Qual é a cor do amor? escrita por hollandttinson


Capítulo 2
Eu sinto muito.




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A notícia do bombardeio se espalhou rapidamente por Molching, todos estavam comentando sobre a ruazinha com nome de céu que foi bombardeada. Afinal, eu não era a única que fiquei chocada com isso. Era o que todos se perguntavam o tempo todo: Quem bombardearia uma ruazinha com nome de céu? Era a Segunda Guerra Mundial.

Ilsa Hermann tremia nervosamente sentada no banco do carro, ela e seu marido estavam á caminho da rua Himmel. A mulher de prefeito estava assustada e desesperada, se perguntava quem seria a criança que sobreviveu, se era Liesel. Rezou para que fosse Liesel, sua garota dos livros, ela precisava ver a garota e constatar que estava tudo bem. Bom, ninguém mais sabia que Liesel estava sã e salva em Berlim, apenas eu e Rudy. Só nós dois podíamos respirar aliviados agora. Bem, o Rudy nem tanto.

Agarrado ao livro de Liesel –a única coisa sua que conseguiu salvar dos escombros-, Rudy ainda chorava sobre o corpo da mãe, segurava a sua mão fria e se lamentava pela sua morte. É claro que eu não queria levar Bárbara embora, nem Kurt, nem Bettina e ninguém de sua família, nem Tommy. Mas eu tive que fazer, vejam bem: As coisas são assim e não tem como ser diferente. Este é o meu trabalho. Silenciosamente, chorei com Rudy pela morte de sua família e de Tommy.

– É ele? Ele é o sobrevivente?- Ilsa estava decepcionada e triste. É claro que ela estava feliz por ter um sobrevivente, mas seu coração sofria em pensar que Liesel estava morta.

– Sim. Ele está sozinho, ninguém mais sobreviveu. Não larga daquele livro preto e chora o tempo todo. Não sabemos o nome dele, a senhora não precisa se aproximar.- Um dos homens da LSE disse enquanto ela ia andando lentamente em direção á Rudy. A menção de um livro a chamou a atenção.

Se agachou em direção ao garoto sujo e choroso nos escombros, ele estava agarrado ao corpo da mãe e segurava um livrinho preto. O livrinho preto de Liesel. Ilsa segurou a vontade de chorar e olhou ao redor, procurando o corpo de Liesel ou da sua família, mas não achou. Colocou a mão no ombro de Rudy mas ele não se mexeu, continuou chorando e segurando o livrinho com força.

– Eu sei que dói, mas você é jovem e vai superar. Vai ficar tudo bem.- Ela tentou consolá-lo. Eu suspirei.

Queria poder consolar, mas eu não sou boa com consolos. Não quando sou tão fria. Rudy parou de soluçar mas não se mexeu. Ilsa suspirou.

– Ela se foi e deixou o livrinho com você. Eu vou sentir falta dela, é...- Ilsa fungou. Queria chorar.

Rudy soltou a mão da mãe para poder limpar o rosto e olhar para Ilsa. Seu rosto estava vermelho e ferido, além de uma camada grossa e visível de poeira, também tinham algumas queimaduras na mão que ele limpou o rosto.

– Ela quem?- Ele perguntou. Sua voz falhou e meu coração falhou junto.

É como eu disse: Ele mexe comigo.

– Liesel Meminger. A menina á quem eu dei esse livro, fico surpresa que ela tenha deixado com você... Á menos que o tenha roubado. Você roubou?- Ilsa ergueu uma sobrancelha. Rudy olhou para ela de cara feia.

Quem aquela mulher acha que é para falar dos roubos de Rudy e Liesel? Quem ela pensa que é para fazer Rudy lembrar de que Liesel está longe e eles nunca mais vão roubar juntos? Nunca mais. Quem era pensava que era? Quem? A mulher do prefeito? Olhe só ao redor, sua idiota, está tudo destruído, minha família foi destruída, minha vida e a minha amizade. Meu pai pode estar morto em algum lugar do mundo e você acha que eu roubei um livro? Que eu roubaria algo de Liesel? Quem ela pensava que era?

