A Pele do Espírito (versão antiga) escrita por uzubebel


Capítulo 26
Todas as Minhas Peles


Notas iniciais do capítulo

Olá, pessoas! Fiquei tão feliz com a recomendação que recebi da Tamires semana passada que escrevi o dobro e consegui liberar o capítulo alguns dias antes. Tem muitas informações nessas duas mil e quinhentas palavras, e espero que gostem. Se gostarem - ou não - deixem um comentário e me contem aí o que se passa em seus corações.
Beijos, e boa leitura.



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— Eu espero que você não tenha medo de morrer, menina – disse Tâmi com um olhar repreensivo.

Byakko havia explicado que o caminho mais fácil para a caverna seria subir o rio, então imediatamente Tâmi veio nos receber ao chegarmos. Ela não comentara a mortalidade de Byakko, o que me fazia me perguntar se ela já sabia há algum tempo ou se não havia percebido. Me perguntei também quantos Espíritos já sabiam de sua nova condição, e o que fariam.

— Ela não vai morrer – Byakko respondeu rispidamente.

Tâmi nos acompanhava rio acima, fazendo a correnteza se inverter e ir para a nascente, e não para a foz. Ela flutuava e avançava sem dar sequer um passo, como se a água a estivesse carregando. Depois de sua passagem, o fluxo do rio se normalizava e seguia para o mar. Ela encarou Byakko, mas não o questionou.

— Quanto tempo de caminhada até a caverna? – Perguntei.

— Seis horas. Talvez um pouco mais por causa do terreno acidentado. Você se lembrou da corda? – Disse Byakko.

— Sim.

Dei três tapinhas na minha bolsa tiracolo, fazendo os objetos sacolejarem. Muito mais do que alguns metros de corda.

— E o que mais você trouxe? – Thâmi perguntou com curiosidade.

— Comida – respondi. – E... Alguns objetos que guardo com carinho.

— Você guardou a pedra que eu lhe dei?

— Ah, sim – tirei dois cordões de dentro das minhas vestes. O mais curto era o amuleto de Byakko, e o mais comprido tinha a pedra turquesa amarrada à ponta.

Ela sorriu, satisfeita.

— Muito bem.

Byakko se oferecera para carregar minha bolsa cheia de bugigangas, mas eu recusara. Fora estranho tirar todas elas de debaixo da tábua solta do assoalho. Como um adeus. Eu nunca havia tirado os objetos de lá por muito tempo, e muito menos os tirara de dentro da casa de Dorothea. Mas, agora, eu queria cada pequena lembrança comigo, então levava todas elas contra meu próprio corpo, sentindo-as sacolejando a cada passo.

Ele então se oferecera para levar Um e Dois, e os irmãos estavam sendo carregados sobre seu ombro, cada um amarrado numa das pontas de uma faixa de trapo. De tempos em tempos, quando Byakko fazia um ou outro movimento mais abrupto, como se virar para me ver, os dois batiam um no outro, cabeça com cabeça, e praguejavam. Eles haviam se oferecido para me ajudar, afinal já haviam feito o mesmo caminho antes.

— Lóris? – Byakko me chamou.

— Oi.

— Você ainda se lembra do que eu te ensinei? Sobre o zumbido da magia?

— Sim. Por quê?

— É importante. Se você não conseguir silenciar o barulho como te ensinei, não vai conseguir entrar na caverna e nem no meu mundo. E o zumbido não vai vir apenas de um objeto ou um feitiço, vai vir de todos os lados. Até mesmo o ar vai estar saturado da magia dos Espíritos.

Assenti.

— Achei que se esqueceria de tudo depois de tanto tempo... – Byakko sussurrou. – Achei que se esqueceria até de mim...

— Por quê achou isso? – perguntei.

— Não sei. Mas eu tinha medo.

— Para onde você foi? Onde ficou por todo aquele tempo?

Apertei o passo para me manter caminhando ao seu lado, enquanto Thâmi recuou ligeiramente, dando-nos um pouco de privacidade. Pude olhar nos olhos dele.

— Primeiro, fui procurar alguém que pudesse me explicar o que estava acontecendo comigo. Sobre ser mortal. A maioria dos Espíritos que caíram se esconderam por algum motivo. Então tive de ir atrás de um de seus filhos...

