Mercado dos Mortos escrita por Goldfield


Capítulo 1
Réquiem e Prólogo: 31 de outubro de 1995




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Mercado dos Mortos

Réquiem

(Retirado do blog pessoal da estudante de jornalismo Carla Monteiro, 31/10/2010):

"Esta é uma história real. Todos os eventos, pessoas e locais nela descritos realmente existiram".

Como eu queria poder iniciar minha narrativa assim...

Esse aviso talvez soe familiar a alguns. Filmes de terror "trash" dos anos 80. Uma contribuição do diretor para que a "suspensão de descrença" na plateia fosse mais efetiva e assim o fato de tomates assassinos ou bonecos possuídos aniquilando pessoas acabasse aceito com naturalidade durante a projeção, contribuindo para a adrenalina.

Esse, no entanto, não é o caso da minha história. Eu diria até ser o inverso: tenho comigo que os fatos a serem descritos realmente aconteceram, mas o acúmulo de nuances absurdas fará com que o leitor dificilmente acredite nisso. Nada posso fazer a esse respeito, porém, senão pedir que este confie em minha palavra. Não sei mexer em blogs, detesto Internet e, se exponho aqui todas essas coisas, é que desejo revelar ao mundo o que sei e pedir o máximo de auxílio necessário para tentar descobrir a verdade sobre os eventos ocorridos em Santa Cecília do Oeste, SP, em outubro de 2005.

Cheguei à narrativa a seguir apresentada após longa investigação. Pelo caminho perdi o apoio de meus professores de faculdade – que no início tanto prometeram – abri mão de uma bolsa de estudos e até recebi ameaças de morte. A verdade precisa vir à tona, entretanto, e a justiça deve ser servida. Caso eu seja calada, ao menos algum leitor deste blog poderá falar por mim. E então meu esforço e sacrifício não terão sido em vão.

Não sou nenhuma boa escritora. Irão notar, no decorrer do texto, que minha habilidade com as palavras deve ter inclusive melhorado entre o prólogo e o epílogo. Comecei a elaborar este relato há muito tempo, anos atrás, e acabei amadurecendo conforme escrevia. Bem, irei agora postá-lo aqui, aos poucos. Caso ele permaneça inacabado, saberão que algo ocorreu a mim. Porém quero ter a oportunidade de ao menos iniciá-lo, instigando os curiosos e assim angariando aliados.

É o que mais necessito no momento.

— C. M.

X – X – X

Prólogo

31 de outubro de 1995.

— Por aqui, senhores!

Medeiros ia guiando os dois homens de terno pelo cemitério naquela tarde ensolarada. Um deles tinha uma espécie de planta de construção aberta em mãos, que examinava atentamente conforme caminhava – e era difícil entender como conseguia fazê-lo em linha reta e sem trombar em nada com a visão toda obstruída. O coveiro falava mil coisas, apontava para mil sepulturas de homens célebres de Santa Cecília do Oeste, citando prefeitos, artistas, coronéis... mas o engravatado segurando a planta ignorava. Talvez o outro até estivesse prestando atenção, mas isso não significava estar particularmente interessado...

Santa Cecília do Oeste era uma típica cidade do interior de São Paulo que, assim como Casa Branca e tantas outras, se não tivesse sido importante na época do café, provavelmente nem apareceria no mapa. Mas agora ela estava voltando a merecer sua presença cartográfica: a cidade vinha recebendo diversos investimentos empresariais, alguns de peso; e a infraestrutura do pacato centro urbano estava se adaptando para não perder tais oportunidades, incluindo até mesmo o cemitério.

O engravatado que não examinava a planta olhava para as diversas sepulturas, uma variedade de formas e materiais. Eram pequenas torres, imagens de santos e anjos, cruzes, lápides... Só de olhar para os túmulos, era possível concluir se o morto era rico ou pobre. O nível de detalhe e conservação das tumbas não deixava enganar – e, aparentemente, o tempo dos faraós não havia de todo terminado.

— Os senhores estão gostando?

Com a pergunta de Medeiros, os dois visitantes concordaram com a cabeça, mas no presente momento não estavam prestando atenção em nada daquilo que o coveiro explicava. Ele era muito apegado àquele lugar, e mesmo sabendo que não poderia mais ficar ali se fosse feito o negócio, parecia bastante interessado em proporcionar aos empresários um passeio completo pelo local.