Pobre Rudy.

– Eu não o roubei! Eu não sou ladrão! Ela deixou ele comigo antes de ir embora!- Ele disse, abraçando o livro com força e se afastando da mulher, lentamente. Ilsa suspirou e balançou a cabeça.

– Certo, não vamos falar sobre isso. Deve ser muito difícil para você, as lembranças dela... É difícil para mim também, me apeguei a ela. Eu sei o que você está sentindo.- Ilsa disse sinceramente. Rudy estava começando á ficar bravo.

– Você não sabe de nada! Acha que só porque passou por algumas dores e algumas perdas na vida, entende de tudo! Eu sei que sou jovem, mas é confuso: A minha alma não tem a idade que aparenta. E eu não quero falar sobre Liesel, não com você.

– Ela falou de mim com você?

– Quem você acha que a ajudou á roubar tão perfeitamente por tanto tempo? Eu li esse livro.- Rudy mostrou o livro e Ilsa sorriu. Olhou para o outro lado, ainda tinham pessoas sendo tiradas dos escombros, pessoas que ela nunca conheceu e nunca conheceria. Ouviu Rudy fungar e virou para ele.

– Ela era uma ótima garota.

– Ela não vai mudar e ela me prometeu que voltaria.- Disse Rudy, olhando para o rosto da mãe.- Você me prometeu que tudo ficaria bem, onde está você agora? Porque você tinha que ir embora? Porque está todo mundo indo embora? Primeiro papai, depois Liesel e agora vocês, todos vocês. Eu não tenho mais ninguém, mamãe! Ninguém!- Rudy chorava agora. O choro era forte e ele estava começando á tremer, mesmo assim, o livro estava preso entre os seus dedos.

Ilsa suspirou e antes que pudesse perceber, estava segurando o ombro do garoto e chorando com ele.

– Até Tommy, mamãe! Aquele Arschloch, aquele Saukerl imundo e careteiro. Até ele se foi! Eu não tenho mais amigos! E nem família! O que eu vou fazer agora?- Rudy tentava falar em meio ao pranto e eu tentava continuar ali.

Um fato sobre mim mesma: Sou masoquista.

Ah, Tommy. Ah, Rudy. Ah, Bárbara, Kurt, Bettina, Steiners. Ah, Ilsa… Ah, vida. Vocês me acham cruel? Pois lhe digo que ainda existe algo mais cruel do que eu. Ao menos ainda tenho o meu coração, por mais frio e macabro que ele pareça ser, ainda é meu. A vida não. Ela não sente, ela não pensa, ela não se importa. A vida é a cruel, eu sou conseqüência.

– Qual é o seu nome?- Uma mulher baixinha perguntou. Ela estava usando os cabelos loiros presos em um coque perfeito, não expressava sorriso algum e nenhum indicio de delicadeza e carisma, apenas frieza. Rudy quis responder mas perdeu a voz, fazendo com que ela bufasse irritada.

– Ele se chama Rudy Steiner. Seu pai foi para a guerra, é Alex Steiner. Gostaria que você procurasse por ele, por favor. É a única pessoa que Rudy tem na vida.- Disse Ilsa, abraçando os ombros do garoto.

Depois de um acesso quase interminável de choro, os soldados da LSE disseram que deviam levar os corpos para o IML ou algo do tipo, então Rudy chorou mais e mais. Ele se agarrou ao corpo de Tommy –que foi o último á ser levado- e chorou, pedindo para que ele voltasse. “Eu juro que nunca mais reclamo das suas caretas e nem te xingo, mas por favor volte.” Mas Rudy sabia, e todos nós sabemos: Ele nunca mais voltaria.

