Sangue Divino escrita por Bianca Bittencourt


Capítulo 20
Cap. 20 – Encruzilhada.


Notas iniciais do capítulo

Boa noite!



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A forma vai se tornando cada vez mais nítida enquanto se aproxima. É definitivamente uma mulher. Um extinto dentro de mim grita que eu devia estar apavorada e correndo, pode ser Nyx. Permaneço calma. Movo as mãos, abrindo e fechando, só para ter certeza de que não paralisei. Ainda consigo me movimentar, deve ser bom sinal. Nathan segura o cabo da espada com tanta força que os nós de seus dedos estão brancos.

A mulher se aproxima o bastante para que possamos vê-la completamente. Ao seu lado tem um cachorro negro e uma... doninha? Ela veste uma longa túnica de roxo safira um pouco mais escuro. Sua figura tremula e ela se divide em três, depois volta ao normal. Sophie arfa.

–Hécate. –Sussurro.

–Estavam esperando a mim? –Indaga a deusa.

–Não exatamente. –Murmuro.

Deusa Inesperada. Encruzilhada. Droga, como não percebi?

–Bom, escolhi visita-los. Senti grandes dúvidas aqui, senti que deveria vir até esse lugar, então é porque podem auxílio.

–Sim. Relmente preci... –Diz Sophie.

–Conheço sua história, -continua Hécate, ingnorando completamente Sophie e se virando para mim- Courtney Marie Jackson. O que espera com essa missão? Que seu passado desapareça? –A doninha gira em torno dos calcanhares da deusa.

–Não. –Digo. Levanto o rosto e a encaro. Essa mulher pode ser uma deusa, mas se ela veio aqui para rir da minha cara não vou simplesmente deixar. –Não quero voltar atrás, só quero consertar alguns aspectos da minha vida.

–Como...? –Hécate questiona.

–Que tal... o de eu não poder ficar perto dos meus pais sem adoecer, ou melhor, aquele em que me fizeram imortal sem pedir?!

Nathan e Sophie trocam olhares alarmados. Não posso explicar à eles agora, nem dar atenção ao que estão fazendo, mas poderia jurar que não largaram as armas.

–Os deuses andam incomodados com sua ingratidão, Courtney. Negando uma benção tão grande, assim como fez seu pai. –Ela diz balançando a cabeça, com uma expressão amargurada. O cão dá um latido prolongado e agudo... na verdade, pelo que me lembro deve ser uma cachorra.

–É minha culpa querer ser normal? Querer ter uma família um dia? Querer ter uma vida de verdade? É minha culpa não quer ter responsabilidades eternas com a humanidade? –Questiono furiosa. Lágrimas de raiva ameaçam descer pelo meu rosto, mas eu não me importo. Sophie se aproxima e coloca a mão no meu ombro, me tranquilizando, está me lembrando que está aqui.

–Não mencionei que alguém tenha culpa. –Ela diz em tom calmo. -A vida é feita de escolhas. Essa é a graça. –Não acho a mínima graça. Afasto a mão de Sophie com delicadeza e me aproximo de Hécate.

–Ah, é claro, Nyx é completamente inocente, um anjo de deusa que me amaldiçoou antes de eu ao menos nascer! –Hécate só pode estar caçoando de mim com toda essa calmaria...

–Nyx... a sua encruzilhada, é ai que eu supostamente deveria chegar.

–Você pode consertar o que ela fez? –Pergunto ansiosa.

–Oh, não. –E a animação despenca. –Há pouco que o divino possa fazer contra o divino. O que foi feito não pode ser desfeito. -Ela disse isso em um tom até mais dócil, não parece má, só dura e... misteriosa, parecia dizer algo mais, algo nas entrelinhas.

–E veio aqui para isso? Dizer que não posso mudar nada? Muito obrigada então. –Ironizo.

