Escarlate escrita por Nayou Hoshino


Capítulo 5
Centelha de Interesse




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— Aqui está sua cerveja… — A mulher se inclinou sobre a mesa de Fataliz, fazendo questão de mostrar bem seu decote que foi friamente ignorado por ele. — Você não é daqui, é?

Ele pegou a caneca, dando uma longa golada no líquido que desceu amargando sua garganta. Fazia tempo que não bebia algo tão ruim… Mas era de se esperar de um lugar assim. Observou as mesas mal organizadas e bambas cercadas por homens mal encarados e mal cuidados, nem as garçonetes eram agradáveis de se olhar, a bebida não ia fugir do padrão.

Deu outra golada mesmo assim, sua mente estava rápida demais para simplesmente sentar e aguentar um turbilhão de pensamentos sem uma bebida. Luna estava sendo procurada e estavam oferecendo um preço alto pela cabeça dela. O ataque repentino dos mercenários finalmente começara a fazer sentido… Então eles estavam atrás dela e não dele. Já havia a largado na floresta, agora era só seguir em frente e fingir que nada tinha acontecido. Certo?

Ele apertou os olhos, surpreendendo-se com sua capacidade de ter tido um pensamento assim. Ele devia a vida a ela e iria protegê-la até seu débito ser pago. É. Isso mesmo. Sem segundas ou terceiras intenções.

O moreno levantou o olhar, a mulher que lhe servira ainda estava ali encarando-o e deixando seu decote cada vez mais evidente, talvez aquilo fosse mais do que apenas um bar no fim das contas. Se estivesse com mais tempo e com um humor melhor poderia até aliviar a tensão, se ela colocasse um saco na cabeça ia ajudar também. Ele bufou impaciente, percebendo que ela não o deixaria em paz.

— Que tal um tour noturno pela cidade, hum? — Ela passava a unha pelo braço nu dele, enrolando uma mecha de cabelo acobreado no dedo. — Tenho certeza de que irá gostar e…

— Sabe o que é isso? — Ele mostrou o panfleto a ela, que revirou os olhos

— Hum… um cartaz de procurada? — ela bufou em tom irônico, logo complementando ao ver a expressão nada simpática e impaciente no rosto dele:  — ouvi dizer que essa pirralha mimada se meteu com gente barra pesada... Ela aprontou com eles e agora querem seu pescoço, é assim que Pan Gu funciona...

A mulher deu de ombros e encarou Fataliz, insatisfeita por estar sendo ignorada de tal forma. Ele só deu mais uma golada na bebida, as informações não tinham ajudado muito, mas, se eles realmente tinham sido atacados por mercenários, Luna estava realmente encrencada. E o que ela quis dizer com a feiticeira ser mimada? Será que ela era importante em algum lugar que ele ainda não conhecia? Dificilmente… Uma olhada ao redor bastou para concluir que até ele pareceria mimado em comparação às outras pessoas dali.

Um barulho de copos quebrando atraiu sua atenção e ele olhou por sobre o ombro da garçonete, dois homens estavam tendo uma discussão acalorada sobre de quem era a vez com a moça que os servia. Não demorou a deduzir que eles deveriam estar se referindo a um atendimento especial.

A mesa estava virada com os pés para cima e tinha uma grande quantidade de liquido derramado no chão com uma quantidade ainda maior de cacos de vidro flutuando sobre ele. Uma situação normal em lugares com grande concentração de homens bêbados, ele sabia.

Não adiantava ter a bebida se não conseguia pensar, então se levantou e mencionou ir até a saída, quando foi agarrado pela mulher, que abraçava seu braço.

— Ei, não é porque você é bonito que pode sair sem pagar... — Ela enfiava as unhas na carne do braço dele, tentando seduzi-lo e provocá-lo ao mesmo tempo, mas só conseguiu irritá-lo mais.

— Veja o que consegue fazer com isso.

Ele tirou algumas moedas de prata do bolso e jogou-as, uma a uma, dentro do decote dela, que finalmente afrouxou o abraço ao sentir as moedas geladas contra seu corpo. Foi o suficiente, ele puxou o braço de volta e poucos segundos depois já estava saindo do bar, as ruas cada vez mais vazias. O chão de terra era compacto e sem buracos, aquele parecia um bom lugar para se morar, com todas as casas alinhadas e fracamente iluminadas…

Enquanto caminhava, analisou as construções simples, algumas casas tinham alguns animais em seus quintais, um porco grunhiu para confirmar sua presença ali. O guerreiro não se encaixava mais em um lugar assim, isso era certeza.

