Fire & Desires escrita por Pear Phone


Capítulo 17
Shadows


Notas iniciais do capítulo

GOSTARIA DE ME DESCULPAR pela demora e pelo capítulo um pouco pequeno demais levando em conta que a demora foi grande. Mas eu precisei de dias pra entender esse capítulo e sentir o que ele tinha a oferecer.
Espero que entendam, e se não entenderem POR FAVOR QUESTIONEM. Quanto mais questionamento, melhor.

Quero agradecer infinitamente pelas duas recomendações que recebi nesse intervalo de tempo! Amo muito vocês! Mesmo! De verdade! Amo com todas as minhas forças! Obrigada!
E o uso exagerado de exclamações é proposital!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/474729/chapter/17

Ali não era muito longe da Seattle com a qual eu e ele estávamos acostumados, mas lá dentro chegava a ser ainda mais gelado.

Eu olhei pro pianista de relance e sua expressão era fria. Tão fria quanto as paredes da imensa sala. Ele estava nervoso; talvez estivesse nervoso por mim.

A sala estendia-se pelo primeiro andar inteiro — além da cozinha, onde, por enquanto, eu não teria coragem de pisar — e eu estava decidida a subir as escadas de madeira em direção ao corredor que levava aos quartos. Passei pela lareira e em seguida observei os degraus um pouco de longe. Havia a mesma aparência morta, apagada e acinzentada de todo o resto da casa, e exalava-se o mesmo passado. O mesmo trauma.

Eu senti meu coração bater forte quando meus pés alcançaram o primeiro dos degraus. Minha respiração pesou. Foi como se eu não pudesse aguentar. Foi uma ansiedade voraz e um medo que aumentava de proporção, assim eu me movimentava para subir o próximo degrau. Segurei o corrimão com firmeza e me apoei no pianista por um certo tempo. Era estranho, aterrorizante. Era como se amanhecesse outra vez. Era quase como se o tempo tivesse parado, e depois continuado numa rapidez que eu nunca tinha experimentado e que eu não teria medo de experimentar. Mas, na verdade, o tempo tinha recomeçado de novo.

Eu parei no último dos degraus. Não havia outra escada. Não havia mais um andar.

Recomeçar de novo.

Era redundante, era nada.

O silêncio era a água da chuva que pingava lentamente do teto, era a umidade nas paredes.

Eu vi tudo passar pela minha cabeça, tudo mesmo. Como se eu tivesse a chance de viver esse tudo outra vez. Eu vi meus pais vivos, também vi meus pais mortos. Vi minha tia-avó, meus primos, minha família. Olhei, dessa vez, para cima. Vi a escuridão e me afundei nela — me afoguei nas gotas de chuva que passaram a cair continuamente.

Chorei comigo mesma e com aquela chuva. A água trilhava um caminho quase infinito pelo meu rosto, e me permiti sentir o gosto salgado das lágrimas.

Quis me atirar nos numerosos degraus que tinha deixado para trás, mas era tarde. O corredor estreito estava ali, chegava até a me encarar, e eu tinha que passar por ele. Tinha que entrar naquele quarto que tinha sido meu durante os tempos bons e ruins. Tinha que fazer isso pelos meus pais. Tinha que fazer isso pela madrugada anterior.

Por isso ergui a cabeça e continuei a andar. A água parou de pingar do teto, dando lugar ao som dos meus passos — era tudo que eu podia ouvir enquanto andava, a madeira já não rangia. Senti meu coração apertar e até pensei em desistir, mas não o fiz. Não havia tempo para desistência e eu não me entregaria tão facilmente. Não quando faltavam poucos segundos — mas, na cruel realidade, não faltavam poucos segundos.

O tempo esgotou quando fui impedida de continuar o caminho até a porta que localizava-se no final do corredor estreito.

— Sam? O que aconteceu? — ouvi a voz do pianista. Ele pareceu sair correndo em minha direção no imenso corredor.

Ouvi seus passos.

Não movimentei meu corpo. Continuei atirada no chão imundo.

— Eu só tropecei numa maldita madeira. — Limpei as lágrimas. — Onde você estava?

— Eu me distraí.

Não compreendi exatamente o sentido da distração que ele falava. Ele me ajudou a levantar e me abraçou. Eu retribuí o abraço.

— Você está bem?

— Estou, sim.

Fiz questão de sentir o corpo dele no meu e esquecer do resto por um tempo que eu considerava longo demais.

Mas eu não estava bem. E também não conseguia andar porque percebi que tinha torcido meu tornozelo de novo — o mesmo tornozelo que eu tinha torcido tempos atrás. A dor não foi maior do que a sentida depois, quando eu entrei naquele cômodo que não via desde os meus dezesseis anos.

Eu lembrava de um tempo bem antes do qual eu vivi naquela casa. Eu conseguia lembrar da minha infância numa intensidade bem maior.

