Pure Imagination escrita por Sweet Death, SaltedCaramel


Capítulo 27
Please mind the gap between the train and my safe life


Notas iniciais do capítulo

Olá!! Tudo bem com vocês??
Estou apenas sem ar de tanto escrever nesse feriado (meu primeiro momento de paz em muito tempo) para conseguir trazer esse capítulo para vocês e caramba, ele ficou enorme. Eu ainda fiz uns cortes, mas no fim eu não consegui mais...então desculpa se ele ficou extenso...
É basicamente ação e um Allen admirando as pessoas bonitas da vida e mesmo assim consegui escrever tantas palavras HHAHAHAHAH desculpa, por isso e muito mais pela demora também, o cursinho me ocupa de manhã até a noite, de segunda a sábado...
LEMBRANDO QUE ESSE DOMINGO 18/06/2017 TEMOS A PARADA LGBT! Seja você parte da comunidade ou alguém que apoia, é muito importante estar lá ;)
Ah, também estava trabalhando em algumas one shots esses dias (apesar de não serem minhas prioridades): uma Yullen, uma Klance ( de Voltron) e uma Sterek (de Teen Wolf) hihi talvez ainda consiga terminá-las (quem sabe algum dia esse ano, não é mesmo? hahahhaa).
Enfim, obrigada pelo apoio e boa leitura! o/



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Eu não deveria estar ali.

                Eu podia estar ali, isso é verdade. O caráter público da biblioteca era o que bem me garantia isso.

                Porém não deveria estar ali. Não porque estava escrito em algum lugar, mas porque eu simplesmente sabia que não deveria, o que fazia a situação ainda pior.

                Não era exatamente por causa da biblioteca, veja só. Era por causa de uma pessoa que a frequentava (assiduamente, aparentemente).

                Percebi que estava no fundo do poço quando me vi passando por um corredor que eu nunca visitaria na minha pacata e sã vida (era um de prateleiras sobre direito civil, caso você esteja se perguntando. Centenas de livros com letras miúdas numerosas e páginas ainda mais numerosas sobre assuntos que não me interessavam nem um pouco). Eu viajava de um livro a outro, apenas abrindo e fingindo estar atento ao que diziam, mas na verdade estava me aproveitando da localidade.

                Minha real atenção estava nas frestas entre os livros do corredor, que me davam uma direta e boa vista das mesas da biblioteca, ocupadas em maioria por estudantes em desespero, com pilhas de livros que rivalizavam o monte Everest. Entre eles, tinha um em especial. O justo destino dos meus tão escondidos olhares.

                O simples fato do garoto ir tanto a uma biblioteca em uma era digital já era por si só um motivo de consideração. Eu mesmo, costumava entrar ali apenas para fugir ou para matar pouco tempo.

                Nos últimos dias, porém, eu parecia um cliente assíduo da biblioteca. Não gastava meu tempo livre, mas sim dedicava meu tempo como um compromisso.

                Apenas para observar o homem que sentava naquelas mesas tantas vezes, sempre lendo um livro e rabiscando letras em uma folha. Imaginava por isso que estava estudando e sempre lutava para saber exatamente o que era. Daquela distância, no entanto, não conseguia distinguir tão bem o assunto.

                Eu sei, isso parece algo bem patético e talvez até um pouco assustador de se fazer, só que o ponto principal era que eu não ia ali apenas para olhar.

                Eu sempre estava ali tentando juntar coragem.

                O problema era que eu nunca juntava o bastante, desistia em dez minutos para tentar novamente em outro dia em que pensava estar confiante para chegar naquela mesa e, quem sabe, chama-lo para sair.

                Por vezes me via caminhando até lá, apenas para dar meia volta, acovardado, e me encolher de volta naquela prateleira.

                Tudo que eu mais fazia era torcer para que um dia ele notasse o franzino garoto branquelo atrás da prateleira e vir com toda sua confiança (e seu sorriso maravilhoso) para perguntar se eram assim tão interessantes os livros de direito civil. Tudo que eu pedia era para ele começar uma conversa espontânea, dali, talvez, eu conseguisse me investir justamente.

                Eu nem ao menos sabia se ele gostava de garotos.

                (Eu antes nem sabia que eu gostava e agora as piadas sobre minha suposta sexualidade que já faziam na escola sem saber dessa minha realidade começavam a me afetar).

                E mesmo se ele possuísse esse interesse, quem garantiria que ele iria direcioná-lo a uma pessoa tão desinteressante quanto eu? Ninguém. Na verdade, eu garantiria que não.

                Esse foi meu último pensamento antes de encerrar o ciclo do dia, desistindo de arranjar a coragem, arrematada.

                Saí da biblioteca com um peso nas costas, sabendo que voltaria outro dia para ter o mesmo resultado.  

Eu nunca cheguei a falar com o garoto, cujo nome acabei também nunca descobrindo.

                Ele também nunca chegou a olhar em minha direção.

                E eu parei de visitar aquela biblioteca.

—X-

oOo

—X-

                -Tsc. Eu não acho que a gente precise dele.

                -Ok, Kanda- eu disse, tentando colocar o sobretudo do uniforme, mas a abertura simplesmente estava empacada, tornando a tarefa mais difícil- Eu acho que captei a mensagem das primeiras dez vezes que você falou.

                Eu não podia vê-lo, porque estava ocupado demais tentando enfiar aquele sobretudo pela cabeça, mesmo que a roupa insistisse em se agarrar às minhas orelhas e entalar na região da testa, porém conseguia senti-lo apertando os olhos, suprimindo a vontade de me chacoalhar.

                -A gente pode investigar sozinho, não precisa de um cara mostrando cada canto do trabalho dele. Tsc. E a Ordem já mandou o cheque cobrindo as despesas, ele é inútil.

                -Não- eu concordei, assim que consegui passar a cabeça pelo buraco da roupa. Ótimo, agora os ombros seriam outro desafio- Não precisamos, mas ele conhece as pessoas, sabe das histórias e eu acho que isso pode facilitar muito. Além disso, foi você que começou o assunto com ele, eu não disse nada.

                E eu estava precisando de facilidade, precisava que essa missão corresse rápido e tivesse tempo de sobra para descobrir o que tinha nas mãos do Conde.

                Com certo tempo e mais dificuldade, consegui terminar de me vestir no sobretudo do uniforme, apenas para me deparar com Kanda me observando. Braços cruzados, olhar mortífero, ele levantou as sobrancelhas, como quem não crê nem um pouco no que acabou de ser dito.

                -Mas...hã... Foi só uma opinião sincera. Você quem decide, afinal você é o exorcista- não queria soar um tanto decepcionado, porque o que eu falava era a pura verdade. Ainda assim, o tom saiu falhado e incerto, enquanto eu puxava do bolso o papel com o telefone do homem, que havia usado para marcar o ponto de encontro- v-você pode ligar para ele e desmarcar, acho que ele não vai se importar. Por mim tanto faz.

                Meus braços, sempre fracos, começavam a doer por ficarem estendidos por algum tempo enquanto Kanda olhava do papel para mim, como se estivesse realmente ofendido por eu ter em algum momento pensado em oferece-lo algo.

                No fim, ele apenas rebateu o papel direto da minha mão ao chão. Tudo que eu sabia era que eu não tinha a menor vontade de me render a isso, de abaixar para pegar a anotação de volta, então nem o fiz. Apenas olhei pateticamente o papel amassado aos meus pés, tentando imaginar o que aquele gesto significava.

                Nunca me identifiquei tanto com um pedaço de papel na minha vida.

                -Foda-se, que seja- foi o que ele falou, como se tacar o papel no chão não fosse significativo o bastante.

                Depois disso, saiu do quarto e largou a porta aberta, um sinal para que andasse logo a segui-lo até a entrada do hotel, onde Lavi estava esperando (e paquerando agora um grupo de mulheres que provavelmente estavam hospedadas ali). Assim que nos avistou, disse algo as pessoas com quem estava conversando e despediu-se com um piscar de olho e um beijo assoprado, vindo em nossa direção.

                -Allen! Yuu! Finalmente.

                -Tsc. O Moyashi estava com problemas para se vestir- Kanda entregou, sarcástico.

