Meu Querido Abandono escrita por Sir AKs


Capítulo 1
Eu Lembrei De Te Esquecer


Notas iniciais do capítulo

"Eu amo tudo o que foi
Tudo o que já não é
A dor que já me não dói
A antiga e errônea fé
O ontem que a dor deixou,
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia."

— Fernando Pessoa.



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Eu me lembro dos seus lábios pressionados contra o meu pescoço - ainda tenho algumas marcas. Assim como lembro de ter jurado a mim mesmo que não te aceitaria de volta. Mas quem jura mente, quem jura cede. E peço que não pense que a culpa é minha de ter um coração mole e engraçado, que me trai constantemente num passo abafado.

Eu me lembro de todas as primaveras e de todas as camélias que eu te dei. Você as deixou morrer de sede, assim como está me deixando morrer de amor. E você sabe - eu sei que sabe - que eu passaria todas as primaveras com você, escutando um disco velho de MPB e vendo o sol nascer. Por isso não é justo que você me trancafie neste inverno, onde tudo parece tão infernal. Embora eu tenha a total consciência de que você não gastaria comigo um Natal.

Você me disse que era eterno e que eu não sentiria dor. Eu me entreguei de todo e deixei-me a teu bel prazer, revelando partes de mim que eu nem me dei ao trabalho de conhecer. Porém, você se escondeu em cachecóis compridos, metidos à cacharrel. Não quis me mostrar seus ossos, nem quem você era depois das dez. Talvez você tivesse medo de descobrir a si mesma, ou talvez só fosse mais um de seus caprichos egoístas.

Mas eu me lembro de como sua voz ficava rouca depois de nossas brincadeiras, e de como você bocejava quando voltávamos de nossas andanças noturnas. Você gostava do cheiro das flores desabrochando à noite, e também de saltitar de camisola pela rua deserta. Todo o mundo parecia parar só para que você pudesse cantar aquela canção já tão gasta em suas cordas vocais exaustas. Eu sinto falta dela me embalando o sono... "Are you okay tonight, or pretend to be?".

Aquele moletom que você esqueceu aqui ainda continua pendurado no varal da lavanderia, junto com suas roupas íntimas - você disse que eram uma lembrança. O que mais você largou aqui além de mim? Eu nunca estive tão desesperado para encontrar partes suas como estou agora. Quem sabe um dia eu perceba que não vale a pena tentar te reconstruir dentro de mim.

Sinto-me vazio como os copos sujos na pia, inútil como os porta-retratos sobre a mesinha de centro da sala. É isso o que você provoca em mim. No entanto, nem deve perceber isso, enquanto ignora minhas mensagens e ligações. Poderia pelo menos me dizer se acabou? Porque talvez meu corpo não aguente, e eu definhe antes de você ver como estou.

Não quero parecer fraco, mas não há como desaperceber-se da falta de calor na outra metade da cama. As xícaras de café coloridas, os beija-flores e o som do seu alarme também não invadem minhas manhãs faz uns dias. Sou só eu e o silêncio, as buzinas dos carros lá fora e as árvores conversando sozinhas. Então eu me pergunto quanto tempo. Quanto tempo até você deixar de manha e voltar para debaixo dos lençóis?

É estranho acordar e não encontrar um braço pra puxar mais para perto, ou uma perna a entrelaçar-se com a minha. Eu me lembro do seu cabelo bagunçado espalhado pelo travesseiro, do seu "Bom dia" arrastado e sonolento. Você, divina com suas olheiras de noitadas das quais eu nunca participei, com suas marcas de beijos que não vinham assinadas por mim. Do poliamor eu me recordo bem.

Acho que eu esqueci de esquecer-te, porque continuo sussurrando seu nome embaixo do chuveiro. Continuo te buscando no meio da estação de trem e na mesa de canto da cafeteria. Continuo buscando minhas partes que deixei com você, continuo tentando me entender. Mas quem liga? Eu fui abandonado por você como um par de luvas qualquer, esquecido sobre o balcão do caixa no restaurante - estava chovendo naquele dia, se lembra?

Agora suas visitas são raras e restritas. Você me vem cheia de blusas e botas de cano alto. Só abraços, com sorte, um beijo e nada de amassos - o sofá sente falta. Chegará um dia em que elas pararão e eu não te procurarei mais. Apagarei suas mensagens, minhas lembranças e o que mais tiver sido abandonado para trás. A vida segue, eu lembro de ter ouvido isso numa das músicas que não paravam de repetir em seu celular.

Acho que você também precisa me esquecer. Se puder, me esqueça bem devagarinho que é pra eu ver até onde você consegue chegar.

Vou dizer que é cômico, para não me convencer de que é trágico. Eu sabia desde o começo que os amores bruscos terminam como as chuvas de verão. E você está fazendo questão de comprovar minha tese, sem peso algum nem argumento que negue.

Ainda não foi decretado, ou confirmado, mas eu sei. Sei que um dia você vai me deixar sem marcas de dedos sujos de tinta. Vai me deixar sem Caetano Veloso nas manhãs de domingo. Vai me deixar frouxo, sem gozo, nem estímulo. Então serei só eu e as garrafas de vinho.

Mas eu ainda me lembrarei do seu sorriso...


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Notas finais do capítulo

"Conservar algo que possa recordar-te seria admitir que eu pudesse esquecer-te."

— William Shakespeare.



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