Coraticum escrita por Lena Saunders


Capítulo 3
Keep Your Atention On




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Eu só aceitei dormir depois que Lissa acordou, quatro horas depois.

– Volte a dormir, bebê. Pode descansar.

Ela cambaleou sonolenta até o sofá onde eu estava sentada e me puxou pela mão até a cama onde ela e Alec estavam.

– Não posso dormir, Lis. Tenho que fazer a vigia.

Ela apontou para Aideen, na ponta oposta de onde eu estava, digitando compulsivamente em seu notebook. Ele passara as ultimas três horas assim.

– Você quer que ele vá embora?

Lissa sacudiu a cabeça, negando. Ela colocou as mãos nos olhos e apontou para Aideen novamente.

– O que, você quer que ele vigie?

Ela assentiu e se embrulhou ao lado de Alec novamente. Minha mãe me mandou confiar cegamente nessa pequena criança loira.

– Aideen?

Ele levantou a cabeça, parecendo surpreso por eu estar falando com ele.

– Você pretende continuar acordado?

– Por enquanto sim, eu preciso resolver algumas coisas.

– Certo. Então... Hum... Acho que vou dormir. Você me acorda quando for dormir? Para não ficarmos sem vigia?

– Sim. Claro.

E mergulhei em um sono profundo.

No começo a canção era rouca e sussurrada, mas cresceu conforme eu corria. Meus pés doíam assim como todos os meus músculos. Mas eu continuava correndo.

As palavras ficaram claras, mas ainda incompreensíveis. Por mais que me esforçasse, eu não entendia uma única palavra daquela língua estranha. O asfalto machucava meus pés nus.

Me perguntei porque eu estava correndo. Olhei ao redor. Não havia nada me perseguindo. Nada para ser perseguido. Parei de correr, meus pulmões ardendo em brasa.

Uma mão, surgida do nada, agarrou a minha e gritou para que eu corresse, me puxando. Eu não conseguia ver seu rosto na escuridão, mas seus olhos de esmeralda me encaravam, vivídos, brilhantes, sinistros.

Um passo atrás do outro, retomei a corrida apesar dos protestos de meu corpo. Meus pés estavam em carne viva e me perguntei onde, raios, estavam meus sapatos.

O chão se aproximou do meu rosto e não tive tempo de proteger minha cabeça. Sangue escorreu entre meus fios loiros, tingindo-os de vermelho, e eu soube que meu nariz estava quebrado.

O rosto, ainda indistinguível na escuridão, se aproximou do meu. Seus olhos se tornaram brancos enquanto sua última frase ecoava em minha mente.

Eu acordei em uma poça de suor, meu coração acelerado. Estiquei o braço imediatamente e notei a ausência de meus irmãos. Me levantei em um pulo e vi Lola sentada, de pernas cruzada no sofá, segurando um copo do Starbucks.

Assim que notou que eu estava acordada ela deixou o copo entre as pernas e levantou as mãos, em sinal de rendição.

– Ok, Khyra. Fique calma, ok? Aideen apenas os levou para a lojinha. É um navio, não há para onde eles irem, ok? Está tudo bem.

Ela ficava repetindo "ok", como se esperasse que eu fosse concordar e me sentar calmamente ao lado dela para ler uma revista, ou algo assim.

Abri a porta com força, fazendo um barulho mais alto do que pretendia. Lola se encolheu no sofá. No fim do corredor, Aideen segurava Lissa nas costas. WAlec vinha ao seu lado, carregando algumas das sacolas. Eles pareciam... Bem. E felizes.

– Uow. Kay, você está meio acabada. - Alec disse, passando direto por mim.

Fiquei chocada demais para responder.

– Aqui. - Aideen colocou uma sacola ao lado de Lola. - Não sei porque você precisa de tudo isso.

– Porque, embora eu seja naturalmente linda, fazer objetos básicos de sobrevivência surgirem do nada, não está entre os meus inúmeros talentos.

– Não são objetos básicos de sobrevivência. É maquiagem. - Aideen disse enquanto colocava Lissa no chão.

– Isso mesmo. Básico para a sobrevivência. Estou começando a achar que você tem algum tipo de deficiência.

– Sério Kay, você deveria tomar um banho. - Alec disse. - Aqui, Aideen comprou roupas limpas. Nós tentamos advinhar o seu número.

– Ah sim. - Aideen pareceu finalmente notar minha presença. - Aqui, compramos isso também.

Ele enfiou a mão na sacola de Lola e tirou uma caixinha de papelão. Tinta para cabelo. Preta. Senti meu rosto se contorcer em desagrado.