                Nisso, Lavi riu, escandaloso como sempre. O que me fez enrubescer de vergonha enquanto jogava ao meu companheiro de quarto um olhar maldoso que apenas o fez sorrir, o gesto mais assustador que já o vi fazer.

                Eu adorava vê-lo sorrir, mas não às minhas custas, claro.

                -V-vamos indo- eu disse, ao invés de refutá-lo-  o Tyki deve estar nos esperando.

                O ruivo limpou uma lágrima que ameaçava cair do olho, enquanto ria os últimos resquícios de graça, mas sinalizou para que fôssemos andando.

                O homem havia pedido a nós que fôssemos à estação de trem da cidade. Dali, ele podia nos levar até a mina onde trabalhava. Lavi havia dito que podíamos chegar lá andando, já que não era lá tão longe de onde estávamos e exercício era sempre bom para o corpo.

                Eu olhei de seu rosto convencido para o grande peso de roupas densas e quentes que me vestiam e tentei impedir a mim mesmo de contrariá-lo. Foi difícil não o agarrar pela gola e chacoalha-lo com força para cair na real, porém Kanda, como se soubesse meus planos, puxou-me pelo ombro para seguir o caminho.

                Acabou que não era lá tão longe, realmente. E também acabou que eu estava certo sobre as roupas de exorcista naquele clima quente. Confesso que a presença de Lavi não ajudou nem um pouco, ele vivia passando o braço pelos meus ombros ou me apertando contra seu peito enquanto ria de algo, como se eu fosse seu mascote preferido. Além disso, sua presença ficava completamente irritante depois de minutos no sol ardido.

                Kanda até me olhou com empatia enquanto o ruivo desabava a contar sobre sua pesquisa sobre a importância de galinhas através dos séculos... ou algo do tipo. Coisa de Bookman, você bem sabe.

                Chegando na estação, onde, ainda bem, havia muitas sombras para se esgueirar, Lavi foi falar com os funcionários para explicar a presença de exorcistas e eu me vi livre e aliviado. Achei um pilar vazio para me encostar e aproveitar aquele restinho de sombra para me refrescar.

                Kanda aproximou-se de braços cruzados, como sempre, todavia o olhar geralmente nervoso e entediado não estava ali. No lugar, ele parecia me observar atentamente, seu olhar tão fixo que por pouco não queimavam buracos na minha pele.

                Aquilo me desconcertava, de repente me vi constrangido, não aguentando aquela atenção inédita. Meu rosto começou a queimar e o fato de eu estar na sombra não solucionou nada o calor que eu sentia.

                -O-o que foi?- perguntei, temoroso.

                -Tire a roupa- Kanda disse, subitamente.

                A frase me pegou tão de surpresa que engasguei com a própria saliva, me dobrando e tossindo desesperadamente para tentar não sucumbir a essa morte tão patética. Acabou funcionando.

                -Hã...? Não?- consegui exclamar, ainda tossindo algumas vezes. O rubor que subia ao meu rosto pôde ser disfarçado como efeito do engasgamento, mas minha vergonha e surpresa devem ter ficado claras em minha expressão, porque Kanda arregalou um pouco os olhos, provavelmente absorvendo o que havia dito.

                -Não! Não assim!- ele corrigiu, batendo a mão no rosto em constrangimento e ali a deixando- Eu quis dizer...Tsc. Tirar o sobretudo, porque você tá derretendo.

                -Ah- eu respondi, sentindo-me estúpido- claro- ri, ainda que não saísse tão feliz quanto queria que soasse.

                -Mas eu posso tirar o uniforme? - questionei, porque para mim parecia que era pressuposto que usássemos essa roupa o tempo inteiro na missão para sermos identificados, já que raramente os via sem o traje preto.

                Ele apertou os olhos consideravelmente antes de rolá-los. Temi que as íris ficariam para sempre presas atrás de sua cabeça com a força que o havia feito.

                -Tsc. Por que não? Pelo menos um de nós tem que estar de uniforme só e como o seu já está encharcado parece que não será você.

                Senti-me desafiado pelo fato de sua pessoa não ter derramado uma gota sequer de seu suor sagrado (e nem mesmo Lavi o fez), mas mesmo assim despi-me da peça de roupa pesada em uma questão de segundos, prezando mais pela sensação refrescante que pelo desafio.

                Quando consegui sentir o vento, ainda que pouco, esfregando nos meus braços enfim descobertos, mal pude me impedir de suspirar em alívio. Tentei ajeitar meu cabelo, que se grudava na testa suada, esperando que agora o refresco ajeitasse-o a um estilo mais bonito.

                Ainda bem que usava roupas comuns por baixo daquilo ao invés da roupa social que lembrava de ver Austin usando. Não sei se sobreviveria debaixo de tanto pano e tanto sol.

                Senti uma pontada em uma parte da cabeça, como acontecia por vezes ao pensar em detalhes da história. Por isso, tentava agora evitar esses pontos, concentrando no agora para conseguir o que precisava.

                Antes que eu pudesse amarrar o sobretudo na cintura, como imaginava que teria que fazer, Kanda o puxou da minha mão e ficou segurando a peça em um dos braços. Fiquei esperando ele reclamar por eu tê-lo feito de cabide, porém nada veio.

                Quer dizer, nada além do Tyki.

                -Que fofos- foi o que ele disse, o mesmo sorriso sardônico despontando dos lábios- vejo que o uniforme de exorcista realmente não é tão confortável quanto se pensaria para soldados que lutam pela nossa segurança.

                Seu cabelo não estava desgrenhado como ontem, estava um pouco puxado para trás em um penteado que gritava caos organizado. Ele também havia substituído sua roupa de funcionário por roupas normais, o que por um segundo me confundiu.

                A camisa social que usava (por algum motivo que devia ser relacionado ao seu gosto pessoal apenas) mostrava um corpo tão alto e forte como o de Kanda que o uniforme de trabalho com certeza escondia.

                Talvez produto do trabalho em uma mina?

                E será que tinha alguém nesse universo que não era extremamente atraente?

                -Ah, Tyki- eu disse, assustado pelo súbito aparecimento- é, são roupas muito quentes. Quentes demais pra esse clima.

                -Eu imaginei- ele respondeu, enquanto apertava minha mão em um cumprimento. Algo no modo como ele me olhava me dava calafrios, mas qualquer contato com estranhos gerava o mesmo sentimento.

                Ele virou para o japonês, esperando que ele também o cumprimentasse, contudo sua mão estendida permaneceu ignorada. Kanda chegou a encará-la, como se fosse um coração humano fresco que o fosse oferecido.

                Ou seja, com nojo.

                Quer dizer, não sei, o samurai parece o tipo de pessoa que recusaria uma oferenda assim. Talvez eu o chamasse para sair entregando o coração fresco do Lavi como presente.

                -Kanda- Tyki disse, talvez imaginando que o outro estivesse apenas distraído, mas o moreno nem se dedicou a olhá-lo nos olhos.

                É. Ele claramente não estava brincando quando disse dezenas de vezes que não queria Tyki na missão.

                -Kanda!- sussurrei, repreensivo.

                Tyki, como se não tivesse sido completamente ignorado, apenas recolheu de volta sua mão, rindo calmamente. Sendo sincero, se fosse eu, já estaria quase chorando.

                -Tudo bem, percebo quando não sou tão bem vindo- explicou, sorrindo. Vi que o comentário se dedicava apenas ao japonês e verdadeiramente não continha nenhum tipo de ressentimento.

                -Hã...não é isso, não é isso- eu ri nervoso, tentando arranjar desculpas- Ele é assim com todo mundo. Hã...Hm...Faz parte de ser exorcista. Qualquer um pode ser um inimigo, afinal. Tocar a mão de estranhos pode ser perigoso.

                -Hm... Então acho melhor não o cumprimentar mesmo.

                Antes que Kanda resolvesse responder e a situação ficasse ainda pior, Lavi voltava de seus afazeres na estação. Não via, porém, nenhum tipo de passagem em suas mãos para podermos entrar no trem.

                O ruivo olhou o homem de cima a baixo, antes de apresentar-se com certa pressa e entusiasmo.

                - Olá, Tyki não é? Obrigado pela sua contribuição, estamos realmente perdidos quanto ao lugar- ele cumprimentou-o, da forma como Kanda não havia feito- Eu sou Lavi, um Bookman. Não que eu ache que você saiba o que isso é, mas está avisado.

