Selfless and Brave. escrita por comfortablynumb


Capítulo 16
Chasm




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Please give me something
I'm so thirsty, I'm so thirsty
Oh please, let me warn them
Don't you come here, don't brinsg anyone here

A luz da lua ilumina o local, entretanto, não consigo enxergar os rostos das três pessoas que estão ali, apenas suas sombras.

– Confiaremos. – digo, embora não esteja totalmente certo disso.

Tori limpa a garganta e continua.

– A caça aos divergentes já começou. Vocês estão cientes disso, certo?

– Na verdade, não. Há pouco tempo descobri o termo "divergente". – verbaliza Clary. – E eu não entendo o porquê de eles serem tão perigosos assim.

A palavra "divergente" faz com que eu estremeça. De fato, concordo com Clary. Não consigo enxergar como uma característica que se difere das outras, em nossa fisiologia, poderia destruir um sistema estabelecido há vários anos. Apenas um sistema frágil poderia ser destruído tão facilmente.

– Vocês são perigosos ao ponto de vista da Erudição, pois...

– Vocês? – interrompe a garota. – Eu sou divergente?

– Sim, Clary. Há algum tempo que eu soube disso, mas acredito que se você não soubesse da informação, seria mais fácil de controlá-la. Mas com a caça aos divergentes, tal informação se tornou inviável de segredo.

– Como, afinal, você descobriu a minha divergência?

– Bud. O instrutor que guiou o seu teste de aptidão revelara isso a mim, logo após a morte de George. Ele acha que os divergentes estão correndo perigo, e realmente estão.

– Isso é impossível. Eu deveria saber que sou divergente logo após o teste.

– Bud registrou sua aptidão à Audácia manualmente. Não sei se percebeu, mas o teste acabara de uma forma confusa. Rápida demais.

– Sim. – ouço a voz de Joseph. – Como se ele não estivesse surtindo efeito em nós e sucumbisse à nossa mente.

– Exatamente. – diz Tori.

– Eu posso, ao menos, saber o meu real resultado? – Clary indaga num tom irritado.

– Audácia e Franqueza.

Clary permanece em silêncio, como se a informação estivesse, de fato, surtindo efeito nela. De repente, formou-se um silêncio estrondoso e tudo que consegui ouvir foram as batidas de meu coração, que se tornavam cada vez mais fortes. Por fim, Joseph quebra o silêncio.

– E minha divergência?

– Seu teste foi aplicado por mim, e eu o registrei como Audácia. Entretanto, o teste me mostrou aptidão à Audácia, Erudição e Franqueza.

– T-três facções? – Joseph gagueja. – Tem certeza de que não há nenhum engano?

– Não seja estúpido, Joseph. – diz Tori. – Se estivesse enganada, provavelmente não o convocaria aqui. E, Quatro, seu teste me informou que é, de fato, da Abnegação. Entretanto, Amah me revelou sua capacidade de responder aos medos de forma com que saiba que tudo aquilo não é real.

Preparo-me para responder, mas sou interrompido pelo erudito.

– Mas é o que os testes são: fictícios. Nada daquilo é real, e duas partes de nosso cérebro, o córtex pré-frontal e órbito-frontal, podem estar relacionados a isso. – Joseph responde. – Um pouco antes de eu sair da Erudição, estavam fazendo uma pesquisa com alguns dos divergentes eruditos de cobaia. Pharrel, Maddie e eu estávamos colaborando com a pesquisa. Nela, comparamos as amostras sanguíneas dos divergentes com a de uma pessoa sem divergência aparente. Nada que pudesse explicar. Até compararmos seus cérebros: nos divergentes, o córtex pré-frontal é relativamente maior que o de uma pessoa normal, e o córtex órbito-frontal é incrivelmente menor. Justamente nesse tamanho inferior está a causa da divergência: por nosso córtex órbito-frontal ser menor, podemos responder às simulações da forma que quisermos, pois sabemos que nada daquilo é real.

– É exatamente esse o problema dos divergentes. Uma parte do cérebro fica imune às simulações. Isso faz com que vocês não possam ser controlados. – diz Tori.

– Nós somos os únicos divergentes? – pergunto.

– Provavelmente não. Há milhares de divergentes espalhados por todas as facções. Inclusive na Audácia. Mas não posso confiar em todos os instrutores e líderes, logo, só estou ciente de vocês.

– Por que escolheu justamente esse local para nos alertar?

– Sei que estou sendo vigiada pelos líderes da Audácia. Eles acreditam que eu possa ser divergente. Por isso, certifiquei-me de alertá-los num local onde não possam nos vigiar. As câmeras daqui estão desligadas há vários meses, então pressupus que aqui seria o melhor lugar.

