Shey se lembrava dele. O loiro o encarou, sem saber o que fazer, completamente paralisado ao topo da escada, até continuar a descida, apertando entre os dedos a alça da bolsa de mensageiro que levava para as aulas de desenho, chegando cada vez mais perto e sentindo o coração acelerar, embora nada o suficiente para modificar a expressão que levava no rosto.

— Eu não esperava te encontrar aqui. — Daniel comentou, daquela forma bem-humorada comum para ele. — Tipo, sabia que você gostava de ler, mas faz uns anos que eu venho aqui todo sábado ou domingo de manhã pegar ou devolver livros e nunca tinha te visto.

— Estou fazendo aula. — conseguiu responder, começando a andar em direção à porta de saída. O outro adolescente o seguiu de forma relaxada e Shey simplesmente não sabia o que fazer.

— Aula de quê?

— Desenho.

— Ué. — Daniel resmungou, arqueando uma sobrancelha. — Pensei que aqui era desenho pra iniciantes.

— E é.

— Cara, isso é pra quem tá com dificuldade pra... você sabe, fazer circulos perfeitos. Tu é outro nível.

— Hn, me disseram. — o rapaz riu, divertido, por algum motivo.

— Pelo menos tá gostando?

— Acho que sim...?

Ele empurrou a porta de vidro, deixando o prédio, ainda sendo seguido pelo outro.

— Shey, não é por nada não, mas você sabe que podia ter continuado falando com a gente mesmo depois de recusar o Santie, né? Tipo, até com ele, ele não é do tipo que fica guardando rancor por ser rejeitado, não. — ele contou, em um tom tranquilo apenas levemente preocupado, parecenco completamente ignorando ao fato de que o outro sentira como se houvesse sido subitamente flechado, com o coração disparando e nervosismo se infiltrando em seu sistema o suficiente para que o cenho se franzisse e ele encolhesse os ombros de leve. Por sorte, ao menos, Daniel não estava exatamente ao seu lado, ou estavam de frente um para o outro, então sua reação não foi notada. — Você parou de falar com todo mundo do nada e sumiu, cara. Eu nunca te vejo pelos corredores.

— Eu como na sala. — respondeu em um tom baixo e quase imperceptivelmente nervoso. E por sorte Daniel não era lá muito perceptivo.

— Porra, mas eu não te vejo nem em horário de entrada e saída. — ele suspirou, encostando em seu ombro brevemente, e Shey virou a cabeça, vendo-o o encarar com preocupação. — Você anda bem?

— Hn, até que sim.

— E, sei lá, tá indo pra escola, né?

— Estou. — respondeu em um sussurro, remexendo na alça da bolsa e deixando os olhos caírem para o chão.

— Ah, que bom. — ele sorriu novamente, parecendo bastante aliviado. — Eu pensei que podia ter acontecido algo e até pensei em ver se a Helena lembrava do caminho pra sua casa, mas o Sash disse que não era boa ideia. E acho que você e eu não somos íntimos o suficiente pra isso, sei lá. — Shey respondeu com um murmurio, olhando para o caminho que teria de seguir para pegar um metrô para casa. — Ah, você me espera? — Daniel perguntou, em um tom amigável e um sorriso no rosto. Shey olhou para ele com confusão, piscando. — Eu queria conversar melhor com você, mas tô com a necessidade física de pegar um livro.

— Hn, mas eu vou... pegar o metrô. — murmurou, remexendo na alça, espremendo-a com os dedos.

— Eu também, você sabe. A gente mora meio perto. Mas se você não quiser esperar pode ir na frente, sei lá. — ele riu, divertido. — Também não sei como você passa por uma biblioteca dessas e não para pra pegar um livro emprestado, mas ok.

Shey parou por um segundo ali, perto da porta de vidro da biblioteca, sem saber o que fazer com a liberdade de escolha que lhe fora dada, enquanto observava Daniel voltar para dentro do edifício. Mordiscou o lábio, incerto, antes de tocar no grande puxador de ferro da porta e entrar novamente, sentindo o vento parar de bater em sua pele e a temperatura amena o substituir, o ar controlado entrando em seus pulmões.

Ele não estava exatamente muito confortável com a ideia de continuar ali, mas parecia errado simplesmente virar as costas para alguém sempre tão amigável e honesto como Daniel, o que acabava por criar um grande embolado confuso por sua mente. Ele se aproximou mais de uma estante, passando os olhos por ela distraidamente, embora sequer de fato lesse os títulos, até que Daniel o chamasse novamente em um cumprimento, com um sorriso enorme, como que contente por Shey não ter ido embora.

Eles seguiram para a porta novamente, com Daniel com o livro em uma sacolinha de pano com uma estampa de árvores pequenas em fileiras, do tamanho certo para acomodar um livro.

— E aí, novidades durante esse tempo fora do nosso grupo? — o outro adolescente questionou, bem-humorado, e Shey franziu um pouco o cenho por um mínimo momento, se perguntando o que responder a isso, mantendo os olhos no chão.

— Acho que nada.

— Sério? Tem, tipo, um tempo já, cara. Já é quase Páscoa. — ele sorriu, empolgado. — E o grupo de teatro da Helena já tá pronto pra estrear a peça deles. Você vai assistir, né? A Helena tá prestes a te caçar igual uma Buff, a Caça Vampiros 2, se você não aparecer.

— Hn, eu não sei. Digo... a situação com... hn...