– O que? Sério? - Lola parecia mais aborrecida do que eu. - Ela não te fez nada, Aideen. Não seja cruel.

– Eu não vou usar isso. Sem chance.

– Ok. Olha, ontem eu passei um bom tempo tentando hakear o banco de dados da OP. Esse navio vai parar em umas cinco cidades antes de chegar em NY. Eles emitiram um alerta de busca para... - Ele tirou um papel do bolso e o desdobrou. - Uma garota, média de 16 anos, cerca de 1,60 de altura, loira de olhos verdes, usando roupas escuras e fechadas. Um garoto, cerca de 12 anos, 1,55 de altura, cabelos negros, olhos azuis, vestindo uma blusa verde e jaqueta jeans. Outra garota, provavelmente com seis ou sete anos, 1,15, loira, de olhos azuis, com tênis que acendem e uma camiseta rosa estampada com um gatinho. Ah, e anexaram essa foto.

Ele me entregou o papel e começou a procurar algo nas sacolas. Na foto eu estava voltando para o beco com as maçãs na mão. Não pude acreditar que fui tão descuidada. O sangue saiu de meu rosto e eu peguei a caixinha de tinta. Eu não confiava em Lola e Aideen, mas havia outros problemas para lidar.

– Vou tomar banho. Alec, Lissa, qualquer coisa, gritem.

Segundo a embalagem, era só aplicar a tinta no cabelo úmido e secar. Foi mais difícil do que eu pensei.
Saí enrolada no roupão do navio, com meus cabelos enrolados na toalha.

– Deixa a gente ver, Kay! - Pediu Alec.

Lissa estava no chão, contando grãos de arroz e separando-os em montinhos.

– Eu não sei como ficou. Não quero ver ainda. De onde veio esse arroz?

– Eu pedi para ela. Alec disse que ela gostaria. - Respondeu Aideen.

– Bem, pode vir para o sofá. - Anunciou Lola.

– Acho que vou comer alguma coisa antes. Estou morrendo de fome.

– Ah, querida, mas eu já esterelizei a agulha. - Ela me mostrou uma agulha

– Para que isso? - Perguntei.

– Vamos te fazer um pircing. Para combinar com o cabelo.

– O que? Você está louca?

– Na foto dá para ver seu rosto. Apenas pintar o cabelo não vai resolver, Khyra. - Lola argumentou.

– E o que você sugere? Furar minha cara toda? Porque afinal eu não posso ficar aqui quando o navio ancorar?

– Porque eles sabem que você saiu da cidade. Eles estão revistando tudo. Os trens, aviões, e, bem, esse navio. - Aideen respondeu.

– Certo. Onde vamos fazer isso? - Perguntei.

– Um na sobrancelha e outro no nariz. -Lola disse, animada, enquanto acenava para eu me deitar ao seu lado.

Não doeu tanto quanto eu esperava. Enquanto Lola furava meu rosto, Aideen se ofereceu para levar meus irmãos para dar uma volta na área de recreação do navio. Dei várias recomendações, e, por fim, os deixei ir.

Aideen já havia levado-os para sair antes e eu não poderia deixá-los trancados por dias. Aquela foi a primeira vez que os confiei à alguém.

Quando Lola terminou, eu tinha uma argola na narina esquerda, duas bolinhas na sobrancelha direita e mais duas bolinhas no queixo. Ela insistiu nesse ultimo.

– Ok, agora vou te maquiar. - Ela anunciou enquanto tirava uma quantidade absurda de maquiagem de uma das sacolas.

Dessa vez, não objetel. Ela levou vinte e cinco minutos passando diferentes produtos no meu rosto.

– Aideen comprou isso para você. - Ela me esticou um pedaço de pano negro."

– Tudo bem. Onde está o resto?

– Ãh... É só isso mesmo.

– Você só pode estar brincando. Eu não vou usar isso.

– E é por isso que você precisa vestir isso. Vai ficar completamente diferente de quem você realmente é.

Peguei o minúsculo vestido preto das mãos dela e fui para o banheiro me trocar. Soltei meu cabelo já seco e evitei me olhar no espelho do banheiro.

– Perfeita! - Gritou Lola assim que sai do banheiro. Me olhei na porta espelhada do pequeno armário.

Ela estava certa. Meu cabelo não parecia pintado. Parecia apenas ser muito feio. O pequeno vestido colado e a maquiagem pesada me faziam parecer desesperada por atenção masculina. Os pircings gritavam "rebelde-sem-causa-desesperada-por-atenção-dos-pais."