Fataliz segurava uma bolsa de couro com alguns medicamentos — fruto de um flerte com a mulher que cuidava da farmácia — que levaria à Luna.

Ele sentia uma enorme vontade de vê-la e saber mais sobre ela, era como se ela fosse um animal raro e misterioso ao qual somente ele tinha acesso. Ele gostava dessa sensação. Fazia tempo que algo não merecia seu interesse dessa forma, ainda mais esse algo tendo um par de seios e uma curiosidade irritantemente insaciável. Repensou uma ou duas vezes se aquilo não era só seu lado homem, animal, falando mais alto…

Riu, achando-se um idiota, e prosseguiu até onde tinha deixado a garota, certificando-se de que não estava sendo seguido. Alguns homens naquele bar venderiam as próprias famílias por mais um copo de bebida, o que não fariam com uma feiticeira que sequer conheciam? A missão de protegê-la tornara-se um pouco mais complexa e seu instinto de guerreiro praticamente gritava a favor da guerra onde ele podia estar entrando. Nem ele tinha sido digno de receber atenção dos mercenários, o que sua companheira tinha feito de tão ruim?

As luzes da vila ficavam bem mais fracas e logo ele se viu em meio à escuridão por um breve momento, mas em seguida uma chama fraca iluminou uma pequena trilha em meio às árvores largas e de folhas altas. Seguiu o caminho indicado e não demorou a avistar Luna recostada em um dos troncos das árvores, ela ainda estava lá, brincando de chutar os restos das frutas que comera enquanto esperava… Não sabia que uma mulher tão pequena podia comer tanto.

— Você demorou... — ela bufou entediada, fungando e encarando-o com raiva em seguida. Homens são sempre homens afinal, bastava uma bebida para se distrair de seus objetivos… Ela cruzou os braços com força.

— Dá um tempo... — Ele jogou a bolsa para ela, que quase não a agarrou.  — Vamos ter que passar a noite aqui.

Ela assentiu em silêncio enquanto analisava o conteúdo da bolsa, sequer contestou. Isso fez com que o moreno estranhasse, Talvez ela já soubesse sobre os cartazes, pensou, sem tirar os olhos dela. Ela não parecia o tipo de pessoa que se misturaria aos mercenários, muito menos o tipo que seria uma ameaça para eles... algo não se encaixava.

Sabia que quanto mais a conhecesse, mais poderia acabar se ligando à ela e, consequentemente, complicando sua vida. Pobre dela se tentasse enfeitiçá-lo ou algo do gênero, levaria ela pessoalmente pro mundo dos mortos. E não estaria sendo exagerado...

— O que você é? — Ele finalmente se rendeu à curiosidade, encarando-a com atenção.

— Perdão? — Ela desviou o olhar dos objetos que pegara e o encarou confusa, algo na forma como ele falou lhe deu medo. Lembrava-se vagamente de já ter ouvido esse tom e essas palavras no seu passado, o que se seguiu não foi bom...

— Pensei que você não passasse de uma feiticeira desgarrada... — Ele estendeu o panfleto na sua frente, prosseguindo — Mas parece que você é bem mais interessante.

Luna praticamente arrancou o panfleto da mão dele, analisando cada parte e cada palavra. Não sabia que tinham tornado sua caçada por ela pública, agora ela tinha todo e cada homem e mulher de PanGu como seu inimigo? Aquilo era pra valer? Era mais fácil voltar para eles por conta própria e aceitar as consequências dos seus atos. A recompensa por sua cabeça era pavorosa, eles estavam dispostos a pagar tanto assim por ela? E se estavam...

Ela encarou o moreno assustada, afastando-se dele e sacando a espada rapidamente. Qualquer um mataria até a própria mãe por uma quantia daquelas... e ela sabia bem que ele não era nem um pouco sentimental. Que guerreiro não desejaria uma quantia daquelas para gastar com bebidas, armas e mulheres?

Então não teria nenhum problema em enfiar sua espada bem fundo no peito dele se fosse preciso. A falta de armadura facilitava e muito sua intenção...

— Eu não quero sua cabeça, pode relaxar... — Ele não se moveu, os olhos negros como um abismo sem fim encaravam Luna atensiosamente. — Então, o que você é?