– O que você quer que nos façamos? Sairmos da Audácia para vivermos com os sem facção? – questiona Clary, apoiando sua mão na mesa.

– Não. Como eu já tinha dito, estou aqui para lhes instruir. E preciso que fiquem atentos a tudo. – Tori inicia.

Vejo sua sombra à minha frente e então me lembro de nosso embate no abismo. Percebo que devo deixar tudo o que passei para trás; minha jornada na Audácia agora é muito mais difícil que antes. Posso estar correndo perigo neste exato momento.

Ouço os detalhes de como deve ser o nosso comportamento perante o próximo estágio. Ela nos alerta que enfrentaremos os nossos medos novamente, e desta vez, em frente aos líderes da Audácia. Portanto, nas simulações teremos que agir como um iniciando sem divergência agiria: enfrentar nossos medos usando os utensílios que a própria simulação nos dará.

– E como eles saberão que não estamos fingindo?

– Eles não saberão se vocês seguirem o que fora ordenado. O tempo em que realizarão a simulação também é um fator crucial: não demorem demais para realizá-las, assim, não irão perder pontos. Ao mesmo tempo, não façam tudo tão depressa, pois eles descobrirão a farsa.

– Saquei. – diz Clary, fazendo uma pausa. – Como sabe disso tudo? Seu irmão...

– Sim, Clary. Meu irmão era um divergente.

+++

Todos nós voltamos de trem.

Tori e eu nos encontramos lado a lado, mas não pronunciamos uma palavra sequer. Sinto que há uma linha tênue e invisível que nos separa, como se estivéssemos bloqueados por ela.

– Obrigado. – digo, realmente agradecido.

– Não. – ela olha para mim. – Fiz o que precisaria ser feito. Ao que estiver a meu alcance, não deixarei que ninguém os machuquem. – ela sorri. – Afinal, vocês fazem parte da minha família.

Retribuo o sorriso. Agora, sinto que a linha tênue e invisível que nos separava fora rompida.

– Preparado para pular?

– Sim. – digo e pulo, alcançando a calçada do trilho. Tori, Joseph e Clary seguem, respectivamente.

Tori nos guia até a entrada do Fosso. Antes mesmo de caminharmos, ouvimos um grito na direção dos trilhos. A tatuadora sinaliza com os dedos que devemos ficar parados, e em passos lentos se direciona até o local.

"Sua respiração ofegante faz com que o inimigo perceba que está com medo. Adapte-se". Lembro do conselho de Amah e regulo minha respiração. Sei que se alguém tentar machucar Tori, irei defendê-la, porém, por enquanto a melhor estratégia é ser silencioso.

– Meu Deus! – grita Tori. – Venham aqui! – ela grita com mais intensidade.

Ao nos aproximarmos, encaramos Tori abaixada segurando o corpo de uma menina que está jogada nos trilhos. Não consigo reconhecê-la, e agora a lanterna de Joseph ilumina o rosto sem vida da garota. Ela possuía cabelos marrons-avermelhados, seu tom de pele era moreno e era alta. Lembrava ligeiramente Julia, a transferida da Erudição que caíra em desgraça.

– Diana. – diz Tori, acariciando o rosto dela.

As lágrimas escorrem sobre seu rosto e sinto que meu peito está prestes a rasgar.

– Ela... Ela era divergente? – indaga Joseph.

– Não sei. Nas poucas vezes em que a vi durante a iniciação, seu desempenho era impressionante. Sua força, seus movimentos... Era uma verdadeira guerreira.

– Ela não era grandes coisas, mas era de casa. – diz Clary, ríspida, mas seus olhos continuam fitando a garota. A nascida acaricia os cabelos de Diana pela última vez e tira suas mãos dali.

Permaneço imóvel, observando o corpo da menina jogado nos trilhos.

– O que faremos agora? – pergunto.

– Chamaremos as autoridades da Audácia. – Tori diz, limpando suas mãos de sangue.

+++

Abro os olhos e observo os outros iniciandos ao acordarem. Todos sonolentos devido a exaustiva tarde de iniciação. Amah, porém, aparece no quarto, indicando que mais um dia de treinamento começará.

– Hoje os treinamentos apenas começarão às 17h, o que significa que não terão a noite livre. – ele anuncia, a voz cansada e o semblante igualmente. – Hoje teremos o enterro de Diana Jones, a inicianda que dera fim à própria vida ontem à noite.

