Álcool, Shirley e rock n' roll escrita por AnaMM


Capítulo 13
Hangar


Notas iniciais do capítulo

Trilha:
https://www.youtube.com/watch?v=po4JssNtWO8 - Your Winter - Sister Hazel



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Entraram no carro de Shirley e atravessaram parte da cidade. Felipe não pôde ignorar a sensação de ser observado. Era uma cidade que despertava cedo, tendo uma vida matutina tão intensa quanto a noturna, ou mais. Conforme as casas davam lugar ao mato, o garoto decifrou a rota de Shirley. O hangar, claro. Como não percebera antes? Era tão comum encontrá-la perto dos aviões e de suas promessas de resgatá-la de Esperança... Desceram do carro. A loira o arrastou até um modelo em particular.

– Esse é o meu bebê.

– Quem é o pai? O Beto ou o Fred? É muito grande pra ser do baixinho do Laerte. – Zombou.

– Engraçadinho... – Fingiu irritação. – Eu vou tirar o brevê daqui a umas semanas, daí você me ajuda a sequestrar o baixinho, que vai ser fácil de arrastar pra cá.

– É baixinho, mas é invocado. Não vai ser tão simples.

– Pena... Você parecia mais forte hoje mais cedo... – Ironizou provocante.

– Que força? – O garoto riu. – Não sei se você percebeu, mas eu tô destruído!

– Eu sei, eu sei, tava só brincando. Você não passa de um frangote magrelo.

– Vou fingir que acredito. – Sorriu irônico em resposta.

– Ok, vai, o que você acha? Quando pequeno você era craque em analisar jatos.

Felipe sorriu com a lembrança. Esquecia-se de que Shirley o conhecia desde criança. Analisou o pequeno avião de perto, dando seu parecer.

– Foi presente ou dote?

– Para! – Shirley riu. – Eu até presto um pouquinho, vai! Eu ganhei dos meus pais. – Conteve-se em responder.

– Legal! – Comentou impressionado. Estava sem palavras. De seus pais, ganhava apenas meias.

– Isso a Helena não tem. – Provocou.

– Não tem ainda... Do jeito que ela é adorada lá em casa, não vai demorar muito. – Comentou cabisbaixo.

– Como você consegue? Digo, a minha rivalidade com ela é coisa nossa, de amizade que se desviou, sei lá, raiva normal, mas você tem que aguentá-la e aguentar comparações todos os dias, o tempo todo... Helena isso, Helena aquilo...

E então entendeu. O problema de Shirley, Felipe enfim percebeu, não era apenas rivalidade feminina de antigas amigas, como pensava, nem pura inveja, nem tampouco a disputa entre as duas meninas mais bonitas da pequena cidade. A família esperava que Shirley fosse como Helena, desde criança. E quanto mais esperavam que ela fosse amorosa e viva, mais Shirley se envenenava e subia barreiras contra a própria família.

– Lá em casa até o cachorro é visto como melhor exemplo. – Respondeu com uma risada seca. – Graças, agora, a você, principalmente. Antes eu até me saía bem querendo ser médico e tirando notas altas...

– Por isso você se leva tão a sério? Porque as boas notas são a única coisa pela qual você é lembrado? – A loira perguntou com tristeza.

– Como você e essa rivalidade boba com a Helena...

– Como se você não tivesse. Você deve saber tanto quanto eu como é ser comparado à princesinha da cidade.

– Felizmente, Shirley, é justamente o Laerte que tá me salvando dessa. Pelo menos agora eles percebem que a Helena não é perfeita.

– Eu não entendo como ele pode preferir ela a mim...

– Nem eu. – Respondeu sincero.

Shirley o encarou. Estavam próximos até demais. Beijou-o, mantendo seus lábios nos de Felipe por um momento.

– Obrigada.

– Por que? – Perguntou confuso.

Shirley não respondeu. Não era preciso. Seria um pouco demais até, e não devia se apegar a um nerd como Felipe, por melhor que lhe fizesse. Seu par ideal era outro. Um certo dono irritadiço de um par de olhos azuis que se aproximava com Helena.

– Felipe? Mudou de Fernandes, Shirley? Ou você só quer me atingir com o meu irmão, mesmo?

– Não é da sua conta, querida. – Respondeu falsamente.

– Eu devia saber que aquele ataque todo ontem era tensão sexual encubada, mesmo...

– Olha aqui, ô caipirinha de araque! – Shirley perdeu a compostura, sendo segurada por Felipe. – Me solta!

– A gente tava te procurando por toda a parte. – Helena contou ao irmão, ignorando a fúria da loira nos braços do garoto.

– Pra que? Pra que ele terminasse o que começou?

– Lipe, é sério, a mamãe e a Clara estavam desesperadas atrás de você!