                -Claro, prazer- ele, com um sorriso polido e educado que eu estava percebendo que era o seu sempre- Tyki Mikk, funcionário de farmácia. Não tão interessante quanto ser um exorcista, imagino.

                -Com certeza menos perigoso- eu sugeri, ao qual ele riu. Kanda pareceu pessoalmente ofendido pela risada.

                -Com tudo isso aqui, estou achando que talvez seja tanto quanto- ele sorriu- Mas eu acho que um pouco de perigo pode fazer bem a essa vida entediante, não é? Honestamente, apenas fico feliz em ajudar, nunca fui muito de aventuras e oportunidades assim não costumam aparecer tanto. Nunca se sabe quando dois exorcistas vão destruir novamente o lugar onde você trabalha.

                -Ah, não se preocupe com esses dois- Lavi deu-lhe um tapa nas costas que não pareceu instigar a mínima reação- Brigam como se fossem casados há anos como forma de compensar a chama flamejante de seu amor. Ou tensão sexual, acho.

                Ainda que eu esperasse uma reação extrema de Kanda, ele apenas rolou os olhos, completamente alheio ao rubor que subia às minhas bochechas.

                -Hm, é mesmo?- Tyki murmurou, olhando por uma fração de segundo nos meus olhos.

                Ninguém pareceu perceber esse pequeno gesto e ao invés disso, Lavi pareceu se lembrar do que tínhamos que fazer.

                -Ok, conseguimos abrir vagas para nós no próximo trem. Quando pudermos ir, o trem parte. Isso aqui- ele apontou para a rose croix- servirá como nossa passagem então pelo menos tenha o uniforme na mão, Allen, pra poder entrar. Ah, podemos ir comer alguma coisa antes de irmos, acho que vi uma lanchonete no caminho para cá.

                -Eu achei que o trem estivesse para partir agora- eu disse, porque o vi parado há muito tempo, os lugares lá dentro pareciam cheios e parecia pronto para continuar seu caminho, não havia nada que indicasse o contrário.

                Para isso, o ruivo riu alto, espantando as pessoas que passavam nas proximidades.

                -Allen, nós somos exorcistas— zombou, rindo e batendo as costas da mão no ombro de Kanda, que não gostou nem um pouco do toque- Quem dita a hora de partir somos nós. Veja só, hora de partida. Pfff.

                Ele gargalhou por um bom tempo, enquanto Kanda e Tyki nem se preocupavam em absorver o comentário, estavam ocupados demais encarando-se mortalmente, olho sobre olho. Nem parecia notar que eu o observava.

                Era estranho. Senti uma pontada no peito que logo tornou a desaparecer.

                E nesse clima legal, embarcamos em nosso trem, dedicados a resolver essa missão de uma vez por todas.

                Só espero que a viagem seja tranquila.

—X-

oOo

—X-

                A viagem não foi tranquila.

                Na verdade, se possível, poderia dizer que estava sendo exatamente o extremo contrário de tranquila.

                Meu único consolo era o fato de eu não ter passado mal, o que costumava acontecer no outro mundo quando eu entrava em qualquer veículo. Penso que só possa significar uma melhora no meu organismo, como Komui tinha prometido, contrariando minhas suspeitas quando ele rodou exames após meus singulares ataques nesse universo.

                Talvez realmente tenham sido casos isolados.

                Então, por isso, você deve pensar, a viagem deveria ser um momento pacífico e de felicidade. Claro que seria. Eu estaria me sentindo muito bem, com o vento batendo no meu rosto pela fresta da janela aberta, os funcionários entregando petiscos de viagem (o que uma rose croix não fazia?) e os assentos confortáveis de primeira classe que disponibilizavam para exorcistas (depois de expulsar os ricaços que o haviam reservado, claro. Tchau, tchau, para o caviar deles).

                Seria mesmo uma ótima viagem. Um descanso, no meio de tanta confusão. Poder parar por alguns minutos e simplesmente observar a paisagem correr para alcançar o trem.

                Seria uma boa viagem... se eu e todo meu azar não estivéssemos ali!

                Permita-me esclarecer rapidamente.

                Para começo de conversa, Lavi não calou a boca um segundo. Fiz questão de sentar ao lado de Kanda e ainda assim o ruivo virava para trás para me importunar com comentários que passaram de engraçados a propositalmente irritantes dez segundos depois da partida.

                Chegou a um ponto em que toda vez que sua cabeça surgia na cadeira da frente para fazer um comentário malicioso e me usar como assunto para dar em cima de uma mulher, eu tinha que me segurar para não enfiar um dedo direto em seu olho para que tivesse que usar dois tapa-olhos. Ou um tapa-olho só, gigante.

                Agora eu tinha plena consciência de como era sentir o que Kanda sentia...bem, o tempo inteiro, a julgar pela sua expressão natural de quem chupou limão, bateu o mindinho do pé num móvel e sem querer jogou a colher no lixo e colocou o pote vazio de danone na pia.

                A propósito, isto nos leva ao segundo ponto ruim da viagem, porque era de se esperar que o samurai estivesse usando o pescoço do Lavi como afiador de espada e aliviando, consequentemente, meu sofrimento. Mas não. Ao invés disso, ele passou todo o tempo brincando de quem encarava por mais tempo com Tyki, que sentava em uma cadeira ao nosso lado, separado pelo corredor.

                Ele nem parecia notar minha presença ao seu lado.

                Eu estaria mentindo se dissesse que aquilo não fazia meu peito afundar mais e mais.

                Logo, minha única companhia naquela tornava-se o Lavi, o que já era demonstração do quão ruim a situação estava por si só.

                Só que o pior de tudo foi que isso não foi a pior parte da viagem. Não, claro que não, porque isso seria apenas um cutucão na terrível vida (pós-morte) de Allen Walker.

                O que nos trazia ao grande problema atual, que conseguia ultrapassar todos meus problemas direto para o topo da lista de piores problemas. O mais problemático de todos.

                Visualize por um segundo minha atual situação:              

                -Yuu! Eu disse para levar o Tyki para um lugar mais seguro!- Lavi gritou no meu ouvido, enquanto esguiava-se entre golpes e balas desintegrantes.

                -Tsc. E eu já disse para deixar ele morrer- foi a resposta de Kanda, que falou com a calma natural que não correspondia nem um pouco à situação. Sendo ela estressante por si só.

                -E eu já disse para pararem de discutir e começarem a fazer! Por favor!- era o que eu teria respondido, se eu não estivesse muito ocupado gritando um pouco.

                Ok, gritando muito. E que isso fique entre nós. 

                Mesmo com a innocence ativada, o pânico era o mesmo.

                Como chegamos de piadas infames a esse ponto? Simples.

Parece que não éramos os únicos seres com poderes extraordinários a desfrutar de uma viagem de trem, porque a meio caminho fomos surpreendidos com barulhos de tiros pouco convencionais vindo de algum lugar do veículo em movimento.

Lavi, que havia acabado de virar em minha direção para mais um comentário indesejável, fechou o rosto no exato momento do som anormal. Kanda não tirou os olhos de Tyki, que parecia desnecessariamente calmo para o susto, mas ainda assim vi seus dedos escorregarem para a bainha, encostada ao lado de seu assento.

 O ruivo levantou para acalmar as pessoas do vagão que também haviam ouvido, porém eu sabia que ele estava tentando sondar a origem dos tiros, o lugar ficando tenso e anormalmente quieto.

Eu, experiente em filmes hollywoodianos de terror e ação, torcia firmemente para que meus instintos midiáticos estivessem errados. Arrisquei um olhar para Kanda, que, apenas naquela vez, desviou de Tyki para me encarar de volta, olhos de certa forma preocupados, mas ainda assim calmantes.

Foi quando meu olho sofreu uma grande ardência que me fez cobri-lo com uma mão. E assim que retirei os dedos que cobriam minha visão, percebi. O mundo estava preto e branco, pequenas imagens flutuando no canto do meu olho, como alertas de vírus num computador.

Meu olho estava ativado.

                Sem embargo, antes que pudéssemos averiguar a situação ou mesmo escoltar as pessoas a um canto mais seguro do trem, irromperam pelas paredes de todos os cantos alguns akumas. Ou melhor, romperam as paredes. Mãos longas e unhas afiadas cortando e arrancando as estruturas para arranjarem passagem.

