Uma Balada para Lionor escrita por Anya Tallis


Capítulo 4
De prisioneiros, da justiça e injustiça


Notas iniciais do capítulo

Mais um capítulo, para não perder o costume.
Ao reler esta parte da história, fiquei pensando em como eu poderia estabelecer as mudanças de ponto de vista dentro da história, uma vez que utilizo um narrador onisciente, do tipo que lê pensamentos... optei por não mudar essa face da história. É como se eu estivesse filmando, e decidisse de repente filmar um personagem diferente. Acho que me acostumei a imaginar minhas histórias como filmes e seriados...
Boa leitura!



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Lionor não suportou encarar Nigel, por uma noite inteira e uma manhã. Mas, após a refeição, quando transportavam os dois prisioneiros para a Fortaleza do Água, sentiu uma irresistível vontade de descer do cavalo, puxá-lo pela camisa e esbofeteá-lo, até que conseguisse minimizar uma parte da raiva que sentia. No entanto, limitou-se a emparelhar o seu cavalo com o dele e fitá-lo com o olhar decepcionado.

– Como pode?

Ele desviou o olhar. Não iria discutir com ela, não na frente de Hermes e dos dois prisioneiros. Wilhem e Claire estavam amarrados um ao outro, no fundo de uma carroça de madeira, expostos à visão de todos que passavam pela estrada, como se fossem malfeitores. A menina estava envergonhada e não parava de chorar, mas Wilhem estava tão entorpecido pelas ervas que tomara e tão paralisado pelos emplastros e ataduras em volta do ferimento em suas costas que mal ousava abrir os olhos. O sol, os mosquitos e a poeira os incomodava, mas já não podiam reclamar, depois que o duque lhes colocara trapos de tecido em cada boca.

– Conversamos na fortaleza, Lionor. – o cavalo de Nigel deixou-a para trás.

Mas não conversaram. Estavam mais ocupados em interrogar os prisioneiros, tentando dialogar com os dois depois que haviam sido desembarcados da carroça e levado para celas no subsolo da Fortaleza, um lugar escuro e úmido com grades que permitiam ver o rio. Era impossível conversar com Wilhem, a cabeça pendendo, os olhos meio fechados e a boca meio aberta, ainda sob o efeito de fortes poções. Hermes havia cuidado do ferimento que ele mesmo inflingira, sob os protestos de Nigel, que achava que o Duque devia tê-lo deixado morrer.

– Digam-me – Hermes falava calmamente, voltado para Claire – O motivo desta tentativa de assassinato.

– Eles incendiaram nossas casas, Duque... – ela falou, fungando - com nossa família dentro.

– Estavam mortos – interveio Nigel, indignado – todos mortos pela peste. Do jeito que fala, parece que os assassinei.

Hermes fez um gesto para que o rapaz se calasse. Nigel era inquieto demais, e andava em círculos, nervoso, segurando a mão imóvel e enfaixada.

– Incendiaram porque eu ordenei – o duque falou, como se explicasse algo a uma criança. - E pretendo restituir a todos os sobreviventes que retornarem um vilarejo reconstruído, devolvendo-lhes o valor em bens materiais que possam ter sido levados pelas chamas. O rei Miguel providenciou um orçamento generoso para que as casas sejam refeitas.

A menina ruiva balançou a cabeça, desgostosa.

– Bens materias não me importam. Mas a minha família merecia um enterro digno, com cântigos e preces, e não um fim numa pira, tal qual selvagens.

– Aposto que não se importam com seus cântigos e preces depois que os corações já não batem e os olhos se fecham – Nigel interrompeu novamente – Fizemos um favor a vocês. Se tocassem nos corpos contaminados, vocês dois poderiam contrair a peste e estariam mortos agora, tal qual seus entes queridos.

Uma sombra pareceu abater-se sobre o rosto de Hermes. Por um momento, Nigel se esquecera de que o caçador também tivera a família dizimada pela peste, e se arrependeu das palavras proferidas para ferir Claire. Envergonhado, decidiu deixar o Duque conversar com os prisioneiros a sós.

Encontrou Lionor à entrada da fortaleza, banhando-se no sol da tarde enquanto cacheava os cabelos com os dedos, o olhar perdido no vazio. Abraçou-a pelas costas, mas ela se desvencilhou. Estava zangada demais para que um simples abraço a fizesse esquecer. Jamais considerara Nigel um santo; estava muito longe disso, e ela não era cega. Mas o que ele havia feito a ferira profundamente, pois havia sido bem debaixo de seu nariz.

– Nigel, tenha a decência de...

– Perdoe-me – ele não deixou que ela terminasse, e contornou-a para beijar-lhe os lábios – Perdoe-me, Lionor. Se houver algo que eu possa fazer para que possamos esquecer o que houve, então me diga, e eu o farei.

Ela estreitou o olhar. Sentiu que escutava palavras vazias. Não era a primeira vez que o via escapulir enquanto a fazia esperar, mas ele mesmo jamais esperara por ela.

