Mais que o sol escrita por Ys Wanderer


Capítulo 7
Flores Vivas Calcinadas


Notas iniciais do capítulo

Hello! Estão aproveitando o finzinho das férias? Eu estou! Bom, capítulo agora pelo ponto de vista do Cal e a partir daí ele vai tomar a história para si um pouquinho. Espero que gostem de conhecer a história que "imaginei" para ele. Agradeço a todos que leram e comentaram até aqui!
Boa leitura!



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Cal

Fé. Superstição. Traição. Lealdade. Amor.

Como uma alma essas palavras e muitas outras nunca fizeram parte do meu vocabulário. Mesmo em outros corpos e em outros mundos jamais esses conceitos se fizeram presentes. Porém, aqui na terra, deparei-me não só com esses conceitos novos, mas também com coisas e sentimentos inimagináveis. Eu agora estava num corpo humano.

E isso podia tanto representar uma bênção quanto um fardo.

A fé fazia esses seres racionais se sentirem confiantes e protegidos mesmo quando todas as opções se esgotavam e não havia mais saída. Aqui neste planeta não havia igualdade e os recursos naturais não eram distribuídos com equidade. Desse modo, cada dia vivido era uma conquista e cada sonho alcançado uma vitória. Orações e adorações a divindades causaram muita estranheza entre os de minha espécie quando ainda estávamos conhecendo essa raça, pois não acreditamos ser possível crer em algo que não se pode ver e nem se ter a certeza de existir.

Essa relação humana com a superstição era engraçada. Ela os dizia para não fazerem certas coisas que atraíssem energias negativas e geralmente vinha acompanhada do que chamam de “sexto sentido”, um espécie de aviso sobrenatural sobre o acontecimento de situações ruins. Os humanos foram à primeira raça dominada com a qual tivemos contato com o “sobrenatural”.

Agora a palavra que mais nos causou aversão foi “traição”. Nunca antes em todos os planetas havíamos nos deparado com tal expressão. Nem com o seu antônimo: “lealdade”. As almas sempre trabalharam em união para o bem comum e criavam um elo com as espécies dominadas. Na verdade nem víamos como uma dominação, pois não havia disputa. Mas, aqui na terra, esse conceito se tornou comum pelo fato dos humanos serem traiçoeiros e gananciosos, sempre enganando uns aos outros. Porém, com o passar do tempo às almas também foram adotando esse termo entre elas...

No início eu era Flores Vivas Calcinadas, uma alma vinda diretamente do Mundo do Fogo pronta para conhecer as maravilhas desse novo mundo recentemente restaurado. Nós almas não temos gênero, mas sempre escolhemos aquele com o qual mais nos identificamos. Em todas as minhas vidas eu sempre pedi o equivalente a um corpo masculino, por isso fiquei muito grato com o hospedeiro que recebi quando cheguei aqui na terra.

Todas as almas sempre se queixaram da quantidade de emoções desenfreadas que tinham que enfrentar quando inseridas em um corpo humano e eu me preparei para isso ainda no mundo do fogo. Na verdade estava animado e curioso para conhecer essa raça que habitava um belíssimo planeta, capaz de criar coisas tão belas e ao mesmo tempo serem tão cruéis. Fechei meus olhos como dragão em mundo extremamente quente e quando os abri novamente vi e ouvi coisas que nem pensei serem possíveis existir. Mas quanto aos sentimentos irracionais, levei um tempo para conhecê-los e compreendê-los em sua totalidade.

Recebi um hospedeiro jovem e saudável e me preparei com afinco para receber o fardo emocional que vem com cada corpo, entretanto simplesmente nada aconteceu. Meu hospedeiro não tinha nenhum vínculo familiar, amigos e nem possuía uma companheira, pois havia sido encontrado sem memória em um acidente de trem e não possuía documentos nem nada que pudesse comprovar a sua identidade. As autoridades disseram que pela pouca idade – cerca de 17 anos – provavelmente ele estava fugindo de algum lugar.