                Se eu gritei alto, tenho certeza de que não fui o único.

Pela atitude nada amigável e muito agressiva deles, imaginava que não estivessem ali para curtir uma viagem pelos campos e descolar uma carona de graça.

                Foi quando miraram seus canhões diretamente em nossa direção.

                E se não fosse meu ato reflexo em acionar a Crown Clown e encobrir o grupo, talvez não tivéssemos sobrevivido para estarmos lutando agora. Mesmo assim, meus atos heroicos ficaram por aí, já que meio minuto depois eu já estava entrando em pânico e eu não conseguia pensar muito bem sob meus gritos de agonia e respiração pesada.

                Na verdade, eu não notei que gritava initerruptamente, escapando dos tiros de Níveis 1 e golpes de alguns níveis 2 com a proteção da capa Crown Clown, até Kanda apontar o fato.

                O que nos traz novamente à atual situação.

                -Moyashi!- ele gritou, pelo que não parecia ser a primeira vez até que eu ouvisse- Se quiser ajudar, pare. De. Gritar!

                Minha boca fechou-se, estalando com a rapidez, o que pareceu diminuir o olhar mortal que Kanda me lançava. Ainda assim, o grito não me abandonou, apenas permaneceu internalizado enquanto eu me preocupava em, bem, não ser pulverizado.

                É claro que no mangá as cenas de ação ficavam explícitas, bem expostas em sua dinâmica, talvez mais que eu um livro, por exemplo, que se sustenta nas dimensões das palavras. O que o nem mesmo o mangá mostrava como a situação apresentava era o barulho ensurdecedor dos tiros e explosões. Misturados a corrente sanguínea latejante, pulsando nos ouvidos, que pareciam tão inúteis e lesados.

                Pequenos cacos riscando a pele em cortes finos, os olhos secos pelo pó que subia da destruição do vagão. Surpreendia-me que ainda estivesse conectado ao resto do trem em movimento, uma vez que grande parte de sua parte superior havia desaparecido em destroços. Agora, era praticamente uma tábua com rodas, conectada a um grande veículo em alta velocidade.

                -Moyashi!- ele gritou novamente, instalando uma conversa como se não estivesse no meio de uma batalha, com sua querida espada enfiada até o punho na carne podre de um akuma- Se não vai ajudar, saia daqui! Agora!

                Como que para pontuar a frase, ele moveu a mugen para cima, cortando o nível 2 pela metade.

                Nessas horas, eu agradecia por akumas praticamente explodirem quando enfrentados e não liberarem algum tipo de gosma nojenta toda vez que fossem cortados. Poupava o custo da lavanderia.

                Quer dizer, estraçalhava os uniformes e as pessoas da Divisão de Ciências que tinham que ficar arrumando não gostavam nem um pouco. Mas, ei, pelo menos os estraçalhados não somos nós, não é mesmo?

                Na maioria das vezes, pelo menos...

                Com toda a coragem que me faltava, resolvi aproveitar a deixa para sair da linha de tiro. O único problema era como me mover da minha posição, completamente defensiva, para me locomover para o outro lado do vagão, onde estava sua ligação ao trem.

                Como que ouvindo minha hesitação, o martelo de Lavi passou por cima de minha cabeça e atingiu um nível 2 maligno, cujos dentes da grande boca pareciam crescer o quanto ele desejasse, mesmo enquanto ordenava os poucos níveis 1 restantes da aparente frota. O monstro desmanchou-se em uma explosão abafada, levando alguns dos outros em sua volta.

                Os tiros diminuíram consideravelmente e eu pude descansar a Crown Clown que me servia de escudo.

                -Allen!- o ruivo gritou, girando o grande martelo pelo ar para alcançar alguns akumas que voavam acima de nossas cabeças. Parecia um enxame colorido e monstruoso, cada nível 2 despontando uma habilidade e uma forma diferente, todas macabras, saídas dos piores contos e creppypastas— O que você está fazendo?!

O tom de Lavi era o mais sério que o ouvi proferir desde que cheguei a esse mundo, tão descaracterizado que eu sabia que devia confiar e obedecer

— Pegue o Tyki e os civis! Leve-os para o próximo vagão!- ele apontou com o dedo por uma fração de segundo antes de retomar a luta, seu martelo batendo com tudo na cabeça de um akuma na forma de um vespa muito, muito, muito feia.

                Foi então que eu olhei para o lado cuja visão antes era encoberta pela minha innocence. Era lá que as poucas pessoas que nos acompanhavam no vagão estavam agachadas e agrupadas, atrás de restos de paredes e assentos. Não era preciso (e mal havia tempo para) observar atentamente e perceber que estavam assustadas e nervosas, agarrando-se às pessoas amadas e às últimas esperanças de um pesadelo em vida real.

Como se tudo aquilo fosse algo... de outro mundo. E, para elas, não era.

                Engoli seco no pouco tempo que me restava.

                Não havia tempo para sentir culpa, apenas para agir.

                Olhei para Lavi, procurando alguma dica, algum sinal de preparação, mas ele estava mais uma vez imerso na luta contra o enxame, longe demais para alcança-lo.

                Agora, o desafio era andar sobre um (resto de) vagão em alta velocidade, tentando escapar de vários ataques e escoltar famílias sobre uma pequena e instável conexão entre os vagões até o outro lado.

                Ok, hora de respirar fundo. Bem fundo. Não, mais fundo. Mais fundo ainda. Tão fundo quanto o buraco que há na minha auto-estima. É, agora sim.

                Recolhi a Crown Clown ao mínimo para poder correr até os destroços mais próximos, onde eu poderia me recostar no chão e esperar um momento oportuno para chegar aos civis sem ficar diretamente na mira dos tiros e ataques.

                Dei alguns passos antes de deslizar e agachar perto do que restava de um assento de cabine. Esperei meus pulmões e coração recuperarem seu ritmo antes de arriscar olhar para fora e estabelecer minha rota.

                Lavi e Kanda pareciam estar bem, no lado contrário ao que eu ia, mantendo os monstros ocupados e... mortos, eu acho. O bastante, pelo menos, para que as pessoas estivessem fora das várias miras, mas ainda assim ainda estavam perto demais do perigo. Principalmente porque, bem, não havia muito o que fazer para realoca-las em um local seguro.

                Antes de me mover até elas, tentei ver uma forma de passa-las para o próximo vagão, a única saída daquele inferno ambulante. Eu não sabia, mas com meu conhecimento hollywoodiano deduzi que muito provavelmente as barras que conectavam as duas partes estejam bem instáveis, juntas por pouco. Havia pouco mais de meia dúzia de pessoas para passar em uma fina conexão de aço encaixada em outra fina conexão de aço que levava à porta fechada do próximo vagão sem chamar atenção dos akumas enquanto o fazia.

E isso precisava ser o mais rápido possível, levando em conta o quão bom em farejar exorcistas esses demônios eram. Sério, eles precisavam de um novo hobby...como crochê! Ouvi falar que pode ser muito calmante.

Por que eu não havia feito crochê? Claro que eu tinha que me envolver com histórias violentas.

Virei para trás, verificando se não havia algum vindo em minha direção, apenas vendo os meus dois companheiros despedaçando um após o outro. Se você me perguntar, eles pareciam felizes até demais em massacrar os inimigos, mas penso que viver na Ordem deve ferrar com muitos neurônios. De que outro modo explicaria Lavi e Kanda? Ou Komui?

Destroçar aquelas coisas feias deve ser até terapêutico.

Talvez por isso não fizessem crochê? Vai saber.

Mas não foi isso que me chamou a maior atenção. Quando estava para voltar a olhar os civis, captei a figura estática recostada em uma das paredes, no lado contrário ao em que deveria estar. Ou seja, bem debaixo da luta.

—Tyki?!- gritei em um sussurro. Não sei nem porque tentei me silenciar, já que entre gritos, tiros, xingamentos, discursos de vilão e comentários sarcásticos de herói, minhas palavras certamente sairiam despercebidas.

O homem, claro, não me ouviu. Estava em pé, num resto de parede, observando o enxame rodar acima de nossas cabeças com os braços cruzados, como se estivesse observando nada mais que uma apresentação horrível de um sobrinho chato na escola.