Lembrei dos sonhos e dos pesadelos quando sentei naquela cama e senti o cheiro das cobertas. Encostei naquele travesseiro e segurei as lágrimas.

As paredes estavam pintadas num marrom misturado com cinza e havia uma variedade de pôsteres rasgados distribuída por elas. Eu fantasiava minhas sensações como nos sonhos. A morte estava me encarando como nos pesadelos.

Era o cômodo menos empoeirado e parecia ter sido recentemente usado por alguém. Havia o abajur, a umidade, a janela, o cheiro de melancolia, os armários, a cama. Havia o resto dos móveis não tão empoeirados quanto os da sala. Havia um retrato meu e outro da minha mãe. Havia, também, uma vela apagada no criado-mudo. E havia muito além daquilo.

Eu conseguia enxergar muito mais do que era possível enxergar.

Ainda sentada na cama, estiquei minhas mãos e abri uma das gavetas onde eu escondia os objetos cortantes. Minha tia-avó mal dava falta das facas e dos outros instrumentos que costumavam ficar na cozinha. Ela sabia de tudo e não se importava. Nunca se importou.

Tudo continuava ali.

— Sam... Eu sei que não está tudo bem. — Me virei sem expressão alguma. Já tinha até mesmo esquecido que não estava sozinha.

— Está.

— Não está.

Era fácil para ele perceber que não estava.

— Posso fazer uma massagem no seu tornozelo? — perguntou e se sentou comigo, na minha frente. — Está doendo muito?

— Não, não precisa.

— Eu sei que precisa. — Senti quando levantou a barra da minha calça jeans e começou a massagear o ponto onde eu tinha torcido.

Naquele momento, o desejei mais que antes.

Mais do que quando adivinhou do que eu precisava.

Mais do que quando insinuou que eu não estava bem.

E fechei meus olhos.

Eu pensei em responder "eu preciso de você", mas fiquei quieta. Foi ele quem tirou as mãos do meu tornozelo cuidadosamente e me beijou da maneira mais rápida que já tinha me beijado. Nossos lábios secos se encontraram com tanta avidez que não pensei em nada além de beijá-lo ainda mais.

Naquela hora, eu senti um gosto de café gelado — gosto de café um tanto amargo e ao mesmo tempo doce do jeito que eu sempre gostei. Senti sua língua molhar meus lábios e depois adentrá-los de novo, enquanto a pressão de seus dedos descia para minha cintura. Senti cada um deles tocar a minha pele quase que totalmente enregelada por baixo da blusa. Suas mãos eram quentes no exato oposto da minha pele, o que, de certa forma, fez com que eu o desejasse ainda mais. Senti meu corpo esquentar. Meus lábios também esquentaram.

O prazer só podia ter gosto de café — foi a última coisa que passou pela minha cabeça.

Hoje sei que só o desejo tinha gosto de café.

Não quis dizer que o prazer é nada além de insípido. Ele é prazeroso demais para não ter um sabor, decerto. Decerto tinha sim um sabor — o prazer tem o sabor que imaginamos, que sentimos. Mas não foi na amargura ou na doçura que pensei.

Eis aqui o que pensei do prazer:

O pensei como parte do alvorecer mais escuro.

O pensei como o café que minha tia-avó desnaturada não dava-se o trabalho de esquentar todas as manhãs.

O pensei como se fosse carregado de sombras, como o quarto. Como aquela casa que desmoronaria num só toque.

A casa que não desmoronou.

E, claro, havia o gosto de café, que depois era levemente adocicado. Não era o prazer, mas sentia como se ambas as sensações estivessem ali. Lado a lado.

Suas mãos e minha pele se encontravam cada vez mais intensamente por baixo da minha blusa. Ele tinha tocado em uma das minhas cicatrizes: a única delas que começou com uma tentativa de suicídio. Era quase da minha cor pálida, mas estava ali. Eu ainda sentia a dor de pensar em quando tudo aconteceu.

Continuei sentindo os lábios do pianista passearem nos meus por algum tempo. Seus dedos me tocavam como se estivessem tocando aquele piano prateado no dia em que o conheci.

Continuei sentindo falta de ouvir aquelas notas. E vontade de me livrar daquela roupa que estava entre nós.

Mas eu ainda era Samantha Puckett. Eu sabia que dentro de alguns segundos ele perceberia que tinha ido longe demais e repreenderia a si mesmo. Eu sabia que ele pediria perdão pelo que tinha feito, como se eu precisasse perdoá-lo por alguma coisa. Não, eu não precisava. Só precisava que ele não tivesse medo de me machucar.

Eu queria que ele me amasse. Que me desejasse o bastante para esquecer do resto.

E eu queria poder afirmar com toda a convicção do mundo que foi o que ele fez. Que eu me senti amada naquele dia. Que a cafeína circulou pelas minhas veias e todo o resto aconteceu.

Eu poderia dizer que tentei não abrir meus olhos.

Mas eles se abriram sozinhos.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Obrigada pelos reviews *~~~~~*