Guardian Angel escrita por Juliano Adams


Capítulo 2
Você é engraçado, Patrick.


Notas iniciais do capítulo

Eaí, estão curtindo a história? Espero que sim hahah, pessoal esse capítulo vai ser no POV do Patrick, então vai ser narrado em primeira pessoa.



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Fazia tempo que não parava para prestar atenção no céu, na verdade me lembro bem da última vez que olhei praquela redoma azul que cobre essa pequena partícula de poeira solta no universo. Eu estava com Jorge, estávamos deitados na relva, eu ainda me lembro da sensação boa que é deitar-se na grama macia. Era um dia de sol, nós olhávamos as nuvens e ficávamos brincando de encontrar padrões nelas. Eu nunca conseguia imaginar nada, Jorge enxergava letras, frases, corações, animais, e um castelo. Ele dizia que iriamos morar lá um dia, pra ele poder ser meu príncipe. Que bobagem, não existem príncipes homossexuais.

Jorge era tão legal, ele fazia o mundo parecer perfeito. Era até engraçado como ele achava que nós poderíamos ser felizes um dia. O pai tinha me batido na noite anterior, eu me lembro dele bêbado gritando comigo e dizendo que eu iria pro inferno. Jorge me deu beijos leves nos meus hematomas, de algum jeito ele me fazia ignorar a dor. Tanto tempo depois de sua morte, o único tipo de calor que eu consigo lembrar é o do abraço dele. Espero que meu pai tenha razão, quero ir para o inferno encontra-lo.

Voltei meus olhos para baixo, comi uma maçã antes de sair, Lígia lavava os pratos do jantar de ontem, nem me viu sair. Lígia é uma mãe distante, ela nunca diz nada, apenas deixa meu pai me bater, nunca teve coragem para nada, não deveria ter sido mãe. É uma mulher fraca, que colocou uma criança fraca no mundo. Eu não a culpo. As pessoas pressionam as mulheres a serem mães, no desejo ridículo de fazer a humanidade se reproduzir. Queria que as pessoas começassem a nascer estéreis, assim em alguns anos os humanos acabariam. O fato é que minha mãe não era estéril, e embora meu pai quase a tenha convencido a abortar – a melhor coisa que ele teria feito por mim- eu nasci.

O mundo é um lugar chato, penso a caminho da escola. Quando Jorge era vivo matávamos aula para ir ao parque, observávamos as nuvens, subíamos nas árvores. Ele escalava tão bem, até lá o alto, eu tinha medo de subir, tinha medo de tudo, sempre tive. Jorge nunca teve medo de nada, o que fazia dele um tolo. O mundo está aqui para nos meter medo, Jorge era corajoso, gostava de altura, queria chegar ao céu, dizia. Tinha vitalidade, desafiava o mundo, e quase sempre vencia, mas o mundo não é um bom perdedor.

Um avião passa ao fundo, eu desisto de olhar pro céu. Eu me lembro do dia em que a notícia chegou. Só li três frases daquele jornal: desastre aéreo, não há sobreviventes, e o nome dele numa lista que divulgaram. Foi em cima do mar, das águas turvas e profundas do atlântico, ele estava de férias na Europa, dizia que quando ficássemos mais velhos iriamos juntos. Eu só queria que ele voltasse logo. Não me interessava nenhum dos continentes dessa droga de mundo, contanto que estivéssemos juntos. Bobagem minha, não sobrou nada, nem uma peça de roupa para eu sentir o cheiro dele, nem o corpo encontraram, comida para os tubarões, talvez. Recolhi um pouco da água do mar aquele dia, e guardei numa garrafa, talvez ali ainda exista uma poeirinha, um átomo dele, diluído entre tantos outros. Bobagem minha, eu sei que ele não caiu. Gostava de altura, amava o céu, ainda está lá no nosso castelo nas nuvens.

Chego na escola, eu torço para que as pessoas me ignorem, mas as vezes é pedir muito. Detesto chegar atrasado e sentir os olhares me acompanhando enquanto entro na sala. Ando rápido para que não me percebam, e possa chegar ao conforto de minha classe no canto da sala, que proporcionava um bom isolamento daquela massa de gente fútil. Não entendo por que aquele garoto me ajudou, pessoas como ele não se importam com pessoas como eu. Deve ter sido a boa ação do dia para compensar o fato de ter traído a namorada com alguma garota do primeiro ano. Meu pai devia ser assim na escola, eu não entendo o porquê dos homens acharem status saírem com muitas mulheres. Eu não entendo o porquê de muita coisa.