Como se não estivesse parado em cima de um vagão condenado, cercado por monstros que podiam mata-lo em um instante.

Por mais estranho que fosse, no momento, sabia apenas que devia tirá-lo dali e movê-lo para perto dos outros civis. Era provável que estivesse em choque ou apenas fosse extremamente insano.

—Tyki!!- tentei gritar, esperando que não fosse um escândalo suficiente para atrair atenção inimiga para mim. Minha voz não pareceu afetá-lo ou nem mesmo atingi-lo, seu rosto ainda posto numa observação intrigante. Porém, sabia que ali estava uma concentração anormal e perigosa de monstros, entrar ali com uma innocence empunhada era talvez suicídio.

Os barulhos eram muitos e eu lutava para tirar o cabelo que insistia em chicotear na minha cabeça e cobrir meus olhos para poder observar bem os componentes da situação delicada em que estávamos, mal conseguia formar uma boa imagem de sua postura.

Mas eu não tinha tempo ou modos de conseguir fazê-lo. Eu tinha que mergulhar naquela confusão rápido, com toda minha “desengonçadeza”, e tirá-lo dali, antes que algum mal acontecesse. Ele era apenas mais um que havia arrastado para dentro da confusão e seria eu a arrastá-lo para fora.

Eu não posso estregar mais vidas além da minha própria. Simplesmente não podia.

Poucos passos depois dele, Kanda e Lavi detonavam akuma após akuma, parecendo atrair cada vez mais a cada um derrotado. O moreno havia dispensado o sobretudo do uniforme, eu podia notar de onde estava algumas gotas de suor escorrendo em sua testa, mas ele não parecia pronto para desistir.

Como se sentisse que eu o observava, seu olhar me encontrou na bagunça. Ele parou por um milésimo de segundo de balançar sua espada para me observar, antes de se defender de um golpe e cortar ao meio uma criatura azarada. Quando voltou a me olhar, pareceu no mínimo nervoso, como se não entendesse o que eu fazia ali, trocou a espada de mão apenas para gesticular desesperadamente para que eu saísse do meu lugar, como havia pedido antes.

Mas eu não podia.

Inconscientemente ou não, escorreguei meus olhos para onde Tyki estava encostado. O homem mal havia se movido de sua posição inicial, imóvel.

Kanda pareceu vislumbrar o que se passava na minha mente. E não gostou nem um pouco. Podia jurar que vi seus olhos arregalarem em assombro pela ideia e sua boca formular algum grito de advertência.

Se ele não fosse Yuu Kanda e eu não fosse eu, podia jurar que estava um tiquinho preocupado comigo.

Mas eu não podia saber, apenas respirei fundo mais uma vez (fundo, bem fundo), ignorando o alerta que não apenas ele, mas meu próprio senso de sobrevivência davam, e corri na direção de Tyki, vendo acima de sua cabeça akumas voarem de um lado para outro, esperando sua vez para tentar predar exorcistas.

Eu era um verdadeiro alvo, sendo empurrado pelo vento da velocidade do trem direto para o centro da confusão. Tyki, ao menos não estava no centro de tudo e eu tinha que lutar um pouco contra a força para não ser arrastado para longe.

—Tyki!!- tentei gritar mais uma vez, mas era como se o vento levasse minha voz, ele não pareceu ouvir.

Olhei para os lados, não vendo nenhum akuma se atentar à minha audácia (para não dizer burrice) e me aproximei mais, um passo por vez para evitar cair e ser jogado para fora do trem em movimento. Quanto mais chegava ao enxame, apareciam falhas no chão devido à óbvia destruição, buracos de onde eu podia ver a terra e o trilho passando rapidamente logo abaixo de meus pés.

Engoli em seco, porque sabia que pisar em falso numa brecha larga o suficiente poderia significar perder uma perna ou pior.

Contemplei tentar chama-lo novamente, mas quando abria a boca, meu cabelo atropelava-se para me engasgar e minhas mãos estavam demais ocupadas em me apoiar em alguns destroços para me ajudar em qualquer outra coisa. Seria um esforço inútil, já que ele estava apenas a um braço de distância.

Segurei-me num resto de banco para me manter parado enquanto estiquei os dedos para chamar sua atenção, afundando-os em seu braço. Como se finalmente acordado de um sonho, ele olhou surpreso para mim. Sua expressão antes neutra corroeu-se a algo como estranheza, o que era bem compreensível considerando a situação em que estávamos.

                Ele olhou dos akumas para mim. De mim para os akumas. Mas eu não tinha tempo para sua confusão.

                -Tyki!- eu gritei pela milésima vez, a plenos pulmões, apontando para o lado onde deveria levar os civis- Você precisa sair daqui! Vamos ali! Ali!

                Perguntei-me se ele tinha ouvido, não havia como ter certeza. Antes que pudesse saber, comecei a me mover, sabendo que meu nível de exposição certamente poderia chamar atenção indesejada a qualquer momento.

Puxava-o pelo braço, notando que ele me seguia. Meus passos, incertos e desengonçados, não se sincronizavam com seu ritmo consistente e equilibrado, mal parecia estar sofrendo com as condições adversas. Ele era o tipo de corpo que aparecia nos exercícios de física de vestibular: sem atrito, sem resistência do ar.

Não tive forma, porém, de estranha-lo ou invejá-lo, já que minha vida é uma sucessão de azares amontoados em um belo álbum de tristezas e no meio da fuga improvisada minha cabeça assolou-se por uma dor intensa pontuando minhas têmporas. Como se me batessem com um martelo cheio de agulhas repetidamente.

Tive que largar seu braço para colocar minha mão no rosto, numa inútil tentativa de aliviar o sofrimento. Era o tipo de dor que eu havia sentido em outro momento nesse mundo, como se algo da memória estivesse tentando romper pela pele direto para a frente dos meus olhos, sentimentos e noções embaçadas derretendo-se na minha mente.

Só que dessa vez ainda mais forte.

Achei ter ouvido alguém gritar algum chamado, mas algo nos meus sentidos gritavam como “PERIGO”, uma sensação que desceu duramente pela minha garganta. Mas sobre o quê?

Tudo ali era perigoso, Cabeça, obrigado por me alertar.

                Enquanto a dor começava a se dissipar, senti que tinha que terminar aquilo o mais rápido possível. Tentei agarrar novamente o braço de Tyki atrás de mim às cegas, pois meus olhos estavam cobertos ainda pela minha outra mão num gesto para aliviar a dor, mas não o encontrava.

                Ao liberar minha visão, no entanto, não foi com o homem que me deparei. Não. Claro que não.

                Sabe quando você está lavando o cabelo com xampu e tem que fechar os olhos para enxaguá-lo no chuveiro e fica com medo de abri-los novamente porque os filmes de terror te avisam que vai ter um monstro amedrontador na sua frente? É, então.  Só que geralmente você abre os olhos e nunca há nada.

                Eis que me vi frente a frente com três dos akumas mais feios da minha vida. Um arrastava longos braços no chão, um comprido pescoço suportando um rosto que nem a mãe seria capaz de elogiar, outro me lembrava uma borboleta...depois que pisoteada por um tamanco furiosamente, e o último tinha os olhos tão esbugalhados que pugs invejariam.

                Só consegui achar palavras que corretamente descrevessem meus sentimentos na frase dita pelo inspetor da escola católica em que estudei toda vez que visitava o banheiro masculino e via as “poéticas” frases deixadas na cabine pelos alunos em momentos inspiradores:

                -Cruz credo!- falei, não agindo de qualquer outra forma útil como talvez balançar minha innocence direto em suas cabeças.

                -Exorcissssta- um sibilou, exibindo garras que pingavam algum líquido misterioso (e por mim poderia muito bem continuar um mistério).

                Os três começavam a avançar quietamente para mim.

—Quem disse que você podia tocar no nosso chefe?- outro questionou com uma voz estridente, avançando em minha direção lentamente como quem gosta de brincar com sua presa antes de estraçalhá-la em mil pedaços.

                Espera aí. Chefe?

                Quem?

                Estava claro que não esperavam uma reposta, já que não pouparam o tempo em tentarem golpear-me com uma garra longa. Desviei por pouco, agradecendo aos reflexos de tempos de fuga na escola, porém quase pisei em uma fresta do chão, custando-me o equilíbrio e me vi, por pouco, não cair no piso.

