Uma Balada para Lionor escrita por Anya Tallis


Capítulo 17
De Pés Descalços


Notas iniciais do capítulo

Este é um capítulo um pouco diferente, pois traz mais de um ponto de vista. Há uma parte protagonizada por Oriana e pela rainha, além de Lionor. E há, também, o aparecimento de uma velha conhecida nossa. Boa leitura a todos!



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A longa procissão seguia a pé, desde a corte, em direção ao santuário. Centenas de pessoas caminhavam, sem sapatos, pela terra esturricada e cheia de pedregulhos. Os cantos eram entoados apenas pelos mais velhos, com vozes agudas, trêmulas e arrastadas, que faziam qualquer música religiosa parecer pavorosa. Crianças eram arrastadas, idosos se apoiavam em suas bengalas, adultos se acotovelavam ao disputar as esmolas distribuídas por alguns membros da corte.

Ao centro de um círculo formado pela Guarda Real, Anna Thereza e Oriana contrastavam absurdamente com o restante da multidão. Ainda que vestissem roupas simples, tinham uma beleza e altivez que faziam-nas parecer trajadas para um baile, e não para um evento religioso. E, além disso, as mulheres da família real e sua enorme escolta eram as únicas pessoas em toda a procissão que estavam montadas a cavalo em vez de caminharem de pés descalços pela estrada. Miguel não quisera vir; considerava tudo aquilo um festival de hipocrisias. Dizia que uma roupa velha e a ausência de um par de sapatos jamais iriam transformar um soberbo em humilde, ainda que este percorresse quilômetros a pé, com calos nos pés descalços. Tampouco Hermes teve interesse em participar do festival; preferiu permanecer no castelo. Nigel não teve escolha a não ser permancer na torre para supostamente fazer a segurança do rei – e, se houvesse sido dada a chance de escolher, não teria ido, ainda assim. Desconhecia o propósito do festival, não conhecia absolutamente nada sobre religião e não manifestou a menor vontade de usar uma roupa velha e caminhar por quilômetros escutando músicas que jamais escutara na vida. Na verdade, não estava realmente fazendo a segurança do rei; em vez disso, jogava cartas com o próprio Miguel, junto a Alonzo e o Duque. Como de costume, Nigel estava perdendo quando as meninas os deixaram.

Lionor era a única mulher na escolta. Queria que Nigel estivesse ao seu lado, vendo-a desempenhar tão bem o seu papel, mas tanto a rainha quanto a princesa detestavam o rapaz; ainda que ele desejasse participar do evento, certamente teria sido mantido afastado.

Quando as damas da corte começaram a distribuir as esmolas, a multidão as cercou, com ar sedento. Parecia que, repentinamente, os cânticos e orações haviam deixado de ser prioridade, para dar lugar às moedas de ouro que eram tiradas das bolsas de veludo azul e vermelho. Alguns insistiam em adentrar o cerco, para receber as moedas das mãos da própria rainha ou da princesa, como se o dinheiro tivesse mais valor por isso. Havia outros que desejavam dirigir súplicas às duas, e os guardas foram obrigados a abrir caminho para que passassem.

– Para trás, menina – um homem alto e forte, o subcomandante da guarda, fez um gesto aborrecido para que Lionor se afastasse. Parecia se incomodar com a presença da garota. Se Nigel estivesse aqui, ela pensou, esse homem não ousaria falar assim comigo. Ele era Condestável, era o superior de todos os membros da escolta real. Quem o contestaria?

Mas Nigel não estava lá para defendê-la, e ela não queria sentir que precisava ser protegida. Acatou a ordem e amontoou-se ao fundo, desolada. Estava longe de Oriana e Anna Thereza, mesmo depois de haver prometido acompanhá-las, mas elas nem pareciam ter percebido que Lionor havia mudado de posição na escolta. A garota entristeceu-se, mas não demonstrou. Não são suas amigas, nunca serão. Observava as duas ao longe, pensativa. Devia ter imaginado que aquela história de colocá-la na guarda havia sido apenas um consolo por não poder competir nas justas. Uma garotinha, apenas uma garotinha disfarçada de cavaleiro. Uma fantasia, nada mais que isso.

Centenas de pessoas haviam se aglomerado em volta da rainha e da princesa, que haviam descido dos cavalos para que o povo lhes dirigissem súplicas e pedidos. Os que tinham marcas de doenças de pele ou ferimentos, ou roupas demasiadamente sujas e malcheirosas eram prontamente afastados de Anna Thereza e Oriana, com cuidado, pelos guardas. Somente os de aparência mais bem cuidada conseguiam se aproximar o suficiente. Uma jovem mãe, que parecia ser mais nova que Oriana, pediu bênçãos à rainha, como se ela fosse alguma espécie de santa. Um casal de idosos queria que a filha viúva servisse no castelo como cozinheira, pois fazia salgados e ensopados esplêndidos. Um homem absurdamente obeso suplicou à princesa que tivesse misericórdia do seu filho, que havia sido apanhado roubando e aguardava julgamento nas Terras do Sul. Surgiu também uma mulher de olhos claros e cabelos levemente acobreados, de trinta e poucos anos, arrastando um menino de cerca de treze ou catorze anos, que lembrava vagamente Alonzo; a mulher dizia ter sido criada do castelo por anos, e reclamava por ter sido expulsa do serviço após engravidar do falecido pai de Alonzo. Oriana teve dúvidas se a mulher queria pedir alguma ajuda financeira, o emprego de volta, ou se simplesmente estava desabafando para tentar convencê-la que o pequeno bastardo era seu primo em segundo grau, assim como Alonzo o era. Enquanto escutava pacientemente a história, uma mão branca segurou-lhe o pulso. Surpresa, a princesa estremeceu. O subcomandante parecia prestes a dispersar a multidão para acabar com a balbúrdia, mas Oriana fez um sinal para que ele não se preocupasse. Estava até mesmo feliz com a interrupção; a antiga amante do falecido conde falava demais.