Então o prefeito levou Rudy até á prefeitura, onde eles iam cuidar do garoto. Ilsa fez questão de ir com ele, não queria deixá-lo sozinho. Nem o livro. Ela queria ficar perto de qualquer lembrança de Liesel, principalmente porque não tinha visto o corpo da menina em lugar algum por ali. Pelo que ela pensava, Rudy devia estar querendo se agarrar ao corpo de Liesel e não de Tommy. Ela não compreendia e aquilo doía.

– E se ele estiver morto? Esse Steiner... Vamos fazer o quê com o garoto? Pelo amor de tudo o que é mais sagrado, Ilsa! Não me olhe desse jeito!- Dizia o prefeito. Aquela situação estava o irritando ao extremo, principalmente quando viu o jeito que Ilsa olhava para o garoto.

– Nós vamos checar. Se ele estiver morto, vamos levar o garoto para um orfanato, ele vai sobreviver.- A mulher fria respondeu, indo até uma mesa e pegando o telefone que estava sobre ela, provavelmente ligando para alguém da embaixada ou coisa do tipo. Rudy se encolheu ainda mais quando ouviu as palavras dela.

E se o seu pai estivesse mesmo morto? E se ele não sobrevivesse? Rudy quis morrer e eu quis dizer que estava tudo bem. Alex não estava e nunca esteve comigo, na verdade, ele estava bem. Perfeitamente bem.

Ele estava tomando café da manhã quando foi chamado. O pão era duro e o café era bem fraco, mas ainda era uma das coisas mais gostosas que ele podia conseguir naquelas condições. A vida não é fácil para recrutados, mas Alex deu sorte: Nada de guerras para ele, ficaria na administração. As pessoas acharam que seria melhor, tanto pela idade dele, quanto pelo seu profissionalismo.

– Alex Steiner? Um telefonema de Molching para o senhor.- Uma mulher nada parecida com aquela da prefeitura o chamou. Esta sorria. Alex sorriu de volta e a acompanhou até a sala de telefonema.

Era normal alguns recrutados receberem ligações de suas famílias, se fossem bons e se comportassem: Alex nunca teve essa oportunidade. A alegria quase explodia pelos seus poros, finalmente poderia ter noticia de sua família, e quem sabe, falar com Bárbara e saber como estava Rudy e seus filhos.

Chorei internamente enquanto via a sua expressão mudar. Nada de Bárbara, nada de filhos, nada de boas noticias, nada de rua Himmel, apenas um garotinho de cabelos da cor de limões que chorava desesperadamente agarrado á um livro e não conseguia falar com o choque. Apenas Rudy.

Era isso que Ilsa tentava explicar ao marido quando levou Rudy para a sua casa aquela noite: Ele está só e é apenas ele.

– O pai deve virá e ele vai embora.- Disse Ilsa, sem olhar para o marido, preocupada demais que Rudy pudesse ouvir as palavras de seu marido, sempre tão duras.

– Sim, mas quando? E vai pra onde? A cidade está em ruínas!- Dizia o prefeito, irritado enquanto passava a mão pela cabeça, nervosamente.

– Só por alguns dias, quando Alex Steiner chegar, ambos vão embora e a sua vida voltará á ser o que era.- Disse Ilsa, colocando as mãos para o alto. Eles ouviram um barulho vindo de cima. Era Rudy.

– O que aquele porco está fazendo?- Perguntou o prefeito, indo até a porta de seu escritório. Ilsa suspirou.

– Me deixe, eu vou ver.- Ela disse, subindo as escadas.

Abriu a porta do quarto de hospedes devagar e encontrou Rudy encolhido no canto do quarto, ainda agarrado ao livro –que ele não largou em momento algum- e chorando desesperadamente, era quase impossível não ouvir seus soluções e murmúrios. A emprega do prefeito estava com as mãos no ouvido, agoniada. Era uma senha já em idade um pouco avançada e estava ali á tempo demais e nunca viu alguém chorar tanto, nem mesmo Ilsa quando perdeu o filho.