Todos se entreolham, atordoados com a notícia. Uma histeria repentina toma conta do local, e tudo o que consigo fazer é manter minha postura confusa. Embora eu saiba da verdade.

Lembro-me de todos os preceitos vindos da Abnegação. O suicídio, para eles, é uma atitude egoísta. Qualquer pessoa altruísta jamais poderia fazê-lo, pois suicidar é pensar em si próprio. O sofrimento das pessoas, quando um alguém suicida, é levado em conta, logo, seria uma atitude egoísta dar fim à própria vida com o objetivo de acabar com o próprio sofrimento. Entretanto, nada disso é mencionado.

Observo um garoto de cabelos ruivos e longos ao meu lado ao chorar.

– Por quê? Eu não compreendo... Ela estava feliz ao meu lado! Estava feliz com o seu desempenho. Estava... – ele não conclui a frase, apenas chora. Sinto uma pontada de pena, e olho de soslaio para Clary, que retribui o olhar e logo desvia o olhar para a porta. Decido segui-la.

Ao caminhar pelos túneis do Fosso, Clary e eu permanecemos calados. Às vezes, considero o silêncio como uma virtude. Nele, consigo facilmente perder-me em pensamentos e desligar-me da realidade cruel. Porém, ocasionalmente, tais pensamentos podem perturbar-me tanto quanto a realidade.

– Ela era divergente. Não há razão plausível para suicídio. – ela diz.

– Pode ter sido uma coincidência. Não havia ninguém por perto.

– Pode ter sido a Erudição e suas malditas simulações! Eles estão transformando nossa facção num cemitério.

Por fim, encontramos Tori. Ela agarra os nossos braços com força e nos leva em direção ao estúdio.

Chegando no local, vejo que todo o aglomerado de pessoas que costumava-se encontrar ali desaparecera. Tudo o que podíamos ver era a imagem de uma Tori preocupada e cansada nos conduzindo à sua ala de tatuagem.

– Eu não sei se você sabe, mas nós não fugiríamos caso tivesse nos chamado com educação – diz Clary, tentando se soltar, mas a força de Tori se intensifica ainda mais.

– Eles irão nos interrogar. – ela sussurra.

Clary e eu nos entreolhamos.

– Estávamos indo à tirolesa. Quando voltamos, simplesmente encontramos o corpo da garota jogado nos trilhos.

– Eu tenho aptidão à Franqueza. Não sei se conseguirei mentir. – retruca Clary.

– Então fique quieta. Eu e Quatro somos bons com mentiras.

Dou de ombros ao comentário quando vejo quatro líderes da Audácia acomodados na ala de Tori. Eles portam suas armas e nos encaram. Seus olhares me intimidam.

Tori tira suas mãos de nós e se acomoda em frente a uma pilastra feita de vidro, repleta de tatuagens.

– Olá, Tobias e Clary. – diz Max.

– Quatro. – corrijo-o. Ele sorri com desdém e continua.

– Que seja. Acho que devem saber porque estão aqui. A morte de Diana, um de nossos melhores soldados. E, coincidentemente, vocês estavam no local onde todo o ocorrido aconteceu. Podem nos dizer onde estavam na noite e o que viram?

– Estávamos na tirolesa. – digo. – Ao voltarmos, tudo que ouvimos fora um grito e de repente o corpo da garota estava ali, jogado.

– Interessante... E curioso. – responde um outro líder. Ele possui cabelos arrepiados e pintados de roxo. Uma tatuagem de um dragão começa em seu pescoço e sua pele pálida contrasta a tinta preta. – Uma inicianda se joga e tudo que vocês ouvem é seu grito? Quando voltavam de trem não a viram se jogar?

Encaro-o, paralisado.

– Não. – diz Clary. Lanço um olhar a ela, mas ela ignora. – O fato é que quando ouvimos o grito, já estávamos indo em direção ao Fosso. E de repente... – ela faz uma pausa. – O grito.

Reprimo um suspiro de alívio. Pelo menos, em meio à mentiras, há uma verdade.

– Certo. – diz Max. – Na realidade, não gostaria de estar aqui os interrogando. – ele faz uma pausa e sorri fraco. Se eu não o conhecesse, acreditaria no sorriso. – Mas estamos realizando um grande escrutínio entre os iniciandos e...

O líder de cabelos roxos o interrompe limpando a garganta.

– E isso é o suficiente. Muito obrigado.

– E Joseph? – indaga Tori, atrás de nós. – Ele também não será interrogado?

– Será, é claro. Individualmente.

Por um instante, lembro-me da explicação científica de Joseph sobre nossa divergência. Se, de fato, ele estiver relacionado à pesquisa, Jeanine está ciente disso. E provavelmente os líderes da Audácia também.

