Uma Balada para Lionor escrita por Anya Tallis


Capítulo 10
De negócios


Notas iniciais do capítulo

Voltei, trazendo mais um pouco das aventuras de Claire. Ela é uma personagem que, nesta parte da história, só interage com estranhos; por isso, os capítulos que tratam dela sempre tem poucos diálogos. Hoje não vou prolongar as notas porque até eu estou ansiosa pelo capítulo seguinte, então boa leitura e até a próxima.



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– Não!

Claire caiu de joelhos na grama crescida, as mãos cobrindo o rosto. Assim que se aproximara da fortaleza e notara a falta dos cavalos, pensara que o duque e seus companheiros poderiam estar somente caçando ou passeando, como já haviam feito outras vezes. Mas os cavalos da escolta deles também desaparecera, assim como as carroças de mantimentos. Tinham ido embora, tinham voltado para a corte. O que ela faria agora para ver Wilhem e libertá-lo?

Chorou durante quase meia hora, desolada, os gravetos no chão machucando seus joelhos, até que resolveu engolir as lágrimas e sentar no velho toco de árvore, fungando. Tentou ser sensata; haveria uma chance remota de que houvessem deixado Wilhem na fortaleza. Mas ela não poderia saber, pois o lugar era muito bem protegido, e as janelas eram altas demais para que ela pudesse ver o que ocorria no interior das torres.

Todos os dias, quando vinha espiar a fortaleza pela manhã e à noite, Claire notava que as luzes das masmorras pareciam apagadas. Ela não podia ver com precisão, pois as celas ficavam no subsolo, em uma encosta. Mas havia sempre uma luz acesa em uma das torres, e mais de uma vez Claire vira vultos na janela. Supôs que aquele lugar poderia ser a enfermaria onde havia colocado seu irmão de criação. Tentou se aproximar a cada dia, mas na noite do churrasco ela quase fora pega. Não imaginava que Lionor passaria por aquele lugar bem na hora em que Claire tentava visualizar o interior da fortaleza com mais proximidade. Mas, depois que as carroças e os cavalos sumiram, ela ousou contornar o fundo da fortaleza e viu, na janela da enfermaria, uma cabeça com desgrenhados cabelos vermelhos. Pulou e acenou tentando chamar-lhe a atenção, mas ele não a viu, e um guarda percebeu a presença dela, fazendo-a correr dali rapidamente.

Desolada, Claire retornou à hospedaria para tomar uma sopa quente e pensar melhor. Mas, daquela vez, não foi caminhando. Havia resgatado o burrico de Wilhem, que havia sido deixado na estalagem do Carpas com todos os pertences dos dois, no dia em que haviam sido presos. Assim que chegara no local, a mulher do dono tentara enxotá-la.

– Dei a você um emprego e, em menos de um turno, consegue causar uma confusão e ser presa? – a velha brandia uma vassoura e praguejava, mas depois admitiu que o burrico com as sacolas estava amarrado no fundo do pátio, pois o marido estava esperando que alguém os viesse buscar, antes de se decidir se venderia o animal e jogaria os objetos fora, ou se venderia os objetos e ficaria com o animal para si.

O homem havia optado pela segunda ideia, e Claire pode resgatar somente o animal. Perdera suas roupas, chapéus, bijuterias, presilhas de cabelo e roupas de baixo, além de uma água de colônia, algumas poucas moedas, um pente, camisas e calças de Wilhem, entre outros objetos. Não conseguiu nem mesmo reclamar que havia sido furtada, pois causara um grande prejuízo aos cofres e à reputação do Água, e preferiu partir com o burrico antes que recebesse merecidas vassouradas.

Após a sopa, Claire foi até o mercado com o burrico e o broche de ouro. Não se considerava uma boa comerciante, mas precisava fazer o que fosse preciso para conseguir viajar estrada afora à procura de Wilhem. Precisava de um cavalo, não de um burrico; seu animal jamais aguentaria uma viagem até a corte. Alguém lhe oferecera um colar de pedras preciosas em troca do broche, mas a menina recusou a proposta, suspeitando que aquelas pretensas pedras preciosas eram nada mais que vidro pintado. Podia ser somente uma garotinha que não entendia de negócios, mas entendia sobre adornos femininos e sabia diferenciar joias e bijuterias, e tudo que menos precisava naquele momento era de alguém que a enganasse.