–Não disse nada sobre mudar. Disse desfazer. –Hãm? –Mas estou aqui para lhe oferecer uma escolha. Um atalho. Você quer Nyx, então a ela terá. A pergunta é, é o que você quer?

Penso um segundo apenas antes de responder o mais firme que consigo:

–Sim.

–Pois então, minha parte será feita. Tenham uma boa noite. –Que sorrisinho foi esse que ela esboçou ao dizer “boa”?

Toda a névoa recua e envolve a deusa e seus bichinhos. Um redemoinho de névoa se forma em torno dos três e começa a girar numa velocidade furiosa. E então... desaparece. Simplesmente desaparece. O redemoinho, a deusa e os animais.

–Que droga foi isso? –Indaga Nathan com os olhos arregalados. Ele se vira para mim. –Sabe o que ela quis dizer?

–Não faço a mínima ideia. –Respondo relutante.

–Maravilha. –Diz Sophie.

Abaixo a cabeça. Minha mente grita exatamente o que Nathan acabou de indagar. “Que droga foi essa?” . Pelos deuses, tenho certeza que ela falou mais do que disse, se é que isso faz algum sentido, só... tenho certeza que haviam entrelinhas. Desfazer... mudar... o que significa? Minha mente gira. Odeio não saber, não é da minha natureza.

–O que será que ela vai fazer? Ela disse que tem uma parte nisso tudo.

–Não sei. –Novamente.

–Está na profecia. Nyx, A Noite. –Constata Sophie. -Court, do que você estava falando sobre Nyx e sua maldi...?

–Por que não descansam agora? Acho que isso foi um sinal de que devemos partir logo cedo. –Diz Nathan contando-a. Agradeço ele mentalmente, ele obviamente está me salvando de responder isso agora, já deve ter ouvido sobre, afinal ele passou tanto tempo com o meu pai, enquanto eu achava que ele poderia estar morto... esse pensamento faz toda simpatia que desenvolvi por ele, por ter feito essa pergunta, virar fumaça.

Eu estou bem descansada, ou acho que estou, minha cabeça pulsa tanto que descansar parece maravilhoso mesmo assim.

–Você também tem que descansar. –Digo. Porque estou lembrando dele agora? Eu não me importo. O que está acontecendo comigo? Deve ser a semi-inconsciência. Ainda assim, eu continuo: -Fica de vigia Sophie?

–Claro. –Ela responde depois de um tempo pensando, provavelmente, se deveria perguntar de novo o que queria saber e escolher que era melhor ficar calada.

Vou até o mesmo canto em que dormi antes com Sophie e me deito.

Meu sonho é estranho. Estou de frente à um palácio negro gigante que desaparece por uma névoa preta. Agora estou em um corredor e uma sombra cresce a minha frente, a forma não é como a de Hécate, parece mais bruta, mais má. A sombra ri, é uma risada áspera, fria. Tudo some e eu me vejo só em meio a um cenário completamente branco. Duas portas rusticas em forma de um arco de pedra entalhado de símbolos surgem do nada. Abro e entro. Um clarão percorre o ambiente e ele se torna nítido, parece que estou na recepção de um manicômio, piso cinza, paredes brancas e cortinas creme. Corro vagando por um labirinto de corredores, há diversas portas brancas pela parede, como quartos, mas de alguma maneira sei que não é isso que procuro.

Corro pelo que parecem horas, até que paro diante de uma porta que contém uma plaquinha de aço onde está escrito: “Subconsciente. Análise”. Eu sei o que significa, vou entrar na parte que analisa inconscientemente do meu cérebro. Estou vagando pela minha mente em busca de respostas, porque sei que eu as tenho. Como sei disso? Isso já não sei. Giro a maçaneta e entro.