– Vossa Alteza – a mão branca pertencia a uma garota um pouco roliça, e ainda assim bastante formosa; com um capuz cinzento a cobrir-lhe os cabelos, mal era possível ver o seu rosto. Ainda assim, pareceu desesperada e envergonhada – Tenho uma denúncia grave a fazer... peço-lhe que me escute e não duvide de minhas palavras.

Oriana suspirou. Uma procissão não era o momento ideal para fazer denúncias, mas não seria educado expulsá-la. Era um evento que pregava a humildade, e a princesa resignou-se.

– De que se trata?

– Um guarda de Vossa Alteza tentou me violentar – ela afastou uma parte do capuz com as mãos, revelando o rosto choroso e o nariz vermelho, enquanto uma mecha de cabelos ruivos caindo-lhe pela testa – Juro que jamais fui tocada por um homem antes que ele trouxesse desonra à minha família, que jaz morta pela peste em Curvavento. Não tenho mais ninguém por mim, e agora isto...

Soluçou tanto, e de maneira tão exagerada que Anna Thereza se aproximou para ver do que se tratava. Indagou.

– O que temos aqui?

Antes que Oriana começasse a narrar o que acontecera, a garota vestida de cinza choramingou para a rainha, resumindo o que acabara de contar à princesa. Quase sem perceber, Anna Thereza olhou ao redor, fitando o rosto de cada guarda que as escoltava.

– Um dos nossos homens? Não pode ser, são todos honrados e juraram proteger o nosso povo... consegue reconhecer o homem que fez isso?

– Era um jovem... creio que o nome dele seja Klein – a menina enxugou as abundantes lágrimas que corriam pelas suas bochechas redondas e coradas.

– Nigel Klein? – A rainha tentou não parecer chocada, mas não conseguia disfarçar – Senhorita, se gostaria de fazer uma queixa formal contra o rapaz, tenho certeza de que...

A garota ergueu o olhar para algum ponto acima delas, arregalou os olhos e correu, misturando-se ao resto da multidão e desaparecendo. Oriana virou-se para ver quem havia acabado de chegar, e viu Lionor em seu cavalo, atrás dela. Tinha um ar sério.

– O que ela dizia? Pensei ter ouvido um nome familiar.

Só então a rainha percebeu que havia berrado o nome de Nigel. Desconcertada, fez um gesto vago.

– Conversaremos no castelo.

Mas só voltaram ao castelo muito mais tarde, à noite, finda a procissão. Estavam todos demasiadamente cansados e famintos, e Lionor havia sido mandada de volta para a retaguarda da escolta novamente, não lhe sendo possível interrogar a rainha acerca da cena que presenciara. Não vira o rosto da menina de cinza, mas tinha a certeza absoluta de que a rainha havia falado de Nigel – e, sempre que ela o fazia, jamais era por um bom motivo.

Assim que adentraram a torre, Lionor escorregou para o lado da rainha.

– Vossa Majestade disse que conversaríamos no castelo. – disse-lhe, com ansiedade no olhar - Estamos no castelo.

– Conversaremos na sala do trono, após um banho relaxante, e uma boa refeição. – retrucou Anna Thereza – No entanto, se estiver muito curiosa para saber o teor da conversa, adianto-lhe: Nigel Klein violentou uma garota em Curvavento.

– Ele não... – Lionor teve a sensação de ter levado um soco no estômago – Perdoe-me, Vossa Graça, ele não fez isso.

A rainha deu um leve sorriso.

– Como pode saber, Lionor? Mesmo que estejamos com eles durante todo o dia, nossos homens sempre vão arranjar um jeito de fazer coisas que pensam que nunca saberemos. Melhor que aprenda desde já.

Sumiu em meio a suas criadas, levando Oriana consigo, sem dar a Lionor a chance de defender o noivo. Não, ele não faria isso. Ou faria? Como poderia saber? Ele já demonstrara que podia ser infiel, e já demonstrara também ser injusto e impiedoso em diversos momentos. A garota desceu até a cozinha, mas não conseguiu comer. Tampouco teve ânimo para trocar a roupa que usara para fazer a escolta; somente descansaria quando descobrisse a verdade.


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Notas finais do capítulo

Por enquanto é só!
É mencionado, neste capítulo, que Anna Thereza e Oriana não gostam de Nigel Klein. Eu pensei em contar um pouco sobre as outras histórias que escrevi, para justificar esta antipatia que as duas nutrem por ele, mas depois pensei: não é difícil odiar Nigel Klein, quando você convive com ele. Então acho desnecessário explicar. Mas resumo um pouco: embora ele não seja nobre, e esteja na corte apenas por causa de sua proximidade com o rei, ele costuma ser bastante atrevido e insolente em relação às pessoas de posição superior. Sem contar, claro, outros motivos que serão revelados nos capítulos próximos.
Até mais!