— Quem?

— Uma Fênix.

— Elas realmente existem?

Ele riu.

— Você não correu quando lhe disse que era a própria morte, mas não acreditava que as Fênix existiam?

— Eu nunca vi nenhuma – cruzei os braços.

— Ora, então agora você é uma cética?

— Não. Só é difícil saber o que é verdade e o que é lenda quando se trata dos Espíritos...

— As Fênix são bem reais. E são filhos e filhas de Feng e Huang.

— Os primeiros...?

— Sim, eles...

— Qual foi a parte mais difícil? – Perguntei.

Ele levantou seu rosto lentamente para me encarar.

— Não voltar para cá.

Engoli em seco diante da intensidade com que ele olhava para mim, e baixei eu mesma minha cabeça.

— Você podia ter voltado... – eu queria que tivesse voltado.

— Não, não podia. Eu precisava descobrir como fazer meu trabalho sem... poder estar em praticamente todos os lugares ao mesmo tempo. As pessoas estavam morrendo e morrendo, mas de repente eu era apenas um.

— Por isso que você disse que estava sendo difícil estar em mais de um lugar ao mesmo tempo. Você disse isso quando voltou.

— Na verdade, tem sido realmente impossível.

— Então o que você fez?

— Eu trabalho em equipe agora.

— Como assim?

— Você me fez contar toda a história da cidade dos seus ancestrais, e lhe disse mais de uma vez que nunca entreguei as almas. Nem para Isméria, nem para o meu irmão. Milhares de almas tinham de ir para algum lugar...

A vegetação ao nosso redor começou a farfalhar.

— Acho que Damon veio se despedir – disse Byakko, como se esperasse que eu entendesse a piada em seu sorriso.

Como ele previra, Damon emergiu da vegetação rasteira, mas não estava sozinho. Havia dezenas de outros gatos atrás dele, a maioria que eu jamais vira na ilha. Como isso era possível?

— Os Thanats adoravam gatos. Sempre havia pelo menos um para cada habitante na cidade. É estranha a habilidade dos animais de prever a catástrofe, não é? Os gatos todos pressentiram o que estava por vir e subiram a montanha, acabando por sobreviver. Cinco mil gatos, cinco mil mortos...

Damon avançou e se esfregou nos meus calcanhares.

— Os gatos... os gatos são eles? – Perguntei.

Byakko assentiu.

— Mas como?

— Magia – respondeu. – Depois daquela noite, cada um deles passou a ter uma minúscula fração do meu poder. Mas, graças a isso, agora eles podem fazer o que eu faço, e colher as almas. Só que podem estar em cinco mil lugares ao mesmo tempo.

Dito isso, os gatos mais atrás começaram a desaparecer diante dos meus olhos, como velas sopradas ao vento.

— Para onde eles estão indo?

— O lugar não importa muito. Eles estão atrás de alguém. Vidas acabam a cada segundo.

Peguei Damon e o encarei no fundo dos seus olhos ímpares.

— Você sempre foi um deles? – Perguntei-lhe.

Ele tocou seu focinho úmido na ponta do meu nariz.

— Traidor.

Ele esfregou sua cabeça no meu rosto.

— Também estava com saudades.

Damon miou.

— Espera... – Virei-me para Byakko. – Isso significa que Damon vai embora?

— Sim.

— Mas ele não pode ir com a gente?

Ele negou.

— Ah...

Ia beijá-lo atrás da orelha, como de costume, mas parei.

— Então você é um cara?

Byakko gargalhou.

— Às vezes sim – ele respondeu em nome de Damon. – Damon está dizendo adeus.

Coloquei-o no chão, depois de dar-lhe uma coçadinha na orelha preta.

— Adeus...

Damon balançou o rabo como sempre, miou brevemente, e em seguida tinha sumido.

                                                  ***

— Por quê?

— Eu precisava de alguém que pudesse ficar de olho em você... Depois de entregar você a Dorothea, ela exigiu que eu não me aproximasse. Então Damon se ofereceu para vigiá-la. Dorothea aceitou. Desde que não fosse eu, estava tudo bem para ela.

— Acho que não saberemos as razões dela...