Para minha surpresa ele sentou-se do meu lado, eu não entendi o porquê dele ter feito isso, ative-me mais a decepção no rosto de Larissa, que havia guardado um lugar para ele ao seu lado. Talvez ela tenha pensado que ele teve pena de mim, talvez ele realmente tivesse pena de mim. Mas eu tenho pena dela, tão rasa, tão fútil, conseguir um namorado é sua melhor ambição, minha mãe devia ser assim na escola.

–Bom dia Patrick, e aí como vai? – Disse ele. Eu gelei. Provavelmente a última pessoa a me desejar um bom dia foi Jorge. Talvez não, mas que eu tenha reparado. Eu não entendia por que ele estava fazendo aquilo. Mas estava. Fiquei eu divagando em dúvidas até perceber que devia responder a pergunta:

–Bom dia. Vou bem. – Disse, esperando sair natural.

–E então, você sempre estudou aqui?

–Estudar eu nunca estudei, mas venho para essa escola, sento nessa cadeira velha e finjo que o mundo ao meu redor não existe todas as manhãs faz uns três anos. –Respondi com sinceridade, talvez isso afastasse ele. Ele queria puxar assunto. Nunca sei como reagir com pessoas assim. Mas meu cérebro queria fazer com que ele me lembrasse de algo, enquanto meu coração não deixava. Apenas ignorei aqueles sentimentos todos que lutavam dentro de mim, como sempre fiz pra sobreviver. Ele riu, aquilo foi o meu fim. Queria ser um fantasma, atravessar aquela parede e fugir daquilo (na verdade sempre quis ser um fantasma, estar morto e assombrar a mente dos vivos seria um passatempo tentador) mas aquele sorriso me embrulhou o estômago, era como se a morte dentro de mim estivesse fugindo.

–Você é engraçado Patrick – Riu ele mais uma vez, o mesmo sorriso. – E aí, o que você tanto desenha? – Ele insistia em perguntar, não sabia como agir, nunca tive o dom de ser simpático. Abri o caderno e mostrei a ele aquelas imagens, na esperança de que ele achasse-as esquisitas o suficiente e fosse embora. Figuras vagamente humanas, olhos, crânios, labaredas e fumaça, monstros distorcidos, demônios, o inferno. O olhar dele, ao invés de espanto demonstrava fascínio, ele gostara de meus demônios.

–Cara, você desenha muito bem. – Disse ele um pouco mais alto que o habitual, eu pude ver o deslumbre nos olhos dele. – Sério, meus parabéns.

–Obrigado - respondi meio sem graça.

Ele pareceu sem ter o que responder, o silêncio constrangedor tomou conta de nosso diálogo, eu torci para que este durasse para sempre, mas ele logo voltou a puxar assunto

–Minha irmã gosta de desenhar mangás, eu nunca aprendi, acho que é preciso muito talento. Qualquer dia eu te mostro os desenhos dela, você tem facebook?

–Não. – Respondi friamente.

–Celular? – Ele estava insistindo.

–Eu prefiro viver o mais próximo do século XIX que consigo.

Ele riu, o mesmo sorriso.

–Entendo, as vezes deve ser mais divertido mesmo. – Disse ele, entre risos.

A professora apresentou um trabalho que deveria ser feito em dupla, eu sempre fiquei sozinho, então ignorei. Ele me tocou com o dedo:

–Ei, quer fazer comigo?

Dei de ombros. Apenas assenti. Não era forte o suficiente para dizer não. E não posso negar que a expressão de indignação no rosto de Larissa enquanto ele falava comigo me deu certa satisfação.

Havíamos combinado de nos encontrar na casa dele, eu nunca convidaria-o para a minha casa, eu já sou esquisito o suficiente, ele não precisa conhecer minha família de aberrações. Por que ele fizera aquilo, não entendo. Tinha pena de mim? Talvez. Odeio ser fruto de compaixão. A vida escolar é vazia o suficiente para que todos possam me ignorar, mas não o fazem. Como proceder num mundo em que apenas existir já desperta sentimentos nos outros? Maldito seja esse tal de Leonardo Vieira. Não fosse aquele sorriso emblemático eu facilmente traçaria a imagem do idiota que ele é. O garoto bonitão e vazio que tem como esporte preferido correr atrás do sexo feminino. Ele não se importa com nada ao seu redor, apenas ouve música ruim, bebe até vomitar e gasta o dinheiro dos pais, patético. Mas o sorriso era diferente, sincero, intrigante. Enfim, parei de divagar em pensamentos que não me levarão a lugar nenhum.

Ele me acompanhou durante todo o intervalo, me fazendo aquelas perguntas sem sentido de alguém que queria puxar assunto. Eu respondia com monossílabos “sim” “não” “talvez”. Na esperança de que ele fosse embora. As pessoas olhavam para ele, talvez se perguntassem por que ele estava falando comigo, apenas dessa vez eu pensava como elas, e me perguntava o mesmo.