– Um burro e um broche por um cavalo? – o mercador cuspiu na terra, com aquele bigode longo e grisalho emoldurando sua boca fina e torta – O que pensa que isso aqui seja, a coroa da rainha Anna Thereza?

– É de ouro – Claire tentou parecer altiva, mas era péssima nisso, e pareceu mais estar implorando do que explicando.

– Te dou duas ovelhas. Pode ir tosquiando e guardando as moedas que ganhar, e aí terá o seu cavalo em alguns meses.

Alguns meses? Ela precisava de bem menos que isso, precisava de alguns dias. Não poderia ficar juntando moedas embaixo de um colchão enquanto Wilhem jazia ferido e sozinho numa maca. Mas não podia montar no broche e sair cavalgando até o castelo do rei Miguel e da rainha Anna Thereza; tampouco poderia montar nas ovelhas, mas acabou aceitando a oferta, por não ter conseguido nenhuma proposta melhor.

No dia seguinte, conseguiu um comprador para a lã de suas ovelhas. Como lhe faltava dinheiro para continuar pagando sua hospedagem e a comida, precisou levar também um dos vestidos luxuosos que comprara na sua primeira visita à feira e que nunca usara. O mais difícil foi vender as ovelhas tosquiadas, mas Claire não podia levá-las de volta à estalagem. Na noite anterior, não lhe fora permitido entrar com os animais, e ela passara a noite em claro vigiando os bichos no pátio para que não fossem roubados. Foi preciso que berrasse no meio da praça, fizesse promoções e chantagem emocional, para que o mesmo velho que lhe vendera as ovelhas viesse buscá-las de volta, desejando trocá-las pelo seu burro. Ela protestou.

– Comprei-as por um burro e mais ouro. Como um burro sem ouro pode comprá-las de volta?

– Não seja insolente, menina. Está passando fome, não tem o que escolher. Elas estão tosquiadas, valem bem menos do que quando estavam cobertas de lã.

Claire fez as contas. Tinha duas ovelhas tosquiadas, somadas ao dinheiro da lã e ao dinheiro do vestido. Se realizasse a troca, ainda teria as moedas que conseguira, e o seu burrico de volta. O burrico, somado às moedas que conseguira pela lã, poderia resultar no valor que pagaria por um cavalo, sem que precisasse mexer nas moedas que trocara pelo vestido. Começou a ficar confusa, sem entender se o preço da lã somado ao preço das ovelhas valeria mais do que as ovelhas inteiras, quando ainda estavam com a lã presa ao corpo. Era uma péssima comerciante, inexperiente, não sabia quanto valia cada coisa isoladamente.

– Não quero mais trocar – decidiu – quero somente vender. Quero tudo em moedas, ou nada feito.

– Ninguém vai comprar ovelhas peladas – o velho resmungou.

– Vão sim – Claire alterou o tom de voz – Alguém que tenha carneiros, para cruzar. Quem as comprar, além de ter mais e mais lã, vai poder fazer filhotes e aumentar a criação.

Teve que percorrer fazendas a pé, arrastando os animais amarrados por cordas, os pés doloridos e cansados. Após receber três ou quatro recusas, um fazendeiro alto e quase tão musculoso quanto o Duque deu uma gargalhada tão sonora que ela recuou, assustada.

– Quer vender estas ovelhas para comprar um cavalo? Por que está fazendo essa burrice, menina? Ovelhas são muito mais rentáveis que cavalos. Uma ovelha te dá dinheiro de tempos em tempos, assim como uma vaca ou uma criação de galinhas botadeiras. Já um porco só se mata uma vez, e um cavalo só te dá despesas.

– - Eu preciso de um cavalo para salvar meu irmão – ela falou, com sinceridade, embora achasse que ele não acreditaria.