                Levantei rápido, desviando de outro golpe. Eles não pareciam preocupados com a velocidade, claramente gostando daquilo.

                Era uma situação na qual eu nunca tinha estado, tão surreal e assustadora que eu não conseguia fazer muito mais que dar passos vacilantes para trás. O modo como eles me olhavam, uma fome aparentemente insaciável, estremecia minhas entranhas e congelava meus pensamentos lógicos.

Tentei me defender com a Crown Clown. Eles estavam perto demais para conseguir efetivamente ataca-los sem colocar alguma parte do meu corpo na vulnerabilidade. Logo, fui sendo empurrado golpes a golpes defendidos até estar quase agachado no chão.

Ocupado entre preservar o estado de minhas pernas não pisando em nenhum buraco, um deles conseguiu enrolar garras afiadas direto na innocence (e agora eu pensava na Edna de Os Incríveis e seu melhor conselho: “NADA DE CAPAS!”), imobilizando-me contra o chão.

                Tudo em mim gritava “CORRA!”, exceto aquela parte, que muito estranhamente parecia com Kanda na minha mente, que falava “LUTE!”. Quis perguntar “Mas como?”, no entanto, estava sozinho para perguntar tanto quanto para responder.

                Estava sozinho. Eu e três monstros.

                Até que não estava.

                Tentando me preparar para defender um novo ataque de garras, não percebi o rápido vulto que chegava ao meu lado. Apenas quando vi o akuma levantar as unhas para um golpe fatal, notei que passados dois, três segundos, eu continuava inteiro e respirando.

                Abri os olhos devagar, não querendo por acidente quebrar a sensação de estar vivo, para ver uma espada bloqueando garras que por centímetros não haviam me tirado um olho.

                -Kanda...?- eu soltei, a voz saindo quebrada e macia. O olhar do samurai encontrou o meu por um milissegundo, antes de forçar a lâmina afiada pelo braço do akuma, que caiu no chão em um som mudo e aliviante. Apesar de, bem, ser um braço decepado bem na minha frente.

                Ele girou novamente a mugen, cortando pelo vento forte, decapitando o monstro antes que ele pudesse gritar pelo membro mutilado. Sua reação foi abafada por seu corpo explodindo instantaneamente, jogando pequenos pedaços por toda a parte.

                Os outros não pareceram gostar da cena, suas expressões antes divertidas contorceram-se a uma fúria que se espalhou por todas suas feições, como se seus corpos inteiros assumissem uma expressão. Vi garras ficarem pontiagudas e olhos ficarem vermelhos, o puro desejo de matar que passavam foi por si só capaz de me desnortear.

                Kanda, por outro lado, não piscou duas vezes. Ele apontou a espada na direção da dupla de akumas, sem se incomodar com a predatória aproximação, e, sem discursos de herói nem palavras engraçadas, riscou a lâmina no ar diretamente no pescoço dos dois, não deixando nem a poeira dos monstros para contar histórias.

                Assoviei, impressionado, vendo o vento lavar as cinzas.

                O moreno embainhou a espada rapidamente, para agarrar meu pulso e me ajudar a ficar novamente em pé. Vestia a fachada mais enfurecida que já o vi ter, o que me deixou com mais medo que dos akumas.

                -O que você pensa que está fazendo?!- ele gritou diretamente em meu rosto, não pela agressividade do gesto, mas porque era impossível ouvir um ao outro a mais de dez centímetros de distância. Se não fosse pelo vento, eu sabia que estaria sentindo sua respiração rápida e úmida bater em meu nariz e somente esse pensamento foi capaz de me estremecer. Daquela posição, podia ver o misto de cores escuras nas suas íris e contar seus cílios e eu queria muito, muito que a situação para isso não fosse essa em que estávamos.

                -Hã... fazendo o que vocês pediram?

                -Nós falamos para tirar os civis daqui!

                -É, e o Tyki é um civil.

                Ele fechou os olhos. Seus lábios formaram uma linha reta, como se estivesse trancafiando suas palavras mais duras lá dentro.

                Suas sobrancelhas se apertaram sobre os intensos que me encaravam de cima a baixo. Ele abriu a boca novamente para falar algo, apenas para ser interrompido por uma comoção ao lado quando Lavi esmagou três akumas sob seu martelo. Ele precisava voltar para o combate e eu estava pronto para voltar à minha posição marginalizada quando notei que seus dedos ainda se firmavam no meu pulso. Não me apertando, mas...ali.

                Ele soltou meu braço.

                -Só...não faça mais isso- disse rapidamente, correndo de volta para onde Lavi estava e novamente empunhando a mugen.

                Para a luta de verdade. A luta da qual eu não participava, porque, olhando claramente para essa minha mais nova performance, eu serviria mais como empecilho que vantagem.

Estava claro que aquele era um trabalho para verdadeiros exorcistas, não garotos franzinos que fingiam ser. Eu não conseguia realizar uma simples tarefa que me dessem, imagine acabar com o mal do mundo.

                E eu ali, derrotado por mim mesmo, como um completo otário que achava que já estava acostumado a ouvir insultos e ainda assim foi destroçado por uma simples ordem.

                Eu queria ficar furioso e, no entanto, estava apenas triste.

                O que me tirou do patético transe em que estava enfiado foi um tranco.

                Por reflexo, consegui me segurar no banco destroçado ao meu lado e não rolei para a morte certa. Percebi uma rachadura do vagão, que separava eu e os civis de Kanda e Lavi, se aprofundar, pronta para partir.

                Foi quando lembrei das pessoas que eu precisava arrastar até outro lugar antes que fossem feitas de esteira humana pelo trem. Olhei para eles, olhei para o caminho tortuoso que teria que fazer velozmente.

                Tyki, que além de surpreendentemente vivo também se segurava no que podia alguns metros à minha frente, olhou para mim como quem sabe o que eu pretendia fazer.

                Bem, eu esperei que ele soubesse, porque não houve tempo para sinalizar meus planos quando disparei em minha máxima velocidade na direção do fim do vagão, pulando de lugar a outro para tentar evitar os buracos que por pouco não me engoliam.

                Para meu alívio, Tyki corria bem a minha frente, com uma graciosidade que eu não poderia nem mesmo pensar em ter.

                Sério, tem certeza que ele era apenas um funcionário de farmácia?

                Ele já havia alcançado o lugar em que os passageiros estavam se protegendo, eu ainda saltava pelo caminho vendo o chão frágil ruir por vezes assim que eu o abandonava, o que apenas contribuiu para meu desespero. Se eu estava gritando um pouquinho, era porque não era assim que eu esperava passar um passeio de trem.

                A poucos passos de onde Tyki gesticulava para mim, como se fosse uma mãe em um jogo de futebol de escola tentando incentivar seu filho a fazer um gol, resolvi não tentar mais o destino e deslizei direto para a linha de chegada.

                Segurei-me nos destroços que acobertavam os civis, para não deslizar direto para o vão entre vagões e ser esmagado, dando cara a cara com uma criança acolhida entre os braços da mãe.

Seus olhos, redondos e brilhantes como enormes bolas de gude, observavam-me em meu desastroso estado de ruínas e encaixados acima de um corte superficial, provavelmente causada pelo lançamento de destroços, que cortava do queixo até sua bochecha rosada.

                Aquela troca de olhares não pode ter durado mais que dois segundos e ainda assim pareceram horas, escavando meu interior. Apesar do tremor hesitante em seus lábios, aquelas írises escuras jaziam secas, sem um pingo de lágrima, encarando-me com a esperança única de um garoto olhando um super-herói de TV passear pela loja de brinquedo vendendo bonecos recém-lançados. Uma mentira, mas ainda assim, real e determinante.

                Bem, desculpe desapontá-lo.

                Resisti à vontade de chorar, assim como a vontade de correr na direção contrária (até porque se o fizesse estaria pulando diretamente na morte). Eu queria mesmo era gritar a plenos pulmões que eu era plenamente capaz de arruinar suas expectativas.

                Ao invés disso, olhei para as outras pessoas, notando que não havia mais nenhuma criança e perguntei:

                -Ei, qual seu nome?- aproximei-me o suficiente para não ter que gritar tão alto.