— Certamente que não. Uma coisa engraçada é que não há gatos de verdade na ilha, então você nunca percebeu a diferença. Se um dia for ao continente, vai ver como os gatos lá são bem menores do que Damon e os que você já viu por aqui.

— Então todos os gatos da ilha... são como Damon?

— Sim. Esse já foi o lar deles, afinal. Seus ossos e de seus ancestrais estão todos na ilha.

— Agora entendo porque todos os mercadores ficavam tão interessados em Damon. Deviam pensar que ele poderia livrar seus navios do dobro de ratos...

— Ou de nenhum.

Eu ri.

— Agora faz sentido o fato de Damon ir aonde quer que eu fosse. Os outros gatos nunca se aproximavam muito das pessoas. Apenas ele.

— Ele estava cuidando de você. Se Isméria chegasse perto, ele me avisaria. Desde a morte dos seus pais eu não confiava mais apenas no meu instinto... Naquela noite, pressentir quando vocês estavam sob risco de morte não foi o suficiente... Cheguei tarde demais. Não podia me arriscar outra vez.

Já estávamos caminhando há um par de horas e o sol estava à pino, queimando minha nuca, conforme as árvores começavam a rarear e davam lugar a arbustos baixos e rochas escuras, sinal de que logo começaríamos a subir a montanha. Suor começava a gotejar do meu queixo.

— Vamos parar até o sol baixar um pouco, ou quando chegarmos lá as rochas estarão quentes demais para escalar – disse Byakko. – E você precisa comer também.

Eu e Byakko nos sentamos sob a sombra de uma árvore no nosso caminho, subindo o leito do rio. Thâmi não saiu da água, como sempre. Tirei da minha bolsa duas maçãs e algumas bolachas, e dividi tudo igualmente entre mim e Byakko, mas ele recusou as bolachas e pegou apenas a maçã. Não havia muita explicação para quão pouco ele precisava comer ou dormir, só sabia que, apesar de mortal, seu corpo tinha as necessidades de um humano, mas em quantidades muito diferentes. Seu coração, por outro lado, parecia trabalhar em dobro, batendo duas vezes mais rápido, enquanto ele comia e dormia a metade.

Byakko deu uma mordida em sua maçã e a encarou por longos minutos.

— O quê foi? – Perguntei.

Ele me olhou, começando a mastigar.

— Comer. Sempre me parece como finalmente assinar o contrato...

— Contrato?

— Com a mortalidade – ele explicou, dando uma segunda mordida na fruta. – É como ter tudo escrito em pedra.

Ele acenou com a cabeça na minha direção.

— Você precisa comer.

Dei uma mordida em minha maçã.

— Eu não sabia que Espíritos podiam ter formas animais.

— Espíritos podem ter muitas formas. E quando digo isso, não me refiro apenas à vários Espíritos com várias formas diferentes, mas também que um único Espírito pode ter muitas formas.

— Você também – afirmei.

— Eu também.

Acabamos de comer, bebemos água e enchemos os cantis depois de minutos de descanso. O sol descia do topo do céu e seus raios, agora oblíquos, começavam a assumir um tom mais alaranjado com a aproximação do entardecer. O calor também logo começaria a se amenizar. Voltamos a subir o rio até o caminho começar a se verticalizar e as árvores praticamente desaparecerem. O rio Thâmi ia ficando cada vez mais fino e menos volumoso, e escorria por entre as fendas das rochas escuras como fuligem. Quando o terreno começou a ficar acidentado o suficiente para nos obrigar a caminhar cuidadosamente, nos apoiando nas rochas com as mãos, Byakko amarrou a corda em meu tronco, e a outra ponta em volta de seu próprio corpo.

— Eu vou subir na frente – ele disse, segurando a corda. – Se você escorregar, isso vai impedir que você caia e se machuque.

Começamos a escalar e pensei que não acabaria mais. Havíamos perdido Thâmi de vista, pois em algum ponto o curso d’água se embrenhara entre as rochas e o Espírito fora junto, dizendo que nos encontraria lá no alto. Byakko seguia em frente, claramente ciente de onde ia e onde pisava, mesmo eu tendo certeza de que, antes disso, ele jamais fizera esse caminho. Antes, ele provavelmente apenas estalava seus dedos e se materializava na caverna, ou no mundo dos mortos, eu não sabia. Comigo, ele não tinha essa opção.