Meu subconsciente está representado como uma salinha com paredes revestidas de preto e cobertas de inscrições em prata. Não sei o que eu esperava, mas com certeza isso é inusitado. As inscrições são do tamanho em que escreveria numa folha de papel comum, estão escritas em todas as direções e tem a minha letra. Começo a passar o dedo por elas e procurar. Nem sei o que estou procurando, mas meu olhar vasculha o lugar e pousa fixo em uma inscrição com um leve brilho a mais. Vou até ela.

Está escrito “Desfazer é impossível”. E então meu olhar vai ziguezagueando pela sala, seguindo as mensagens que se destacam, brilham e apagam. Elas dizem: “O que é imposto não é concedido”, “É impossível voltar no tempo”, “A maldição da Noite lhe foi imposta, assim como a imortalidade”, “O imposto é mutável, muda ao longo da história, se adequa a necessidade e quem governa”, “O lugar com o céu mais escuro e nítido do mundo”. E então, meu olhar pousa em uma palavra, não é uma frase, é apenas uma palavra, não tem um suave brilho perolado que a destaca como as outras, ela brilha intensamente, um holofote lilás com a palavra “Mudar”. A palavra cresce até ocupar a parede toda, todas as outras inscrições somem e apenas ela consome a parede, nos quatro lados, parece uma sala de espelhos onde eu não sei qual é a verdadeira parede e quais são espelhos, pois estou bem no centro.

Tudo racha e começa a tremular, pedaços aleatórias começam a desaparecer aos poucos e deixar branco no lugar, parece um jogo de bloquinhos, some um aqui, um ali.

E então eu me levanto, sentando subitamente e arfando como se tivesse sonhado que me afogava. Os olhos de Nathan, que estava deitado a aproximadamente um metro de mim, se abrem, ou ele tem sono muito leve ou não estava dormindo, mas isso não é importante.

Hécate veio ajudar. Veio dizer que vai ajudar. E deixou claro que há uma saída. Como não percebi?

–Marie? Você está bem? –Pergunta Nathan assustado... assustado. Ele está com cara de... preocupado? Comigo? Desse jeito? O universo virou de ponta cabeça, só pode.

–Melhor impossível. –Respondo me virando para encara-lo nos olhos. –Eu entendi. Entendi o que ela quis dizer. Entendi tudo. Ou, quase tudo.

–Serio? –Ele indaga, se sentando também, subitamente sério. Os olhos parem ficar negros, a escuridão consome todo o azul. –Resuma o que importa. –Ele pede.

–Está bem. O que importa é que há uma saída, não sei a ligação da saída com Nyx, mas obviamente temos que achar a Deusa da Noite. Tenho uma ideia de onde Nyx pode estar, aqui na Terra mesmo. E, Hécate vai nos ajudar de alguma forma, vamos saber como pela manhã.

–Tem certeza de tudo isso?

–Absoluta. –“E nunca estive mais feliz por saber” acrescento mentalmente.

–Isso é bom. Só temos que estar vivos até de manhã. Não deve ser difícil. –E como se esperasse a deixa, Sophie grita, um grito alto a aterrorizado. Nathan contrai o rosto, apertando os olhos. –Não deveria. Não acho que essa seja a ajuda, não é mesmo?

–É.

O susto por ouvir Sophie gritar me impede de sorrir, apesar de ter soado meio cômico. Nathan não espera nem mais um segundo, pega a espada dupla, pula para cima e sai correndo. Pego dois shurikens e os seguro, um com cada mão, e também desato a correr.

Não precisei chegar muito perto para ver a coisa. Sophie corre de um felino negro enorme, com chifres e escamas de dragão, o corpo é coberto por uma crista de espinhos de cobre e ele tem um rabo de peixe. Parece uma pantera-peixe... não, eu sei o que é, é uma Pantera D’Água um Mishepishu. Ótimo, lembro do nome, isso não me ajuda a mata-lo, mas pelo que lembro não é fácil.