Pela primeira vez em vinte minutos, o visitante que examinava a planta tirou os olhos do papel e olhou para frente. Os três estavam se aproximando de uma capela localizada no centro do cemitério, onde eram feitos velórios e rezadas missas. Na fachada da construção havia um senhor idoso, de batina negra, cabelos grisalhos e óculos redondos – as lentes opacas combinando com os muitos anos que deviam ter. Apoiado na porta de entrada, abraçava com vontade um volumoso exemplar da Bíblia de páginas amareladas, enquanto fitava o coveiro e os dois visitantes. Sua expressão facial era soturna, parecendo querer engolir os três com o olhar, mordendo os lábios com aparente raiva.

— Ora, se não é o velho padre Tadeu! – saudou Medeiros.

O que se seguiu foi uma cena que surpreendeu os dois empresários: o padre se aproximou alguns passos, ainda segurando a Bíblia com uma das mãos e, com a outra, começou a gesticular de forma agitada, lembrando muito o desbocado personagem bíblico João Batista, talvez com algumas palavras iguais:

— Cobras venenosas! Filhos do cão! Querem violar este lugar sagrado onde os mortos descansam para ganhar dinheiro! Cristo disse: "Não fareis da casa de meu pai uma casa de comércio!". Crápulas, homens sem alma! Enviados do capeta!

Medeiros arregalou os olhos e, um tanto envergonhado, fez com que os dois visitantes seguissem por outro rumo, quase os empurrando, deixando o sacerdote para trás esbravejando sozinho, enquanto gotas de suor escorriam por sua face rugosa.

Enfurecido, padre Tadeu, movendo os membros raquíticos de tal forma que daria a impressão em quem visse de que acabaria quebrando-os, tirou uma de suas sandálias e agitou o pó da mesma na direção dos desafetos, mordendo a língua como um louco. Depois entrou na capela, bufando.

Por mais que se colasse contra, transformariam aquele cemitério num grande supermercado... Mas isso não significava que aqueles descomungados ficariam sem pagar por sua ganância.

X – X – X

Tarde da noite. Quem entrasse no cemitério veria luzes acesas na capela, um foco isolado de claridade em meio às sombras disformes e horripilantemente ampliadas das lápides e estátuas. Isso não era estranho, já que padre Tadeu vivia ali há anos, mas, naquela noite, algo macabro estava para acontecer...

O sacerdote caminhava pela capela com um livro aberto em mãos. Não era a Bíblia, que antes defendera perante seus detratores de maneira tão determinada. Tal profano volume era intitulado "Livro de Judas Iscariotes". O padre pronunciava palavras estranhas, registradas nas antigas páginas com uma caligrafia rebuscada, possuindo uma insana satisfação em seu semblante. Até que, com olhar medonho, se aproximou de um pote de vidro que havia colocado sobre o altar.

Tal recipiente continha grande quantidade de sal. Padre Tadeu, colocando a mão direita sobre o vidro, pronunciou mais algumas palavras do livro aberto na outra. Seu corpo estava molhado de suor. Sua mente, corrompida pelo ódio.

Logo depois a porta de entrada da capela se abriu rangendo, violada numa primeira impressão pelo próprio vento... até que a magra figura do padre atravessou-a, deixando seu interior como um chacal averiguando se sua oferta de carniça fora servida. O sacerdote caminhou para fora com o recipiente em mãos. E, rindo insanamente, começou a jogar um pouco daquele sal em cada sepultura que surgia em seu trajeto. Ele parecia dançar de satisfação enquanto os cristais de cloreto de sódio caíam sobre os túmulos, penetrando através de suas frestas e fendas até o interior das covas, acumulando-se esparsos nas tampas dos caixões há muito esquecidos. Que significaria tudo aquilo?

Na manhã seguinte, logo cedo, os dois empresários voltaram para fechar negócio, trazendo também o pessoal da prefeitura. O coveiro Medeiros encontrou a capela trancada e, arrombando-a, ficou tão espantado quanto os demais quando encontrou o corpo do padre Tadeu, caído na frente do altar.

Infarto fulminante.


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