Finalmente, com o sol avermelhado paralelo ao horizonte, Byakko alcançou uma grande rocha acidentada com o topo recortado, como um mirante natural. Fiapos finos de água escorriam dela, certamente a água de Thâmi, e caiam ao nosso redor. Ele me içou pela corda, até poder alcançar minha mão e me trazer para cima. Finalmente no topo, percebi como a rocha era muito maior do que vista de baixo. Ela recuava vários metros em direção à montanha e a água escorria por veios que esculpira ao longo do tempo, e se empoçava em sulcos maiores. Mas, seguindo seu fluxo com os olhos, encarei a caverna escavada na montanha, mas não era nada do que eu imaginava. Ela não fora escavada apenas pela água e pelo tempo, mas também por mãos humanas.

Duas enormes estátuas de felinos ladeavam a entrada: a da esquerda, com a cabeça na altura dos olhos humanos, tinha uma pose curiosa, quase amistosa, e era esculpida em claríssimo mármore branco; a da direita tinha a cabeça alta, um olhar quase de superioridade, e era esculpida em basalto negro, como quase toda a montanha. Ambas elas, no entanto, tinham duas caudas cada, ao invés de uma.

— É você? – Perguntei a Byakko, tocando o focinho frio da estátua mais clara.

— Sim, sou eu.... – ele se aproximou, encarando os olhos da estátua. – Essa forma eu tive muito antes da humanidade como você imagina. Num tempo quando a morte, para vocês, eram os animais que rondavam as cercas de seus acampamentos. Um tempo em que os humanos ainda tinham medo do escuro...

— Então você não é mais assim?

Byakko tocou a boca semiaberta da estátua, passando o polegar por suas enormes presas.

— Eu sou todos que um dia já fui. Não é porque não uso mais essa pele que deixei de sê-lo. Você ouviu, não ouviu? Aquela noite... E viu as marcas nas paredes – ele me encarou. – Mas você já tinha deduzido isso, não é? Só queria me ouvir dizer.

— É diferente quando você me conta... – eu disse, sem desviar o olhar.

— Diferente?

— É bom.

Ele riu como se não entendesse bem do que eu falava, mas aceitasse o fato.

— Pelo menos ele não parece querer me matar – indiquei sua estátua. – A escura, por outro lado, me olha como se estivesse pensando em como me matar: rápida ou lentamente.

— Acredite, é assim que o meu irmão vai olhar para você.

Ignorando seu comentário, dirigi-me a entrada da caverna, que também tinha detalhes esculpidos em baixo relevo por todo o arco de pedra. No alto, em destaque, havia símbolos que pareciam letras.

— O que está escrito? – Perguntei a Byakko.

— Diz “este é o império da morte”.

— Foram os Espíritos que escreveram?

— Não, a língua dos Espíritos não é escrita, apenas falada. Essa é a língua dos Thânatis. O lugar era sagrado para eles. Tudo o que você vê, foram eles que esculpiram.

Agora diante da boca de pedra, percebi que um ar quente e úmido saía de seu interior, quase como a respiração de um gigantesco animal.

— Por que o ar da caverna é quente?

— Porque não é apenas uma montanha. É um vulcão.

— O que? Eu nunca ouvi falar disso.

— Porque o vulcão foi extinto há muito, muito tempo. Mas, se você perceber, a água de Thâmi é quente aqui. Mesmo que o vulcão nunca mais vá sofrer uma erupção, abaixo dele a terra ainda pega fogo, e as rochas aquecem a água que brota.

Isso explicava a respiração quente e úmida da caverna.

— Mas por quê o vulcão foi extinto?

— Porque seu Espírito está morto – respondeu Thâmi, emergindo de dentro da caverna, a luz do sol poente projetando sua sombra alongada pelo chão.

— Como assim morto? Eu pensei que os Espíritos eram imortais.

— Nós somos. Mas ainda podemos ser destruídos... – respondeu Byakko. – Não que isso aconteça com frequência, mas assim como eu dividi sua alma, um Espírito pode ser feito em pedaços. Somos imortais, mas não somos invulneráveis.

— Mas o que poderia fazer isso?

— Magia.


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