As vozes que passavam por mim pareciam ilusão, principalmente quando Thiago chamou Everton e junto com ele vieram outros Iniciados. Mas não, isso não foi o pior. Pior foi quando eles levantaram o corpo e minhas pernas começaram a andar até eles.

Meu segundo grito de pavor não saiu, eu apenas tampei a boca mais uma vez. Meus olhos deveriam estar tão abertos, poderiam estar do tamanho de uma dessas bolachas recheadas que meus pais tanto falavam que sentiam falta.
E foi nesse momento que eu consegui notar alguma coisa, um choro alto que me fez ter vontade de chorar... Mas eu mal o conhecia.
Virei o rosto procurando o som. Era Lia, claro. Ela estava sentada na grama seca onde antes era para ser apenas um treinamento. Seus joelhos estavam em seu peito e sua cabeça encostava nos mesmos enquanto soluçava.
Não sei como, mas sai do transe e fui até ela. Me sentei ao seu lado e ali fiquei. Eu precisava tirar os olhos de Samuel... Do que algum curto tempo atrás era ele. Eu pensava em sua família, que não só perdeu um filho para outra Província, mas perderá um filho no sentido de que eles nunca mais se encontrariam, não nesta vida. E a vontade de chorar voltou, mas eu me recusava, me recusava a chorar na frente daquela gente.

O tempo passou e eu nem percebi, só quando Lia parou de chorar demonstrando choque que eu tirei meu olhar do chão e olhei para ela, que estava olhando para trás.
Seguindo o seu olhar, vi thiago com as mãos na cintura da garota que era minha amiga.
–Vamos voltar. -Ele falou em uma voz mais calma e eu não sei como, mas eu senti algo dentro de mim ao ouvir ele falando deste jeito com ela.
E então ele olhou pra mim. -Está tudo bem? -Ele perguntou. Mas... Foi diferente, não foi como ele perguntou para Lia, não foi tão dócil, foi... Foi simplesmente do jeito que estávamos no tratando desde que nos conhecemos á vinte e quatro horas.
Apenas assenti com um aceno de cabeça e me levantei, batendo as mãos na bunda e nas minhas próprias mãos para tirar a sujeira.
Tirei meus olhos do chão e passei-os para Lia, que estava sendo levantada por Thiago que continuava com as mãos em sua cintura, o que fez meu estômago apertar, o que era ridículo considerando que eu vi o único amigo que eu já tive cair no chão, mo... Não! Não! Ele não...
Meus olhos marejaram. Respirei fundo e passei a mão nos cabelos, puxando-os um pouco e então me virando em direção a floresta.

Não dou muitos passos, pois, sinto meu braço sendo puxado por uma mão firme, mas gentil.
–Vamos juntos, ok? Não quero que mais nada aconteça. -Thiago solta um suspiro. Olhei para ele, cansada, Ele também me parecia cansado, o que era de se esperar.
–O que aconteceu, na verdade? -Não me aguentei e tive que perguntar.
–Eu não sei... Pode ter sido tanta coisa. -Ele passou a mão nos cabelos. Respirou fundo e então voltou aquela sua expressão de sempre: Mandão. -Vamos. -Ele segui na nossa frente, sem conferir se iríamos segui-lo.
Olhei para Lia e a peguei pelo braço, pois sem isso eu duvidava que ela pudesse andar sem um apoio. Sussurrei um ''Vai ficar tudo bem'' perto do seu ouvido, para que só ela ouvisse. Mesmo que eu duvidasse que ficaria tudo bem.

Entramos na Força por um outro caminho, sem pular tudo aquilo de novo. O clima lá dentro estava tenso pelo motivo de: Ninguém sabe o que aconteceu.
Pois, se houvesse sido uma morte com alguém caindo nos trilhos do trem ou quebrando a cara enquanto pula de uma altura terrível, eles não ficariam desse jeito. Mas não foi. Foi algo que ninguém sabe como aconteceu. Pode ter sido tudo, como Thiago disse. Tem várias possibilidades.
–Vão para o quarto com os outros. -Disse Thiago.
–Você tem... -Eu ia perguntar, mas ele me lançou aquele seu olhar de: Eu estou mandando, por favor, obedeça.
Sim, havia um tom de 'por favor' em seus olhos, e vou por ele que eu cedi, por ver sua expressão cansada... Pois se não fosse por isso, acreditem, eu bateria o pé para ficar.