Atiro um shuriken na cauda do monstro, é inútil, simplesmente ricocheteia. Se bronze celestial não fere essa coisa o que fere? Aparentemente não é ouro imperial, porque Nathan não está se saindo muito bem, a pantera gigante nem sangra. Sophie parou de recuar para olhar assustada, Nathan se colocou entre ela e o monstro, se continuar assim, não vai servir de nada.

O barulho que o animal faz rugindo é infernal. Encaro Sophie que, quando percebe, gesticula exageradamente para mim, pelo menos consigo entender, a mensagem é curta: “O Chicote”. Ela tem razão, esse chicote é feito de diversos materiais, se algo pode ferir essa coisa tem que ser o chicote de Sophie. Mas infelizmente ela devia estar afastada dele quando o monstro atacou porque ela aponta para frente me mostrando que o chicote está em cima de uma pedra, longe dela, mas não do monstro. Não temos opção. Tenho que pegar o chicote.

Começo a correr em direção ao chicote, consigo ouvir o eco de um grito, é Sophie, “Não!”. Observo Nathan lutar enquanto corro, ele golpeia o monstro para se defender, usando a espada como escudo quando o monstro ataca, digamos que se a pantera gigante resolver morder ele agora, não há como salvá-lo. Quando ele ouve Sophie, também se vira para me ver e a expressão que vejo em seu rosto é aterrorizada, é tão sinceramente preocupado que hesito por um segundo, mas não posso parar, temos que ter chance de sair dessa.

Consigo chegar à pedra e agarrar o chicote. Amarro ele em circulo para que o lançamento funcione. Jogo o chicote como um disco de frisbee para Sophie, a pontaria não foi tão certa como de costume, mas foi o suficiente para que se deslocando um pouco ela pudesse pegar. Começo a voltar, sem nem olhar para trás. Ouço um rugido e corro mais rápido, obviamente, não o bastante. Quando vou desviar de uma árvore duas patas negras gigantes se colocam a minha esquerda e a minha direita, me cercando.

O monstro está em cima de mim. Foi distraído pela minha correria. Está em cima de mim como um gato que encurrala um rato no canto do cômodo, escamas eriçadas e patas da frente levemente flexionadas. Nunca pensei em morrer como um rato. Observo que um galho me feriu. Sangue escorre pelo meu braço. Sangue vermelho. Sangue mortal. Não vou me curar, posso ser machucada, e mesmo assim não consigo evitar estar feliz por ser normal, ou pelo menos mortal.

Sophie enrola o chicote na pata do animal e puxa de volta. O mishepishu se deslocou alguns centímetros para o lado, mas não se machucou. O chicote não feriu ele. Essa coisa é indestrutível? Maravilha. Vou morrer como um rato.

Nathan lança a espada como um bumerangue, e ela ricocheteia a toda velocidade e ele tem que agachar para não ser decapitado pela própria espada. Mesmo depois de quase morrer ele não se deixa abalar e começa a correr na minha direção. O que ele pretende fazer? Se colocar na minha frente? Por que ele tem que ser tão idiota? Ele vai se matar! Mas que droga, eu não quero que esse panaca se machuque!... Esse pensamento foi inesperado.

A filha de Afrodite não desiste, continua atacando furiosamente a besta gigante que não liga. A Pantera D’Água levanta a pata exibindo as unhas hiper afiadas. Constato que Nathan não tem como chegar a tempo de se colocar na minha frente. Ainda bem.

Ouço as ondas baterem ao longe. Ondas. Mar. Eu posso... não. Não vou fazer isso. Estou finalmente conseguindo controlar meus poderes e meu sangue não está mais como o dos imortais, não vou estragar isso. Eu prefiro morrer a ser eterna, simples assim. Prefiro morrer a usar meus poderes. Prefiro morrer. E provavelmente vou. Vou ser cortada em quatro pedaços. Fecho os olhos.


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Notas finais do capítulo

E enquanto isso, Lola McLean monta um hipocampo, voltando para o acampamento depois de ter a noite mais linda que poderia sonhar.



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