Sua vida era vazia e solitária, não houve lembranças dolorosas de fuga, fim, medo e quase morte, apenas a doce tranquilidade de uma mente vazia se esvaindo. Victor – nome que recebeu no hospital – não tinha nada de seu, nem memórias, e por isso eu não pude experimentar através de suas lembranças sensações como a amizade e o amor. Quando contei isso para o meu curandeiro ele me disse o quanto eu tinha sorte, pois muitas almas não conseguiam suportar a carga emocional desses hospedeiros tão instáveis e que exigiam que estendêssemos nossas conexões como nenhum outro, deixando às almas mais suscetíveis a pressão do corpo. Meu curandeiro disse que eu seria feliz como nenhum outro. Eu sorri.

Mas na verdade não foi bem assim.

Eu, Flores Vivas Calcinadas, percebi o quanto me sentia sozinho e triste. Não era nenhum resquício de Victor, pois ele me deu um corpo desprovido de emoções. Eu mesmo, a alma prateada, me sentia assim. Antes, quando eu via como as outras almas se comportavam em seus hospedeiros mantendo seus laços de amor e companheirismo, seus casamentos, família e amigos pensei que elas não tinham escolhas e estavam fadadas a viverem como os humanos devido utilizarem seus corpos. Mas com o passar do tempo eu compreendi que não era assim. Eu mesmo sentia necessidade de ter isso, mesmo que meu corpo não fosse familiarizado com essa situação.

Porém, o companheirismo e amizade que as almas distribuem são dados a todos igualmente, não há luta e nem paciência como acontecia com os humanos. E eu queria algo assim, conquistado, algo somente meu. Eu morava sozinho há muitos anos, mas desde que chegara à terra não havia ainda arranjado uma companheira e nem um círculo regular de amigos, simplesmente não conseguia me encaixar nessa nova sociedade. Nada me satisfazia e a solidão me dominava como nenhum sentimento jamais me dominou.

E foi então que minha vida mudou drasticamente.

Certo dia, fui para o trabalho cedo como de costume, porém no meio do caminho percebi que tinha esquecido algumas ferramentas importantes. Dei meia volta e ao entrar em casa havia algo diferente: um cheiro peculiar de terra e suor que antes não estava presente em meu lar impecavelmente limpo. Alguém devia estar lá. Um intruso.

Um humano.

O homem que roubava minha geladeira se assustou quando me viu e imediatamente sacou uma faca do bolso com as mãos trêmulas. No entanto, antes que pudesse me fazer qualquer mal, ele desmaiou espalhando todos os mantimentos pelo chão. Aproximei-me lentamente e percebi que bastante sangue emanava de sua camisa e sua respiração estava compassada, fraca. O humano estava morrendo.

Como alma, em apoio à unidade, era meu dever alertar imediatamente os buscadores. Mas eu tinha curiosidade em saber como era um humano e como ele se sentia. Decidi então primeiro saciar minhas dúvidas e só depois resolver o que iria fazer. Carreguei-o com dificuldade até o sofá e retirei sua camisa suja. Um grande buraco de bala perfurava seu ombro e estava necrosando praticamente toda área ao redor. Seus braços tinham cortes profundos e possivelmente ele já havia perdido muito sangue.

Eu não era curandeiro, mas trabalhava com a parte elétrica de uma instalação de cura. Era um serviço fácil e solitário, perfeito para mim. Com a convivência em um ambiente de saúde eu havia aprendido indiretamente a realizar alguns procedimentos e por isso soube no mesmo instante o que fazer. Deixei o estranho em minha casa depois de alguns cuidados básicos e me dirigi até a instalação de cura em busca de medicamentos mais específicos.

Eu não podia pedir pelos remédios, pois não havia necessidade de tê-los em casa. Tampouco podia contar para alguém meus motivos, já que no mesmo instante o humano seria interceptado. Decidi então resolver as coisas a minha maneira e pela primeira vez em todas as minhas vidas eu menti.