— O Santie não guarda rancor de você não. — ele repetiu, e Shey podia praticamente sentir o olhar do outro fixo nele. — Mas a Helena é meio rancorosa, então, sei lá, se tu gostar dela e tiver algum interesse em manter a amizade eu aconselharia a ir.

— Eu não saberia o que fazer lá.

— Ué, só sentar e assistir, cara.

— Hn, depois que acabasse, eu quero dizer. — Daniel arqueou uma sobrancelha para ele, olhando-o com desdém em seguida.

— Levantar e ir embora, se você quiser. Ela não é uma atriz, nem nada. Ela é dos bastidores, faz o figurino e tal. — ele assentiu, ainda sem olhar para o outro. — Você tá bem? Tá meio abatido.

— Estou.

— Tem comido direito? — perguntou, em um tom preocupado.

— Tenho.

— Ok... e dormido direito?

— Até que sim...?

Eles ficaram em silêncio por um tempo, apenas caminhando em direção à estação de metrô, que não ficava muito distante. Então Daniel suspirou pesado, um som cansado e curto.

— Você não tentou bater no Santie nem nada, né?

— O que?

— Você tentou alguma coisa contra ele?

— Não... — Daniel parou de andar, fazendo Shey o imitar e erguer instintivamente os olhos para ele por um momento, vendo-o com os braços cruzados, virado em sua direção e com o cenho franzido.

— Cara, por que você tá até evitando falar o nome dele, então? Você já sabia que ele era gay.

— Eu não...

— Eu realmente espero que você não esteja supondo nessa sua cabeça aí que ele vai te atacar por isso. Porque você conhece aquele ser. Ele é todo sobre liberdade e direito de escolher as coisas. Ele nunca beijaria alguém à força. Nunca. E se tu estiver achando que ele faria isso, você é um babaca, cara, na boa. Não tem desculpa. É bem visível no comportamento dele que o cara não concorda com essas coisas horríveis de forçar os outros a algo.

— Eu não acho...

— Então que porra foi aquela de pular o nome dele? — o loiro desviou o olhar, comprimindo os lábios e remexendo na barra da manga do casaco com a outra mão nervosamente. Então Daniel suspirou de novo, e ele pôde ver por sua visão periférica o corpo alheio relaxar um pouco. — Você sabe, o Santie não vai ficar insistindo nisso se você disse não, ele não é esse tipo de pessoa. — ele fez uma pausa, como que esperando que Shey dissesse algo. Os segundos passaram longo, com o silêncio entre eles parecendo tomar vida própria e evoluir para um estado de espírito de desconforto e vontade de ir embora. — Shey? — o outro chamou, em uma voz já quase irritada.

— Eu não acho que queira ficar perto dele depois disso. — eles se calaram novamente, por um tempo um pouco mais curto, mas que parecia, se possível, ainda mais pesado.

— Uau, você é meio… ugh. Ok, você é meio idiota. Ou tá sendo meio idiota sobre isso. — Shey não respondeu, continuando a encarar o chão, sem coragem de erguer o olhar. — Você ouviu o que eu disse sobre ele não te agarrar? Era verdade, cara.

— Não era esse o meu ponto ao me afastar. — confessou, torcendo o pano entre os seus dedos, e ele apenas queria que parassem de falar.

— Então é o que, você ficou com vontade de ser homofóbico? — retrucou em um tom irritado, e Shey absteu-se de responder, apenas começando a andar, ainda mantendo a cabeça baixa, sem coragem para fitar o outro.

Ele se surpreendeu quando Daniel logo parou novamente ao seu lado, andando em silêncio, mas inegavelmente ao seu lado e não passando por estrarem indo para o mesmo local, pelo mesmo caminho. Acalmou-se gradativamente, entretanto, ao notar que o outro nada diria, deixando de apertar a alça da bolsa e erguendo um pouco a cabeça, não muito, mas o suficiente para não correr o risco de trombar com alguém.

Eles apenas voltaram a falar quando um breve som maravilhado saiu de sua boca quando Danil puxou A Montanha Mágica de sua bolsa. O outro adolescente imediatamente parou, olhando-o com surpresa e abrindo um sorriso mesmo quando tudo que o loiro fez foi desviar os olhos por um momento, mantendo-os em seguida no rosto do outro, mas não nos olhos.

— Você já leu? — ele perguntou, em um tom simpático.

— Já. Hn, tem uma parte em francês. Fizeram uma tradução pra mim, caso você precise.

— Ah, uma tia suíça minha me ensinou. Mas valeu mesmo, foi muito gentil da sua parte. — Shey desviou os olhos, brincando com o zíper da bolsa em seu colo.

— Ok.

— É bom? — Daniel perguntou, parecendo interessado em continuar a conversa, e Shey assentiu imediatamente, pois o livro era simplesmente fantástico. — Mas bom tipo até que vai ou bom tipo foda?

— É incrível.

— Você não fala palavrão, né? — ele notou, soando divertido. Shey franziu minimamente o cenho, olhando para o outro por um segundo e então desviando o olhar novamente, incomodado. — Legal que você já tenha lido o livro, então. A gente conversa sobre ele assim que eu terminar!

Shey assentiu levemente, mais por instinto que qualquer outra coisa, sem saber ao certo o que dizer. Ele não conseguia desembaralhar seus sentimentos entre a gritante sensação de que não devia falar com os amigos de Santini e a absoluta falta que sentia de conversar com alguém que não sua família, mesmo com o tempo que se passara.

A dúvida não havia passado quando deixou o metrô, e deu alguma forma ele sabia que não o faria tão cedo.


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