                Como uma boa criança, ele olhou calmamente para a mãe, esperando seu consentimento para me responder:

                -Andy- ele disse, e eu notei que lhe faltava uns dentes na boca que me faziam lembrar de quando Mana me fazia escondê-los debaixo do travesseiro para esperar pela fada do dente. As moedas que apareciam magicamente rendiam sorrisos meus, ainda que bem banguelas.

                -Oi, Andy, eu sou o Allen. Nossos nomes são bem parecidos, não acha?- ele concordou com a cabeça, apertando a mão da mãe que se enroscava na sua.

                Eu olhei para o caminho que tinha para percorrer, pensando em como guiar tantas pessoas sem perder nenhuma. Eu olhei para aquela dezena de pessoas, amontoadas, um buraco enorme se formando nos meus pensamentos toda vez que encontrava o olhar de uma delas.

                -Como vamos sair daqui?- suspirei para mim mesmo, baixinho. Eu teria que ir de pouco em pouco se quisesse garantir um pouco de segurança, mas ainda assim estaria correndo contra o tempo (e o vento), não havia garantia.

                Eu era apenas um garoto e essa era, para mim, uma multidão de vidas para colocar nas minhas costas.

                Minha innocence não seria capaz de proteger tantas, porém não havia opção a não ser se mover.

—Ok, vamos sair daqui- o tom saiu exausto e eu não me preocupei o suficiente para corrigi-lo.

                -Como?- um homem, cuja barba volumosa parecia requebrar toda vez que a boca se mexia, gesticulava com fúria- nós estamos em dez pessoas e quase não há chão até lá. Você vai simplesmente levar todo mundo?!

                Diante de sua reação agressiva, minha resposta ficou presa na garganta. E continuou lá até que uma voz que não era minha surgiu.

                -Não- Tyki respondeu, ao meu lado- Não, vocês vão ter que se dividir em pequenos grupos e a criança vai primeiro. Não pisem onde ele não pisar, movam-se apenas o necessário para se locomover.O moço está certo, o chão está muito frágil, por isso sugiro que vocês comecem a se dividir logo se ainda quiserem ter onde andar- então, ele olhou para mim, um sorriso esticando-se no rosto pleno- Ele consegue. É um exorcista, não é?

                Olhei para seus olhos calmos, recebendo apenas um sorriso estranho e convencido.

Como ele fazia isso?

                Vi que estavam se organizando rapidamente e resolvi aprontar meu psicológico para esse curto desafio. No fim, terminaram por dividirem-se em dois grupos de cinco, os primeiros  já se ajustando para começar a me seguir, recebendo os desejos de boa sorte dos que sairiam logo depois.

                O garoto estava bem à minha frente.

                -Ok, Andy- voltei-me para o garoto, tentando maquiar meu rosto com o máximo de falsa confiança que pudesse- Eu preciso da sua ajuda agora, para a gente conseguir salvar todo mundo. Você consegue me ajudar?- ele acenou a cabeça, confiante- Ok, Andy, eu preciso que você feche bem os olhos e só abra quando eu mandar, tudo bem?

                Eu estendi minha mão para ele, tentando não aparentar a pressa que tinha em tirá-los. O garoto concordou mais uma vez, hesitando em deixar os braços da mãe antes que aceitasse a mão que o oferecia, agarrando-se aos meus dedos com uma força que eu não esperava. A mãe encaixou os olhos no filho com medo e esperança, desesperadamente confiando aquela pequena vida nas mãos de um estranho de uniforme enquanto seguiria meus passos logo atrás.

                Engoli em seco.

                -Tyki- chamei, indicando para que ele entrasse na fila que formava o primeiro grupo.

                Ele refutou com um aceno despreocupado.

                -Não tenho pressa- foi o que respondeu.

                Pensei em convencê-lo, mas senti uma pequena mão apertar-se mais na minha, lembrando que o tempo estava em falta, principalmente para discussões. Ao invés disso, respirei fundo e firmei meu primeiro passo.

                -Andy, você já pode fechar os olhos. Você não pode soltar minha mão, tudo bem? Nós vamos começar a andar- o garoto, de olhos cerrados com força, concordou, enquanto eu me afastava do grupo em direção ao outro vagão, envolvendo-o com a Crown Clown.

                Consciente de que estava guiando não um corpo, mas seis, atentei-me a velocidade em que andava além das falhas que cresciam em número e tamanho pelo chão. Conforme eu andava, a feição do garoto parecia se acalmar, provavelmente sentindo apenas a brisa e o suor da minha mão na sua. Queria eu poder fechar os olhos e me livrar desse pânico.  

                Os outros seguiam em meu encalço, optando por não se agarrarem um à mão do outro, não querendo que o escorregão de um fosse fatal para todos.

                Quanto mais me aproximava do destino, o chão parecia ficar mais instável, rangendo e afundando milímetros sob meu peso, o que por vezes me fazia mudar de direção e desviar. Todos pareciam estar indo muito bem, nenhum incidente preocupante. Eu estava, na verdade, mais concentrado em ter certeza de que o garoto estava pisando nos mesmos lugares que eu e tentando manter sua calma.

                -Ei, Andy, me diz- comecei, pensando em distraí-lo dos barulhos assustadores que claramente faziam-no tremer- para onde você estava indo de trem?

                -P-pra casa da vovó- ele respondeu, apertando meus dedos com tanta força que temi que pudesse machucá-los de verdade.

                -Que legal, com seus pais?- meu pé derrubou pedaços decadentes de onde pisou e tive que desviar, testando a superfície seguinte.

                Ele acenou a cabeça.

                -E meu irmão- completou, parecendo mais calmo enquanto me seguia.

                -Hm.

                -A-a gente joga o jogo de adivinhar. Nas viagens.

                -Você e o seu irmão? Como se joga?

                -Você tem que adivinhar quem eu sou. Tem que ficar perguntando. O Teddy sempre ganha, mesmo quando me dá dicas.

                -Parece algo divertido! Eu também fazia jogos com o meu pai quando íamos viajar, mas ele gostava mais de cantar. Eram sempre as mesmas músicas, músicas de gente velha, sabe? E eu não gosto de cantar. Mas depois de um tempo eu acabava cantando também. Às vezes tão alto que as pessoas reclamavam e tínhamos que passar o resto da viagem cantando baixinho.

                -Você também veio com o seu pai, moço?

                Engoli em seco, percebendo que estava falando demais.

                -Não, não vim- ri, porque parecia uma reação razoavelmente calma.

                -Por que não?- ele indagou, parecendo não entender.

                -Ele está longe daqui.

                -Hm, onde ele tá?

                Abri a boca, determinado a dar uma resposta, seja lá qual fosse, mas fui impedido.

O trem deu um solavanco rápido, desestabilizando-me do meu pouco equilíbrio, não chegando a separar nossas mãos, porém o bastante para me fazer bater num destroço e pisar diretamente numa área desestabilizada. Meu pé afundou, rompendo pelo chão quebradiço, mais um buraco para a coleção e uma dor em minha panturrilha que eu seriamente não queria investigar com medo de ver algo que me faria desmaiar ali e agora, com uma criança nos braços e uma missão incompleta.

Ouvi alguém soltar um grito surpreso e minha innocence esticou-se na tentativa de estabilizar quem quer que fosse, todavia parecia que ninguém havia sofrido mais que um susto.

—Moço?- o garoto perguntou, provavelmente sentindo minha caída e chiada de dor. Testei rapidamente meu pé, verificando que ainda estava funcional, antes de me virar para o Andy.

—Vamos!- falei, ainda que por pouco mancasse. Tomei cuidado extra para desviá-lo do novo buraco, levantando-o pelo braço para flutuar sobre a instabilidade.

Por fim, faltava apenas passar pelo vínculo metálico que acoplava os dois vagões. Não passavam de relativamente finas barras de ferro presas por algum tipo de parafuso entre elas, que tremia junto com o trem, no entanto, consegui estender o braço que não estava ocupado e alcancei a porta, ainda que penando para me balancear com o vento e o movimento imprevisível.

Usei a innocence para arrombá-la, percebendo que o lugar estava completamente vazio, os ocupantes provavelmente tendo escapado para o próximo vagão com mais facilidade.

Pisei no metal estreito e instável, conseguindo alcançar o chão firme com um pé. O que me mantinha em pé era a Crown Clown, agarrada às paredes do lugar.