Guiei uma Lia-zumbi até o nosso quarto, que compartilhávamos com os Iniciados. Todos estavam muito tensos, e não era para menos.
Algumas meninas ainda estavam com a boca escancarada.
Por favor, elas nem o conheciam! Tudo bem que foi tudo muito trágico, ainda mais que tudo aconteceu na frente deles.
Deixei Lia sentar-se em seu beliche e subi para o meu, onde fiquei balançando as pernas por um bom tempo. meia-hora depois o cenário não tinha mudado, todos pareciam estátuas. Então me deitei de costas na cama e fiquei olhando para o teto, pensando em nada, em casa, no meu irmão, em meus pais. Pensei em mim conversando com Lia e Samuel ontem, pensei no nosso trio e automáticamente me veio a imagem dele, todas as últimas, e as afastei imediatamente.
E então a porta se abre e Everton e Thiago entram. Eles substituiram a regata branca por uma camiseta preta.
–Iniciados. -Eles chamam, eu me sento na cama e coloco os pés para fora, sentando na ponta. Parece que nesse meio tempo em que me deitei os outros conseguiram mudar as posições. Alguns estavam deitados, outros já haviam voltado a seus estados normais parecendo durões.
–Já sabem o que aconteceu lá? -Perguntou Enzo. Era um dos que mais me zoava, até agora,ele era alto e musculoso. Devia ter seus um e noventa, ou perto disso. Ele estava meio deitado e sentado na cama com os braços cruzados. Ele permanecia assim desde que entrei no quarto.
–Ainda não, estamos procurando informações... -Thiago começou a explicar.
–Então o que vieram avisar? -Perguntou ele, ele parecia irritado. Mas por quê?
–Como não sabemos o que ocorreu ao certo, ou seja, ele não morreu exatamente por causa de uma tarefa na Força e fazia apenas um dia que ele estava aqui, comunicamos os pais dele e faremos o enterro daqui a umas duas horas. Depois disso quem quiser poderá encontrar o seu devido Instrutor para um treino.
–Para quem ainda não entendeu, sou o Instrutor dos Iniciados que nasceram aqui e o Thiago é dos Transferidos. Eu estarei na Sala A e Thiago na Sala B, ambas ficam no corredor 19.
–Ta. -Respondeu Enzo.
Não consegui identificar a expressão de Thiago e Everton, mas notei que ambos estavam se esforçando muito para continuarem calmos.
Então Thiago olhou para mim e eu congelei. Ficamos nos olhando por alguns segundos até Thiago baixar os olhos e se virar para os outros Iniciados e perguntar:
–Vocês estão bem?
Mas não obteve resposta.
–Vamos, Thiago. -Chamou Everton com um tom de impaciência e irritação. Mas Thiago não deu bola, ele se aproximou do beliche de Lia e se abaixou, ficando de joelhos no chão.
–Lia, você está melhor? -Perguntou ele docilmente. Everton bufou e saiu com passos pesados, Thiago pareceu não se importar.
Lia apenas assentiu, ela estava tentando ser forte e não chorar, eu a entendia. Mas ela era mais próxima de Samuel do que eu, eles eram da mesma Provincia.
Então ele se levantou e foi em minha direção, mas ele continuou em pé, como eu estava em um beliche, estava meis alta que ele, então abaixei meus olhos e encontrei os seus.
–E você? -Ele perguntou. Sua voz não levava tantaa doçura como ele falou com Lia, mas eu já estava me acostumando com isso, apesar de me irritar. Eu não entendo o porque disso me afetar tanto.
–Bem. -Respondo tentando manter minha voz baixa. Ele me olha por mais alguns segundos e sinto meu coração começar a disparar. Então ele se vira para todos e diz: -Nos vemos em uma hora e quarente minutos. -E então deixou o recinto.
Soltei minha respiração, percebendo pela primeira vez que eu havia segurado a mesma. Já devia ser pelo menos onze da manhã, não podia nem acreditar que era tão cedo. Mas era. E em breve estaria indo para o enterro do único amigo que tive em meus dezesseis anos de idade.