– Não tenho moedas, mas vou te dar um cavalo em troca destas duas ovelhas, como prêmio pela sua burrice. – o homem a conduziu aos fundos da fazenda – Volte na próxima primavera, para ver como comprarei mais dois cavalos só com o dinheiro que ganhar com essas duas ovelhinhas.

Claire estava tão radiante com a conclusão do negócio que mal se importou com a chacota do fazendeiro, nem com a magreza do cavalo que conseguira. Ainda podia ouvir o homem comentar sua suposta burrice com o caseiro, enquanto montava sem sela e agarrava-se à crina do animal, sentindo-se escorregar a cada trote. Nem mesmo soube como chegou à estalagem sem sofrer nenhum acidente. Montara sem sela uma ou duas vezes na vida, mas nessas ocasiões Wilhem estava sempre atrás dela, segurando-a pela cintura. Sentia um aperto no peito quando se lembrava dele.

Trancou-se no quarto para contar as moedas que lhe restavam, e enfiou-as em uma sacola encardida, para não levantar suspeitas. Prendeu a sacola entre as saias e a roupa de baixo, e dormiu como uma pedra. Em seus sonhos, haviam estouros, e fogos de artifício, e Wilhem estava com um lenço no cabelo, e um brinco em cada orelha, como aqueles homens nos navios, que vira quando era criança. Dançavam canções de piratas, os pés calçados com botas sapateando no assoalho do navio, unindo as mãos e sorrindo, e depois tropeçando e gargalhando. E haviam canhões e velas negras com pequenos furos chamuscados, peixe nas travessas, e rum nas canecas. Os homens tinham desenhos nos corpos, especialmente pelos braços, e Wilhem também tinha. Ela não sabia se, no sonho, era Claire. Podia ser um pirata de braços desenhados também. Não teria como saber ao certo, mas sentia.

Não era estranho que Claire sonhasse com piratas. No porto do leste, distante de Curvavento cerca de quatro horas de cavalgada, costumavam surgir inúmeros navios de corsários, para distribuir entre os comerciantes a mercadoria saqueada para ser vendida nas cidades. Em diversas ocasiões, os próprios corsários adentravam as cidades, para comprar mantimentos com moedas roubadas de outros navios. Costumavam se diferenciar dos nativos pelas vestimentas diferenciadas e os adereços. Estavam sempre com bijuterias pelo corpo, tanto os homens quanto as mulheres, e lenços atados no corpo em tons de vermelho e cinza, principalmente. A maioria se gabava de trazer mercadoria furtada dos navios mercantes de Além Mar, especialmente da região gelada e montanhosoa de onde viera Nigel Klein. Muitas das mercadorias que chegavam ao norte só podiam ser compradas no mercado negro, e por isso ninguém reclamava dos piratas. Eram até um pouco admirados, e ainda mais temidos, pois haviam trazido de além mar um conhecimento que aquele reino ainda não dominava: a arte de manusear a pólvora, não somente nas guerras e assaltos a navios mercantes, mas também na defesa pessoal. A maioria dos piratas ainda levava espadas atadas à cintura, mas um considerável número deles atirava melhor com espingardas e outras armas menores.

No sonho de Claire, nenhum dos corsários ostentava uma arma, mas ela escutou os estouros, como fogos de artifício. E continuou dançando, e pedindo mais um pouco de rum, enquanto Wilhem se afastava, cada vez mais, e retornava se que ela percebesse de onde. As imagens foram se desvanecendo, cada vez mais confusas.

Quando acordou, percebeu que não era de um cavalo que ela precisava.

Era de uma arma de fogo.


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Notas finais do capítulo

Ufa! Devo contar que ver Claire contando dinheiro e pensando no que comprar e vender me deixa mais confusa que ela! Será que ela está sendo esperta com todas essas trocas, compras e vendas que está fazendo?
Não percam o próximo capítulo, pois vamos falar finalmente de um grande segredo de Hermes que eu havia detalhado em outras histórias não postadas, porque meu computador está cheio de coisas sobre Hermes (já devo ter mencionado alguma história de 900 páginas com ele, Nigel e o filho de Alonzo, Tom, não?).