– Ele não para de chorar!- A mulher dizia, quase chorando junto. Ilsa suspirou e andou até Rudy, que não se mexeu.

– Rudy? Rudy querido, me escute. Você precisa tomar banho, não pode ficar chorando aqui, vai passar, vai ficar tudo bem, estamos aqui para cuidar de você, apenas... Por favor, tome um banho!- Pediu Ilsa, balançando os ombros dele. Nada. Os soluços ainda estavam ali e agora ele tremia mais.

– Ele nem fala comigo, Senhora Hermann!- Disse Jessie, a empregada.

– Porque você não quer tomar banho?- Perguntou Ilsa, passando a mão no cabelo de Rudy que estava imundo, igualmente com o resto do corpo. Rudy balançou a cabeça e fungou.

– Não posso, não posso! Essa roupa é a única coisa que eu tenho! A única coisa minha! Eu não posso tirar ela, eu não posso deixar ir embora a única coisa que me faz lembrar minha família. Não importa se é uma lembrança ruim!- Disse Rudy, apontando para as próprias vestes sujas, rasgadas e empoeiradas. Ilsa torceu o nariz, ele fedia.

– Mas você não pode ficar fedendo, precisa tomar um banho e tentar dormir. Por favor, Rudy! Alex não vai gostar de saber que você não está se alimentando e nem tomando banho.- Disse Ilsa, percebendo que a bandeja que mandou fazer para ele, estava intocada. Rudy balançou a cabeça e se agarrou mais ao livro.

– Por favor, garoto.- Jessie tentou ajudar Ilsa. Rudy olhou para elas.

Onde estava a sua mamãe? Porque ela não estava ali? Porque ela não o estava consolando? Não havia explicação para isso.

Vi Rudy tomar banho naquela banheira enorme com variações de cheiros, o livro estava repousando sobre a tampa da bacia sanitária e ele olhava para ele, sem nem mesmo piscar. Então eu me agachei em seu ouvido e sussurrei as palavras que faziam doer até em mim.

Duas palavras gigantescas: Eu sinto muito.

Do outro lado da Alemanha, Liesel recebeu a notícia do bombardeio. A garota estava totalmente arrasada, e eu também estava, afinal. Ninguém tentou consolá-la, ninguém se aproximou, ninguém teve coragem de falar alguma coisas, apenas ficaram ali vendo ela chorar e chorar á cada segundo que passava, em silencio. Liesel repetia o nome do Rudy várias vezes e se perguntava o porquê de isso ter acontecido.

– Eu ia morrer! Nós todos íamos morrer! Mas não, ele morreu! Logo ele!- Dizia Liesel. Ninguém respondeu, ninguém suspirou, ninguém se mexeu.- Ele devia estar vivo agora! Por quê? Por quê? Por que não eu? Porque estão todos indo embora? Porque eu o abandonei? Eu podia estar do lado dele agora, mas eu estou aqui! Nós precisamos ir ao enterro.

Hans e Rosa se olharam, Rosa balançou a cabeça nervosamente. Trudy suspirou.

– Liesel, não dá. Eu entendo que doa muito em você, é difícil perder alguém dessa forma, mas você precisa entender, a vida é assim e não tem como ser diferente. Não podemos viajar para ver o funeral de Rudy, eu sinto muito.- Disse Trudy. Liesel parou de chorar e ficou olhando para ela por uns 30 segundos até que voltou á chorar, mais forte do que antes e com mais intensidade. Ela dormiu ali mesmo, encolhida no chão frio da casa nova, com os olhos inchados e o rosto vermelho. Com apenas um nome na cabeça, um único suspiro, uma única dor, uma única saudade: Rudy.


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Notas finais do capítulo

Obrigada á todas as pessoas que estão lendo! Finalmente pude postar esse capítulo e agradecer á todos vocês. Um grande beijo!