– Avisa elas que eu tô bem.

– Vem comigo, por favor?

– Vai, Felipinho! Você não tava justamente reclamando que era um nada pra eles?

Irritado com o descaso de Shirley, o garoto se vingou como podia, de forma rápida e improvisada. Beijou-a subitamente, ao que a loira correspondeu por um breve momento até se dar conta de onde estava. Afastou-se bruscamente, em vão, Felipe já se afastava.

– Você me paga!

– Com prazer! – Gritou em resposta.

–$-

– Qual é a sua com a Shirley?

– Nenhuma, maninha, nenhuma... Ela me chamou pra analisar o avião novo, só isso.

– E você foi assim, sem mais nem menos?

– Fui. – Respondeu simplesmente.

– Você perdeu os critérios...

– Você nunca me viu com ninguém, Helena, como vai saber que eu tenho critérios?

– Porque você é meu irmão, e deveria saber que a Shirley é uma vagabunda que só quer ferrar com a minha vida. Aliás, quem me abriu os olhos foi você mesmo.

– Eu não sou você. – Sorriu irônico. – Ela não quer destruir a minha vida.

– Cuidado... – A irmã por fim se rendeu.

– Relaxa, maninha, não sou eu que ela quer, eu sei disso, e só queria aproveitar um pouco.

– Eu não te reconheço mais, Felipe... – Comentou preocupada.

– Nem eu me reconheço... – Respondeu secamente, agilizando os passos. Não queria voltar para casa, mas era melhor que o interrogatório de Helena.

–$-

– Felipe Fernandes, o que você estava fazendo no hangar com a Shirley? – Sua mãe cobrou tão logo o viu entrar.

– Eu não... Eu não sei do que você tá falando. – Desconversou ao passar reto pela sala.

– Felipe! – Chica insistiu. – Volta aqui! O Zé Fredo e a Amália da banca de jornais te viram sair no carro daquela ordinariazinha!

– Isso é problema meu. – Voltou-se para a mãe. – Meu, dela e de mais ninguém.

– Felipe, aquela menina te destratou na frente da cidade inteira!

– É? Que pena.

– Felipe Fernandes! Eu sou sua mãe e exijo satisfações!

– Devia ter se importado antes.

Retirou-se irritado, levando consigo uma garrafa da coleção do pai, para desespero de Chica. Sabendo que a mãe o seguiria, no entanto, o garoto trancou sua porta. Não a culpava. Nem ele mesmo confiava em Shirley, mas era masoquista, tinha quase certeza. Havia passado um bom dia, o primeiro em anos. Sentia-se vivo, não mais trancado em seu quarto... Bom, não mais o dia inteiro trancado em seu quarto, cercado por livros e tensões. Tentara por tanto tempo ser o filho perfeito e não conseguira. Agora, focaria em si. Em levar a vida que queria. Formara uma boa dupla com Shirley. Ele, técnico e metódico; ela, audaz e movida a adrenalina. Havia esquecido de como gostava de aviões. A cada dia com a loira, recuperava um pouco do menino que uma vez fora, e encontrava em Shirley sua melhor amiga de outrora. Nenhum Fernandes, ou Soares, ou qualquer forasteiro os entenderia. Era algo exclusivo, com quem uma vez conhecera como ninguém.

–$-

Verdade fosse dita, era uma das primeiras vezes em que não se sentia animado para ir ao colégio. Gostava de se perder em aulas que só ele entendia, em um mundo particular onde nenhum familiar se intrometeria e os adultos lhe dessem valor. Havia passado, no entanto, o resto do dia e um pouco da noite sob sermões da mãe do outro lado da porta. Saíra de casa pela janela, e, ainda assim, não poderia evitar suas irmãs ao chegar ao colégio. Helena, especificamente. Clara, até onde sabia, ainda era sua confidente de sempre. Seu estado físico, ignorado por todo o dia anterior, assustava aqueles pelos quais passava, desde sua casa. Alguns olhares tortos, também. O que Shirley lhe havia acusado não havia passado despercebido. Sua ressaca o estava matando e parecia que todo habitante de Esperança era capaz de perceber o que sempre estivera ali.

– Olha quem vem lá, o cachaceiro! – Beto debochou. – Aí, Shirley, mandou bem! Esse cara é muito estranho...

A loira mordeu o lábio inferior para se impedir de responder. Não podia defendê-lo, concordava completamente com Beto. Tinha que concordar. Sua sensibilidade recente por Felipe era apenas uma ilusão, uma sensação momentânea, estava frágil, por algum motivo... Detestava Felipe. Tentou rir junto, sem sucesso.