– Eu pareço...

– Uma adolescente comum. - Ela bateu palminhas, animada. - Mas não comum o bastante para levantar suspeitas. Às vezes, a melhor camuflagem é se destacar. Eles vão procurar por uma garota escondida, tentando passar sob o radar. Mas nós seremos duas radiantes adolescentes curtindo as férias em nosso cruzeiro chique, pago por nossos pais ricos que não nos dão atenção.

– Hum... - Eu ainda estava chocada pela minha aparência. - E você, vai assim?

– Ah não. Eu preciso trocar de roupa. E você precisa parecer natural com isso. Então, enquanto eu me maqueio e me troco, pode ir treinando.

– Isso é impossível, Lola.

Ela me entregou sandálias com saltos finos altíssimos, do tipo que eu nunca usara ou pensara em usar.

– Você controla metais e eu curo feridas. Ainda acredita que algo é impossível?

Resignada, peguei as sandálias e passei a próxima meia hora caminhando de um lado para o outro. O desconforto não era nada para os meus pés, já tão acostumados à dor. O equilíbrio, entretanto, era um problema à parte.

Nós resolvemos procurar Aideen e meus irmãos, que já estavam fora há mais de uma hora. Os encontramos em uma sala cheia de jogos. Lissa estava sentada no sofá, comendo alcaçuz e encarando a única parede branca do lugar.

Lissa foi diagnosticada com autismo aos três anos. Ela nunca disse uma palavra. Na maior parte do tempo, ela é alheia a tudo o que acontece, enquanto encara paredes ou se concentra em coisas estranhas. Ela gosta de contar as coisas e é surpreendente boa com instrumentos. Quando pessoas estranhas a tocam, ela se debate e grita. Desesperadamente.

Alec e Aideen estavam com controles remotos, na frente de uma enorme tv. Cada um tinha uma lata de coca ao lado e Aideen parecia ter dificuldade para ultrapassar o carro vermelho de Alec.

Alec era um passifista, vegetariano, ativista ambiental e adorador da natureza. Mas amava videogames de corrida. Ele sempre teve dificuldade na escola e, aos seus oito anos, descobrimos que ele tinha transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. Também tinha um hábito relativamente irritante de batucar em
qualquer superfície e adorava ler, mesmo com a dificuldade para se concentrar.

Caminhei até Lissa, do outro lado da sala, segurando em Lola para não cair.
Ela sorriu quando entrei na frente dela.
Quando estiquei os braços para pegar minha irmãzinha, ela simplesmente se levantou e me deu a mão.

Eu e Lola chamamos os meninos e Alec quase derrubou a lata de coca quando de virou bruscamente.

– Quem é você? O que você fez com a minha irmã? - Ele perguntou, apontando para mim com o controle remoto.

Aideen me ignorou completamente, seus olhos vidrados em Lola. Ela havia solto os longos cabelos coloridos e passado uma maquiagem impecável. Ela estava radiante.

– Bem, e então? Irreconhecível? - Ela perguntou, apontando para mim.

Aideen finalmente me notou e ele concordou animadamente, suas bochechas enrubrecendo.

Todos nós decidimos passear pelo navio. Ele era realmente muito impressionante. Além da sala de jogos havia uma piscina, uma academia e uma área de recreação. Por fim, decidimos jantar no restaurante do navio e ir dormir, já que o navio aportaria no dia seguinte.

Graças ao maior número de pesssoas, o revezamento durou quatro horas. Eu peguei o primeiro turno. Dormir oito horas teria sido incrível, se não fossem os pesadelos.

Enquanto Lola e Aideen tentavam acumular horas de sono para qualquer eventualidade (como ter que sair correndo país afora), eu tentava repor as que havia perdido.

Nós finalmente descemos do navio. Eu, Lola e Lissa permanecemos juntas, enquanto Alec ficou com Aideen. Combinamos de passar o dia todo em uma zona comercial.

Lola discursou sobre como ela precisava de coisas que nunca encontraria no navio, e Aideen nos entregou um cartão de crédito, dizendo que poderíamos gastar o quanto quiséssemos. Insistiu que eu não a deixasse comprar nada suspeito ou idiota. Não garanti nada.

Nossa primeira aquisição foi uma câmera fotográfica, seguida de churros. Compramos também um bloco de desenhos para Lissa e roupas. Embora a lojinha do navio tivesse servido atê agora, eles não vendiam roupas de qualidade e eu só tinha um vestido agora que Aideen jogara as nossas coisas no mar.