– Por quê? – Clary pergunta.

– Não lhe devemos justificativas. – diz Max, franzindo o cenho. – Agora saia. Muito obrigado por colaborarem.

Clary e eu caminhamos em passos lentos até a saída do estúdio. Nos entreolhamos e corremos.

Corremos em direção a Joseph.

Encontramo-nos em frente ao abismo. Joseph está no final do aglomerado de pessoas que se reuniram para o enterro de Diana. Paro para observar o local; a frente da multidão está Kira, às lágrimas, discursando algo sobre coragem. Não presto atenção sobre o que ela está falando.

– Onde vocês estavam? - Joseph arqueia a sobrancelha e faz uma careta com o rosto.

– Sendo interrogados, idiota.

– Fomos interrogados por Max e mais três líderes da Audácia. Sobre ontem. Por algum motivo eles querem te interrogar sozinho. – digo.

– Por quê?

– Provavelmente porque você sabe demais. – sussurra a menina, olhando para frente. – De qualquer modo, eles já devem estar chegando para o interrogar. Estávamos indo em direção à tirolesa, e quando voltamos, ouvimos o grito da garota e lá estava ela. Morta.

Ele assente com a cabeça.

– Eu não quero ficar aqui. – dispara Clary. – Ver o corpo dessa garota já me fez ter pesadelos o suficiente.

Olho para o relógio, que marca às 10h43min.

– Ainda temos algumas horas.

+++

Clary e eu estamos no quarteirão dos sem-facção.

Viemos correndo, a fim de esvair nossa mente da fúnebre noite passada. Apesar da sensação de liberdade, meu corpo dói, mas continuo correndo. Observo Clary fazendo mesmo, e sorrio, imaginando se algo, de fato, a abala.

Só paramos quando estamos no fim do quarteirão. A respiração irregular e a neve que cai contribui para uma sensação desconfortável em mim. Ela parece estar sentindo o mesmo. Num ímpeto, ela me abraça.

– O que está acontecendo, afinal? – consigo ouvi-la, embora sua voz esteja sendo abafada pela minha roupa.

– Tudo ficará bem, Clary.

– Por quanto tempo? A alguns dias atrás, eu acreditava numa vida cheia de glória, uma vida estável em minha facção. Agora, tudo isso parece estar distante de mim.

– Tudo isso é temporário. – digo.

Estou mentindo. Estou tão incerto em relação ao meu futuro quanto ela. Gostaria de fixar minhas raízes apenas nos momentos bons em que vivi da Audácia, mas é impossível. Infelizmente, tudo o que sei é que estamos correndo perigo e precisaremos atuar para sobreviver.

– Não sei se conseguirei ficar viva até o final de toda essa loucura temporária. – ela diz, continuando a me abraçar. – Estou preocupada com Joseph.

– Ele, afinal, é da Erudição, certo? É inteligente. E forte. Conseguirá sobreviver.

Tento tranquilizá-la, mas a segurança de Joseph também me perturba.

– Você está certo.

Ela se afasta de mim quando uma sem-facção nos encara continuamente. Encaramos-a de volta, e só então percebo que reconheço aquele rosto. Suas roupas estão desgastadas, mas eram da Amizade. Irmã de Mia, a inicianda que escolhera a Audácia.

Ela vem de encontro a nós. Seus cabelos, antes perfeitamente cacheados, estão desgrenhados. Tento recordar-me de seu nome. Alice.

– Por favor... Me ajudem. – ela diz, tocando em nossos braços. Seus olhos estão cheios de lágrimas, e seu rosto pálido faz-me lembrar de sua irmã. – Minha irmãzinha... avise a ela que não venha visitar à Amizade.

– O que houve? – diz Clary.

– Eu fui estuprada. – as lágrimas agora rolam pelo seu rosto.

– Mas... isso não faz sentido! Você é estuprada e simplesmente é expulsa da facção?

– Não. Eu o assassinei. – ela diz, um tom mais baixo que o habitual. – Eu assassinei o estuprador. Peça para que ela não venha visitar nossos paizinhos na Audácia, por favor... Eles disseram que caso uma de nós nos aproximemos, sofreremos humilhação.

Semicerro os olhos, e quando os abro, olho a minha volta. Observo uma Chicago destruída após a guerra que nos levou a nos dividir o governo em cinco facções. Nos garantiram segurança. Garantiram um sistema justo.

Encaro a garota novamente. Não estão cumprindo com o que prometeram.

Não estamos seguros. Ninguém está.


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