–Você gosta de que tipo de música? – Ele perguntou, talvez tivesse entrado em um contexto antes, mas não estava prestando atenção em suas palavras. Mas aquela me chamou atenção, afinal não poderia responder com “sim” ou “não”.

–Clássica. – Respondi, obviamente esperava que ele não respondesse.

–Ah sim, “permanecer o mais perto possível do século XIX”. – riu ele, repetindo minhas palavras- Minha amiga diz que quando você quer conhecer algo, tem que começar com os clássicos.

–É. Talvez até parar por aí.

Ele riu.

–Ah, existem outras músicas boas. Eu gosto de Radiohead. Conhece?

Se eu ainda tivesse um coração ele teria parado de bater naquele momento, foi um baque. Eu lembro daquele som, aquela melodia lenta começou a tocar nos meus ouvidos, como se eu estivesse lá ainda. Maldito seja esse tal de Leonardo Vieira. O desejo pela porta secreta que me fizesse sumir dali apenas aumentou.

–Não. – menti.

–Eu tenho uma mixtape com uma das minhas favoritas, tenho certeza que você vai gostar. – Ele me entregou uma fita. Eu quase não consegui pegá-la. Mas o fiz, por educação. Insustentavelmente leve era aquela fita, quase a derrubei.

Hoje parece mentira que aquelas mesmas músicas aprisionadas naquela fita eram as que tocavam na casa dele. Eu nunca mais passei por lá, a mãe dele me chamou, mas eu não aguentaria olhar, sentir aquele cheiro de morte. Certamente a casa dele não está mais silenciosa. Flávia se casara de novo. Queria ser forte como ela, ela me visitava, ria com aquele humor sem amargura, era dali que Jorge tinha herdado tanta felicidade. Me lembro dela me segurando no dia em que resolvi voar pela janela. Fico agora imaginando como seria a queda, meu impulso pelo parapeito, meu corpo voando no mesmo vazio que ele encontrou. Aquele mesmo cheiro amadeirado do perfume que ele me dera. Restam poucas gotas hoje, uso duas por dia, mas é forte o suficiente para que eu sinta aquela presença. O cheiro iria como um rastro, me envolvendo no ar enquanto caía. As vezes penso se não seria melhor se Flávia não tivesse me segurado. Talvez pudesse voar com Jorge. Não abro a janela desde então. Apesar de Lígia insistir tanto, não entendo por que ela se importa com a quantidade de luz que entra no meu quarto, vai estar escuro do mesmo jeito.

Leonardo se despediu de mim, me acompanhara até em casa, me perguntava se ele não compreendia meus sinais de desinteresse. Abandonei-o a porta de casa. Ele sorriu. Droga, era inevitável sorrir quando ele sorria. Eu cheguei a pensar que meus músculos faciais não funcionavam, mas era involuntário. Impossível não sorrir. Curvei meus lábios levemente, parando quando percebi. Entrei, não resisti, coloquei a fita no rádio. As lágrimas correram de meus olhos. A imagem do estúdio improvisado na garagem de Jorge me veio à mente. Aquela música tocava, o cheiro de tinta impregnava o ar, era tão quente. Ele me fez borrar uma pintura, joguei tinta nele em retribuição, logo estávamos no chão, beijávamos sobre os jornais e folhas de rascunho, o sangue fervia. Me lembrava dos nossos desenhos. Mandei Flávia jogar tudo fora. Depois me veio um remorso. Agora só haviam demônios em meus cadernos. Imaginei onde Jorge estava, ardia no inferno segundo meu pai. Me lembro dele comemorando a morte de Jorge, ordenando que eu não chorasse. Dizia que era coisa de fresco. Me lembro de como ele chamava Jorge: “sodomita”. Não dizia “veado” nem “bicha”, “sodomita” era a palavra que escolhera. Me impressiona como ele menciona aquelas escrituras velhas para me ameaçar. Se elas realmente valessem, meu pai também merecia o fogo eterno.

Imaginava Jorge no inferno, entre os demônios e monstros dos meus desenhos. Eu me lembro dele lendo a divina comédia. Havia um capítulo que dizia que os sodomitas estavam condenados a vagar pelas areias quentes de um deserto. Perguntei se era isso que aconteceria, ele disse que seria divertido caminhar nas dunas de mãos dadas. A gente podia pegar um bronze. Nunca levara nada a sério. Ele me fazia rir. Eu tento imaginar onde estaria Jorge agora, um sorriso me vem à mente.


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Notas finais do capítulo

Hey, o que estão achando ? Preciso de comentários haha, qualquer duvida/sugestão/ elogio é bem vindo, então não deixem de comentar! Beijos e até mais.