Lola me comprou mais duas sandálias, uma jaqueta de couro, um pijama para mim e outro para Alec, dois tops que cobriam o mínimo possível, uma saia, duas calcas, duas blusas coladas e mais um vestido. Tudo para combinar com minha "nova aparência", segundo ela.

Lissa ganhou um vestidinho, três blusinhas, duas calças, uma saia e um tênis comum, sem luzinhas.

Também compramos algumas peças para Alec e Lola disse que precisava de tinta para cabelo azul, algo inexistente no navio. E, aparentemente, no resto do planeta também. Levamos horas para encontrar e, embora Lissa não reclamasse de ficar caminhando, eu sabia que ela estava exausta. Foi um dia divertido e, quando encontramos a tinta, em uma farmácia no fim do mundo, eu me deixei distrair.

Passei o dia todo atenta, prestando atenção em todos ao meu redor, mas eu pensei no quanto precisava de um hidratante para o meu cabelo coberto de tinta.Um maldito hidratante.

Um homem alto, usando jeans e uma blusa preta simplesmente pegou minha irmã, segurando sua boca, e, apesar do gritos e chutes de protesto dela, a carregou.

Nâo havia ninguém na rua para impedi-lo. Novamente, eu estava correndo. Carregar uma criança o tornou devagar, mas ele conseguiu entrar no carro com ela. Eram dois homens. Ouvi os passos desastrados de Lola atrás de mim.

Assim que eles deram partida eu empurrei minhas mãos para frente, uma das calotas se amassando como uma lata de sardinha. Eu queria minha irmã. Concentrei minhas forcas em abrir a maldita porta. Era impossível. Eu estava correndo com aquelas sandálias tortuosas e ainda tentando contralar metal. Então fiz algo mais simples e amassei parte das peças internas, tomando cuidado para não atingir o motor. O carro fazia 20Km/h.

Mas Lissa estava lá dentro. Lissa, minha irmã. Lissa, que era autista e não tinha idéia do que estava acontecendo. Lissa, que eu amava incondicionalmente.

A porta começou a se mover, mas não do jeito que eu esperava. O metal estava derretendo. Derretendo. Não havia mais uma porta. Lissa ainda esperneava, tentando pular para fora.

Lola surgiu do nada entre eu e o carro, em cima de uma moto. Levei dois segundos para assimilar isso. Ela esticou o braço para alcançar minha irmã e a primeira bala foi desparada. Eu me concentrei em desviá-la.

Lola não conseguiria alcançá-la enquanto aquele cara estivesse segurando-a. O carro virou a esquina.

Me lembrei de uma ocasião, há vários anos atrás, quando entrei no mar pela primeira vez. Uma onda, enorme para o meu tamanho naquela época, me puxou para o fundo. Eu me desesperei tanto que acabei afundando, como uma pedra, enquanto a maré me jogava de um lado para o outro. Mas não me afoguei. Não me afoguei porque criei minha própria bolha de oxigênio.

Meu salto quebrou e eu soube que havia torcido meu tornozelo esquerdo. Eu tinha que continuar correndo, mas se isso era difícil com dois saltos, com apenas um era impossível. Me concentrei em cada pequena molécula de oxigênio ao redor do cara que segurava Lissa e as empurrei para longe. Uma bolha figurativa de gases ao redor da cabeça dele, mas nenhum vestígio de oxigênio. Ele notou na hora. Outra bala. Atingiu o ombro de Lola. O grito dela fez meu fez meu corpo arrepiar em agonia.

O rosto do homem que segurava minha irmãzinha se tornou roxo e ele afroxou o aperto. Lissa se jogou em Lola que, mesmo machucada, conseguiu segurá-la.

Parei de correr e arranquei as malditas sandálias. Eles tinham nos visto. Eu, Lola e Lissa. Agora eles sabiam exatamente como nós éramos. Com o que me restava de forças, agitei as moléculas do banco do passageiro, onde ninguém estava sentado. O fogo se espalhou rapidamente. Eles se jogaram para fora antes de o motor explodir.

Lola estacionou ao meu lado e jogou Lissa no meu colo. Agarrei minha irmã o mais firme que pude. Ela tremia.

Então, Lola foi até os dois homens caídos e tocou suas testas com três dedos. Cada toque durou uma fração de segundo, que maispareceu uma eternidade para o meu corpo fadigado.

Entre o tempo que ela levou para fazer isso e retornar até mim, eu comecei a ver bolinhas pretas e os sons se tornaram distantes. Não me lembro de nada depois disso.


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