– É esse tipo de respeito que diz ter por mim, Nigel Klein? Ou respeito, para você, limita-se somente a não me desonrar?

– É complicado, Lionor – Não havia como fazê-la entender; ela nunca se sentiria como um rapaz de dezoito anos, jamais se dividiria entre o desejo e o que ele denominava respeito. Se conseguisse fazê-la entender que a tentativa de assassinato que sofrera era mais importante do que o motivo que o levara a subir as escadas da estalagem com os dois jovens de Curvavento, talvez o fato se tornasse menos relevante para ela – Deve entender que, se a trato dessa forma, é porque gosto de você e a considero importante. E aquela garota ruiva... nem sequer lembro o nome. É em você que penso, e é você que amo.

– Compreendo. E há coisas que não podem ser feitas com a mulher amada... somente com as vagabundas e os rapazes das tavernas – ela ergueu os ombros, fingindo não se importar – Fico até contente que não me coloque no mesmo nível que esse tipo de gente.

Mas não estava contente, estava muito longe disso.

Mais tarde, perguntou a Hermes o que fariam com os prisioneiros. Não podiam enforcá-los, pois não havia acusação que justificasse a pena; a ameaça mal fora concretizada, por serem os acusados demasiadamente amadores. Tampouco poderiam ser mantidos presos eternamente, já que uma situação como aquela pedia uma pena mais breve. O Duque pretendia mantê-los nas masmorras por alguns meses, até que se convencessem que haviam errado e pudessem retornar para o vilarejo já expurgado e reconstruído. Se tivessem tempo para a reflexão, sozinhos nas masmorras frias, escutando o som da correnteza do rio e se alimentando de mingaus brancos e frangos com verduras, talvez compreendessem que o duque ordenara o incêndio para preservar-lhes a saúde e evitar que a epidemia os seguisse pelo Água de Carpas, chegando até a corte e até mesmo nas distantes Terras do Sul, onde o rio tornava-se mais largo e o reino terminava. Lionor achou a ideia excelente; se fossem sensatos, Wilhem e Claire até mesmo agradeceriam.

– Ou, talvez, quando saírem, tentem me matar de novo – lembrou Nigel – Certifique-se de que eu já esteja na corte quando os soltarem.

– São apenas camponeses – lembrou Hermes – Tem medo deles?

– Tem razão, são somente camponeses – ironizou, erguendo a mão ferida, e apontando com a outra o fino corte que Wilhem fizera em seu pescoço quando encostara a lâmina. Podia apostar que o Duque e Lionor concordavam em libertá-los somente porque não havia sido o sangue deles no assoalho do quarto na noite anterior.

– Ora, se não fomos pegos de surpresa – Lionor fez questão de ressaltar – eles jamais conseguirão nos ferir.

Haviam sido colocados em celas separadas, a fim de que não pudessem conspirar para escapar dali. Não havia nenhum guarda nas portas; não era necessário. Não eram criminosos, muito menos perigosos. Bastavam as grades, e um cadeado. A janela gradeada permitia que vissem uma parte do céu, mas era alta demais para que tentassem olhar através dela. E, se o fizessem, veriam somente alguns metros de abismo, embora estivessem no subsolo, pois a Fortaleza era localizada em uma encosta.

Apesar da janela, a cela era mal iluminada, e pequena demais; a cama limitava-se a um banco de pedra, e a latrina ficava à mostra, algo completamente humilhante para uma moça. Claire agradecia aos céus por estar sempre na penumbra, pois odiaria ser flagrada urinando por algum dos criados que levava a comida.

Cada minuto na cela parecia um dia inteiro, e cada dia, um mês. Na primeira noite em que passara na cela, a garota teve a ideia de raspar um pequeno traço na parede a cada pôr do sol, para saber a quantidade de dias que passava ali. Mas a noite fora longa demais, cheia de lágrimas e medo. Jamais imaginara, em sua vida inteira, que dormiria num cárcere. Sempre fora leal, justa e trabalhadora, e nunca fizera nenhum mal a qualquer pessoa, mas a visão do seu vilarejo em ruínas enegrecidas, os tufos de fumaça sufocando-a e confundindo-a, impedindo-a de achar o caminho de casa, despertara em seu peito o desejo de vingança. Ainda que lhe entregassem um castelo no lugar de sua humilde casa de Curvavento, ainda que buscassem entre os escombros os corpos carbonizados de seus familiares e os enterrassem no cemitério pessoal da família real, de nada adiantaria. Ela não se conformava; era culpa de Nigel Klein e Lionor Braga, e também do Duque, o fato de estar presa naquele momento, e de Wilhem estar ferido, quase inconsciente e sozinho numa cela mal cuidada e mal cheirosa, deitado na cama de pedra, sem conseguir se levantar. Hermes o atravessara com a lança, e o ferimento podia ter lhe causado a morte. Por tudo aquilo, e por tudo que haveria de sofrer enquanto permanecessem nas masmorras, Claire se vingaria. Ainda não sabia como, mas teria tempo de sobra para pensar a respeito.


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