Observou o garoto de longe. Parecia ter percebido a hostilidade do grupo, e traçava um caminho oposto, livros em mãos e olhar decidido. Deixou cair alguns volumes, atrapalhado. Pôde perceber que Felipe levava a mão ao braço, como se estivesse ferido. Claro! Lembrou-se dos hematomas que o garoto apresentava. Vestia manga comprida, ainda que o dia estivesse infernalmente quente, mas Shirley sabia que ali estava escondido um dos cortes. Ali, onde tentava, tentava e não conseguia apoiar seu pesado material de aula. E alunos passavam e riam de sua desgraça, chamando-o de todos os nomes possíveis. Se a rainha Shirley o havia esculachado, que todos seus servos assim o repetissem. Sentiu-se culpada, contra seu melhor julgamento. De longe, Felipe a encarou. Não parecia esperar nada, no entanto. A encarou estático, até receber a ajuda de suas irmãs. Helena pareceu lhe dar algum sermão sobre a loira não se importar com ele, para o que o nerd apenas balançou os ombros, como quem não se importa. Não esperava nada.

Observou à sua volta. Seus amigos já haviam partido para as aulas, restavam apenas Shirley, Rafaela, Felipe e as irmãs. O garoto ordenou que as irmãs seguissem para as salas. Estaria bem. Sentou-se contra a coluna do pátio, os livros agora ordenados ao seu lado.

– Vai lá. – Rafaela a orientou.

– Você tá brincando, né? – A loira retrucou incrédula.

– Todo mundo já foi pra aula. Eu sei que você quer falar com ele. Vai, eu fico de olho, não vai aparecer ninguém.

A garota tentou esconder seu agradecimento. Hesitante, afastou-se em direção à coluna. Olhou à sua volta duas vezes, para ter certeza, e se sentou ao lado de Felipe.

– Shirley, agora não.

– Você tá bem? – Ignorou o protesto do garoto.

– Que? – Perguntou confuso.

– Eu perguntei se você está bem, imbecil. Vamos, antes que eu desista.

– Shirley, você já pensou que nem sempre depende de você? Eu não quero você por perto.

– Ninguém tá vendo, Felipe.

– E se estivesse? Eu não sou nenhum lixo, eu não tenho corcunda, nem tenho lepra. Você sabe o que eu percebi no caminho pra cá? Que a cidade inteira me olha torto porque você supostamente me odeia.

– Eu pensei que você também não quisesse falar nada.

– Tampouco.

– Hã?

– O certo é “tampouco” ao invés de “também não”.

– Felipe, era só o que faltava você começar a corrigir o meu português agora! Não tem graça nenhuma!

– Você riu... – O garoto sorriu debochado. – De qualquer forma, o que eu quis dizer foi que você não é melhor que eu. Tem muitas coisas nas quais eu sou melhor que você. O problema é a aparência? Você não parecia me achar tão monstruoso ontem de manhã. Hematomas somem, cabelo e barba se corta. Corpo se ganha.

– Você não precisa...

– Então por que? Eu não espero, nem quero, que você saia por aí falando a verdade sobre o que a gente tem. Eu, tanto quanto você, não quero que a minha família saiba. O que eu quero – Completou ao perceber a expressão confusa de Shirley. – é que você me respeite.

– Eu não falei nada. Digo, quando o Beto e o Fred tavam te zombando, eu não falei nada.

– Exatamente. – Concordou sério. – De qualquer forma, sim, eu estou bem, e não, eu não te odeio. Eu ainda vou te ajudar com o Laerte, desde que você pare de tentar me humilhar publicamente como fez aquela noite. Eu já tenho que encarar a cidade inteira me olhando torto por causa do seu showzinho.

A loira se levantou para sair, tentando não demonstrar preocupação. Alguns flashes do dia anterior, no entanto, ainda a assombravam. Girou sobre seus calcanhares, voltando a encará-lo.

– Eu só te odeio, Felipe, porque você é o único que é verdadeiro comigo. – Ao olhar confuso do nerd, completou. – Você não me destrata por nada, nem se ajoelha aos meus pés quando eu erro, e por isso eu não consigo te odiar. E é porque eu não consigo te odiar, que eu te odeio tanto.

Felipe a encarou estarrecido. Nada em Shirley fazia sentido, e tudo ao mesmo tempo.

– Você é completamente maluca.

– Você tampouco é muito normal.

O garoto sorriu, levantando-se em direção à loira, que sorria debochada. Segurou-a pela cintura, tendo seu pescoço enlaçado pelos braços de Shirley, que o beijou antes que ele o fizesse.

– Pensando bem, você podia aparar a barba. Tá meio deprimente. – Sugeriu provocante, encostando a testa contra a testa de Felipe.

O garoto riu. Olhou para os lados, ainda estavam a sós. Beijou-a novamente, dessa vez com mais intensidade. Apertou-a contra a coluna, onde ficariam escondidos caso alguém saísse antes do sinal de intervalo soar.


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