Ela se manteve na mesma posição, encarando-o num misto de medo e surpresa. Era bem corajoso da parte dele não ter movido um músculo diante de tal situação, nem mesmo um passo assustado para trás. Ele... não queria entregá-la? O que isso deveria significar?

Ela abaixou um pouco a espada, o olhar ainda atento a qualquer ameaça.

— Eu... — ela gaguejou um pouco, nunca tinham mostrado nenhum interesse em seu passado nem em nada do gênero. E ter alguém como Fataliz interessado era um pouco... arrepiante. Ela pigarreou antes de prosseguir. — Eu não sou bem uma feiticeira... E eles sabiam disso.

— Eles?

— Os mercenários. — Ela guardou a espada, sem tirar os olhos dele. — Me usaram para conseguir grande parte do que têm hoje... Eles... Eles sabem como despertar algo em mim, algo ruim.

— Ruim quanto? — Ele ergueu uma das sobrancelhas, curioso com o rumo que a conversa tomava.

— Ruim o bastante pra dizimar por completo as vilas próximas ao território deles. — Ela desviou o olhar e o moreno podia jurar que tinha visto um ar de arrependimento e dor naquele intenso mar azul.

Ele se lembrava agora, os comentários que ouvira quando passou pelos restos de uma vila alguns meses atrás... Diziam algo sobre a misteriosa ascensão dos mercenários ter ligação com o que eles descreviam como uma succubus. A garota à sua frente não batia em nada com a descrição de um ser sensual e cruel...

Do contrário, seu corpo até tinha curvas, mas não era dos mais avantajados.

Já vi melhores, ele passou a mão pelos cabelos, envergonhado com o próprio pensamento. Mas ela mesma tinha acabado de confessar, era dela que falavam. Ele só não entendia porque os mercenários escolheriam ela e não uma feiticeira de alto escalão para ajudar em seus planos, nem como eles se empenharam tanto ao ponto de descobrir como Luna funcionava, por assim dizer. Eles sabiam de algo a mais, algo que nem ela própria sabia…

Voltou o olhar para ela, imaginar teorias e mais teorias não o levaria para lugar algum. Seu pensamento lógico de guerra não lhe era útil nesse caso em especial.

Luna fazia caretas enquanto tratava do próprio ferimento, o álcool queimando sua pele e sua carne coberta de sangue ressecado, logo bufou e começou a tentar enfaixá-lo usando apenas uma mão. Seu orgulho a impedia de simplesmente fazer cara de cachorrinho pidão e estender a mão para o homem a sua frente realizar o serviço. Seu orgulho e o pouco de honra que ainda julgava ter, na verdade.

Mas Fataliz se levantou e se aproximou dela, sentando-se ao seu lado na terra sem se importar em retirar alguns galhos e folhas secas antes. Pegou sua mão com cuidado para ajudar, fazendo com que ela se encolhesse um pouco e fizesse uma careta discreta, em parte pela surpresa e em parte pela dor. Não sabia se ele estava ajudando-a por pena ou por obrigação, mas não estava em condições de recusar. Já que ele tinha tomado a iniciativa, não era tão errado dar-lhe uma chance. Embora estivesse meio receosa com os acontecimentos no acampamento mais cedo, o moreno estava fazendo o possível para tratá-la bem, então...

A lua brilhava alto no céu, seus raios preenchendo timidamente os espaços entre as árvores e alcançando os dois, que criavam um acordo silencioso em meio às ataduras e o álcool. O moreno enrolava com cuidado a mão dela, sentindo um poco de sangue escorrer por suas mãos, e sentia ela desviar o olhar dele, certamente envergonhada por seu passado estar lhe perseguindo.

Ergueu um pouco o olhar e admirou por um segundo a feiticeira à sua frente, seus olhos sendo surpreendidos pelo forte prateado que seu cabelo refletia por conta da luz da lua e pelo azul intenso que seus olhos emanavam mesmo com toda a escuridão em volta deles.

— Trouxe algo para você. — A voz de Fataliz era rouca, o que fez com que ele pigarreasse para se recompor. Ele puxou uma pequena garrafa da lateral de sua calça e a entregou à Luna, que sequer tinha percebido sua existência até agora. — Achei que fosse precisar.