Quando passei pela recepção Pétalas Solares me cumprimentou com seu habitual sorriso. Todos na instalação já haviam comentado pelo menos uma vez comigo sobre o quanto ela se mostrava agradável e receptiva a mim e meu curandeiro disse algo sobre “resposta química dos corpos”. Os seres humanos haviam mudado muitos fundamentos entre as almas, inclusive em questões de relação, porém, apesar da extrema beleza de sua hospedeira – pele negra e um rosto perfeito emoldurado por cachos negros – em nenhum momento me vi interessado.

Pétalas perguntou amavelmente se estava tudo bem e tentei responder da maneira mais agradável possível. Adentrando a instalação de cura, segui diretamente para a área de medicamentos e coloquei o necessário em uma bolsa de lona. Logo após, retornei à recepção e avisei a Pétalas que havia esquecido ferramentas importantes e por isso precisaria retornar para buscá-las.

Estranhamente, não me senti culpado pela mentira, mas sim deslocado e ansioso. Em casa, o humano ainda estava inconsciente e balbuciava palavras incoerentes. Embora a par dos riscos que eu estava correndo decidi ajudá-lo, curando o seu corpo da melhor maneira. Esperei por algumas horas até ele recobrar a consciência e, como ele demorou a reagir, decidi aproveitar e preparar algo para que comesse.

— Você bem que poderia me ajudar — disse para o homem quando o percebi me fitando assustado. Ele havia se levantado em minha ausência e procurava uma rota de fuga com os olhos.

— O que aconteceu? — ele questionou analisando o corpo quase são e passando a mão repetidas vezes pela nuca, conferindo que ainda era ele mesmo e não um de nós. — Onde estou?

— Não se preocupe, você está seguro.

— Você não parece ser um deles. É humano? — ele disse me pegando de surpresa. — O que é você?

O que eu era?

— Meu nome é Flores Vivas Calcinadas — respondi e ele se assustou ao constatar que eu era mesmo uma alma. Porém, ao invés de correr como o esperado ele se aproximou vagarosamente e sentou-se à mesa.

— O meu é Nate — ele falou com o olhar distante. — Fui atingido por buscadores numa emboscada e estou fugindo há vários dias. Eu achei que vocês fossem pacíficos — uma risada debochada. — Por que me salvou? — perguntou tranquilo.

— Não sei — respondi sinceramente. — Acho que preciso de respostas.

Inacreditavelmente com esse humano tive a conversa mais interessante de todas as minhas vidas. Fiz inúmeras perguntas e todas foram respondidas pacientemente por ele. Por um instinto indecifrável de uma amizade nascente, ele também saciou todas as suas dúvidas e não havia acusações vindas de ambas as partes, apenas questionamentos e buscas.

No final da noite eu tinha ganhado amigo. Um amigo humano.

Escondi Nate em minha casa por cerca de duas semanas enquanto ele se recuperava, até o momento em que as outras almas começaram a notar a minha mudança de comportamento e meu curandeiro se mostrou preocupado com minhas “crises” constantes de consciência pela ocupação da terra. A situação se sustentou até eu receber a visita de buscadores.

Os buscadores me cercaram por todos os lados, questionando se alguma vez eu havia tido contato com humanos devido minha “nova maneira de pensar”. Eles achavam que eu sabia onde encontrá-los – o que não era verdade, pois Nate não confiava tanto assim em mim – e por isso passaram a me vigiar. A situação acabou se tornando insustentável para mim, que não conseguia mais viver em meio aos meus, e para Nate, que permanecia preso em meio às almas sem poder sair. Por isso, quando encontramos uma brecha para que ele fugisse resolvi que iria para a resistência com ele.

O início da minha vida em meio aos humanos de Nate foi tão conturbado quanto à história de Peregrina nas cavernas de Jeb. Rejeição, humilhação e desconfiança se fizeram e ainda se fazem presentes, porém, assim como ela, eu consegui o meu espaço rumo a uma nova vida. Eu encontrei um lar e principalmente amigos. Deixei de ser a alma Flores Vivas Calcinadas.

Para me tornar o humano Cal.


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Notas finais do capítulo

E ai? O que acharam? Não se esqueça de deixar sua opinião ai embaixo, é bem rapidinho kkkk. Fantasminhas, apareçam, por favor!