Ela pegou a garrafa, ainda meio desajeitada pela falta de firmeza em sua mão ferida, e a abriu, aproximando-a do nariz. Rum. Estaria ele tentando deixá-la bêbada para só então entregá-la? Ou algo pior...?

Tentando não parecer desconfiada, ela levantou o olhar para o moreno. Nunca vira um olhar tão sincero em seu rosto e, pela primeira vez, aqueles olhos negros não pareceram tão ameaçadores. Seria um problema ela confiar em alguém de novo? Confiar nele? As perguntas de segurança rondaram sua cabeça por um momento. Quer saber? dane-se, ela suspirou consigo mesma, decidida a correr o risco e dando uma longa golada. Quem se importava em manter o fígado funcionando com o risco de morte iminente cada vez maior?

A bebida queimou sua garganta ao descer, mas o calor que ela deixava onde passava era reconfortante. Pela primeira vez em semanas Luna se sentia quente e confortável, e até conseguiu esquecer a dor que tomara conta da sua mão momentos antes. Ela encostou as costas no tronco atrás de si e virou a garrafa, cada vez mais sedenta por aquela sensação que tomava conta dela.

Lembrou-se de seu mestre e da primeira vez que colocou uma gota de álcool na boca, fora praticamente obrigada, assim como todas as outras vezes que se seguiram. Por um lado, a bebida a ajudava a sair de seu corpo quando preciso, garantindo que ela estivesse bem longe quando as mãos dele passeassem casualmente por seu corpo. Mas não podia se dar ao luxo de reclamar. Aquele homem foi o primeiro a lhe dar abrigo, segurança e comida, além de lhe ensinar tudo o que ela sabia hoje… Era uma forma de pagamento, certo?

— Você é minha propriedade, entendeu bem? — a voz dele ecoou na mente dela, fazendo-a se arrepiar e dar uma golada ainda mais ávida na bebida.

A garrafa já estava vazia quando ela parou e suspirou com um sorriso. O ar frio da noite queimou seus pulmões ao ser sugado com força de uma só vez. Os olhos marejados e intensos misturavam a cor vibrante das chamas fracas com o resto do ambiente, mas instintivamente se fixaram nos do moreno, que a encarava incrédulo com o que tinha feito. Ela literalmente virara meia garrafa de rum de uma só vez. E agora estava o encarando desse jeito... Estava se levantando um pouco... Estava se aproximando...

— Obrigada... — ela disse quando finalmente o alcançou e laçou-o com os braços, enterrando o rosto em seu pescoço rígido.

— Err… De nada? — O moreno não sabia o que fazer com as mãos. O recomendável a se fazer nessas horas seria abraçá-la, certo? É isso que as pessoas normalmente fazem...

— Sabe… — Ela sentia o rosto quente, mas não sabia se era por conta da bebida ou pela situação em si. O corpo quente do moreno contrastava com o ar frio que batia em sua nuca, causando uma sensação agradável. — Você até que é gentil para um homem… Mas não vá pensando que eu vou aceitar fazer coisas com você por isso.

Ele não pôde conter uma risada. A forma como ela disse aquilo, como se as ações dele merecessem algo em troca, como uma recompensa ou algo do gênero. O que estaria se passando na cabeça dela para dizer algo assim? Será que era com esse tipo de relação que ela estava acostumada? A ser usada física e mentalmente? Era bem o tipo de coisa que pessoas como os mercenários fariam. Até mesmo ele conseguia imaginar como deve ter sido viver nas mãos deles, homens que não dão valor a nenhum tipo de vida. Não eram guerreiros, não. Guerreiros ao menos tem honra… Mas… Ainda se podia ter algo assim nessa guerra?

— Escuta… — ele começou, tentando explicar que… bem, que ele não era esse tipo de pessoa.

Ela enterrou mais o rosto no pescoço dele, mantendo-se segura ali. Não se lembrava de quando tinha abraçado alguém pela última vez sem que estivesse seguindo uma ordem específica de manipulação. Mas ali estava ela, totalmente vulnerável com as memórias que a bebida tinha trago de volta.

Ela está alta, ele disse a si mesmo, tentando ignorar o tom sincero que preenchia as palavras dela. Foi quando sentiu algo quente em seu pescoço, ela estava... chorando? Ele suspirou e, mesmo sem saber por que, colocou seus braços ao redor dela, sentindo-a desmoronar em seus braços com um só toque.

No fundo, ambos sabiam que algo acabara de começar. Não podiam mais fugir.




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