—Andy- eu disse, a voz mais alta que consegui sem transformar em um grito- eu vou te puxar agora, não abra os olhos ainda!

A única resposta que tive foi uma um balançar afirmativo de cabeça antes de puxá-lo pelo braço. Apesar do susto, Andy pousou em problemas, me deixando soltar um suspiro aliviado.

Porém eu não tinha tempo para sentir alívio.

—Ei- eu peguei seu rosto em minhas mãos, aproveitando a falta de barulhos para falar com mais calma- pode abrir os olhos.

O garoto abriu imediatamente, os olhos arregalados novamente encontrando meu rosto. Ele parecia bem, nenhum machucado além dos que já descansavam antes em seu rosto e neste eu não via nem mesmo medo. Fui capaz de sentir inveja.

—Você foi muito bem, Andy- eu disse, vendo um pequeno sorriso tímido desenrolar em seu rosto- e eu preciso que você não saia daqui, tudo bem? Eu já volto- vi-o correr para sentar nas poltronas almofadadas enquanto me direcionava para onde antes ficava a porta- Tente ficar ali nos bancos. Não saia!

Com isso, pude guiar um a um para dentro do outro vagão, a innocence servindo como apoio para que passassem pela área instável. Contei cinco pessoas passando e pude suspirar em alívio.

A volta foi consideravelmente mais fácil, já que não tinha uma criança acoplada à minha mão, mas ainda assim estava penando para respirar e conseguia sentir o vento esfriar o suor que se assentava em meu rosto. A Crown Clown é bonitinha, porém se eu já sentia calor com o uniforme da Ordem, imagine com essa capa gigante pendurada no meu corpo.

Por isso, assim que vi Kanda parado entre os civis, nem pude admirar o modo como seu cabelo balançava ao vento ou mais coisas poéticas, porque tudo que eu pensava era em como eu estava precisando de uma mão. Talvez duas mãos. Dois pés. Uma pessoa inteira. Ok, talvez uma multidão.

Ele não parecia muito feliz (mas quando ele parecia, não é mesmo?), parecia estar em uma conversa fervorosa com Tyki, seu punho abrindo e fechando ao lado de seu corpo como se estivesse realmente planejando uma briga. Isso até captar minha figura ambulante chegando e empurrar o outro de sua frente imediatamente.

—Moyashi!- ele gritou, enquanto eu me aproximava. Sua espada estava embainhada e eu presumia que Lavi estava agora sozinho contra o enxame.

—Kanda?- foi a coisa mais esperta que me apareceu quando o alcancei, minha perna doeu com um passo mal dado e suas mãos pararam em meu ombro para me estabilizar.

—Sua perna- ele observou, as sobrancelhas juntas, vendo os arranhões e arroxeados que contornavam da minha panturrilha ao calcanhar. Vi seus dedos mexerem-se como se fossem tocar, mas pararam e continuaram em meu ombro.

—Não é nada grave- respondi, tentando fazer com que meu rosto não demonstrasse o contrário.

Ele apertou os lábios sem tirar os olhos do machucado antes de resolver olhar para meu rosto miserável por fim.

—Eu disse para sair daqui!- repetiu, como se falasse com uma criança teimosa. O que talvez eu pudesse ser considerado. Apenas talvez.

—Eu sei!- e eu era completamente idiota por não ter só aceitado a ordem e ido- Mas o Lavi disse que alguém precisava tirar os civis.

—E você prefere obedecê-lo do que me obedecer?!

—Hã...O que ele falou parecia muito mais razoável do que abandonar essas pessoas.

Se possível, ele pareceu ainda mais estressado, seus dedos ainda presentes nos meus ombros, pesando.

—Não precisava ser você!

O que por algum motivo antes de me enfurecer me entristeceu e, no entanto, a raiva era muito mais fácil de se mostrar que os meus pedaços quebrados.

—Então quem seria?!- eu respondi, forçando meus lábios apertados a se abrirem- Quem?! Você e Lavi?! Vocês estão ocupados demais fazendo o trabalho de verdade! Como vocês fariam as duas coisas ao mesmo tempo?!- exasperei, percebendo que estava gesticulando demais- Desculpa se você acha que não sirvo para o trabalho. Eu sei que eu não sirvo! Mas eu sou o que tem pra hoje, eu sou o que restou pra isso, então, desculpa se você lembrou que eu não sou tão útil assim agora! Não tem mais ninguém! Então, por favor, me deixe desperdiçar minha segunda vida em paz!

Esperei dois segundos, recuperando meu fôlego e agradecendo pelo vento não deixar que meus olhos escorressem em lágrimas de raiva. Kanda não falou mais nada, o rosto aparentemente perplexo.

Eu apenas me virei para os civis, não sentindo seu aperto no ombro mais assim que me afastei do toque. Vi Tyki me olhar espantado, claramente tendo presenciado a confusão, e tudo que eu queria naquele momento era socar aquela cara pretenciosa.

                Antes que eu pudesse abrir a boca, porém, o trem deu um solavanco tão forte que me fez pensar que estava finalmente se partindo ao meio. Fui jogado contra um banco, forçando a minha perna já dolorida.

                -Moyas-

                -Allen- senti a mão de Tyki em meu ombro, a voz sempre plena- está tudo bem?

                -Sim- eu disse, apesar da clara dor que sentia. Imaginava se talvez tivesse realmente chegado a quebrar algo do osso- só um tropeço.

                -Tsc. Eu vou tirar os últimos civis e você precisa ir pro outro vagão- Kanda disse, espantando a mão de Tyki das minhas costas para me empurrar sem força na direção que queria que eu percorresse- precisamos ser rápidos com isso.

                -Espera, você realmente vai me expulsar da luta?!- depois de dois segundos, lembrei de outro ponto- E o Lavi?

                -Acho que ele consegue se virar. E se não consegue...ninguém vai sentir falta dele mesmo – ele disse, parecendo estar bem confortável com essa linha de pensamento e provavelmente estava.

                -E por mim- ele virou para Tyki, algo como um cômico desprezo descendo pela sua voz alta- o cara da farmácia podia ficar nesse vagão aqui mesmo. Aconselho aquele lugar- e apontou para onde Lavi martelava akumas atrás de akumas rodopiando pela sua cabeça como moscas em carniça- é bem aconchegante.

                O sorriso que o japonês entregou foi ácido e alarmante e, no entanto, Tyki pareceu ver graça naquilo, sorrindo da mesma forma como que imerso em uma piada interna.

                Alguém me tire do meio dessa tensão, por favor? Isso aqui tem tudo para ficar pior que a própria Guerra Fria (como monstros desintegrantes, armas criadas de uma substância divina e, bem, eu).

                O trem deu outro grande tremor, porém dessa vez antes que eu fosse prejudicado pelo meu ferimento, Kanda me segurou para que eu não rebatesse em uma superfície sólida.

                -Moyashi! Você precisa ir- ele disse mais uma vez, sua mão firmando minha posição ainda uma presença que eu não conseguia parar de sentir.  

                -Eu posso ajudar ainda- eu disse, nem mesmo conseguindo convencer a mim mesmo.

                -Não- ele disse, firme- você tem que ir. É uma ordem.

                -Hã... você não é superior a mim para me ordenar por aí- tecnicamente ele era, mas vamos deixar isso quieto.

                Ele franziu a testa, o que há algum tempo já estava começando a perder a etiqueta de “assustador” para “algo normal, sinceramente no Kanda isso pode significar qualquer coisa”.

                -Que tal você vai para o outro vagão agora- ele começou, a voz estranhamente calma e pausada. Dizia muito sobre nossa relação que eu comecei a ficar apreensivo com sua calmaria inusitada e me provei completamente certo quando ele desembainhou sua espada em um milésimo de segundo e apontou diretamente para a garganta de um Tyki (minimamente) surpreso- Ou eu o degolo?

                Abri a boca para protestar o ato violento quando ele continuou:

                -E ainda penduro a cabeça decepada em uma estaca. O local onde eu vou expor a obra prima fica a sua escolha.

                Fechei a boca em um estalo, notando o modo como ele me olhava esperando algum tipo de ação. Não fiz, apesar disso, nenhuma menção de mover na direção desejada e ele forçou a lâmina ainda mais no pescoço do homem, como quem diz “Está duvidando? Vai ser um prazer mostrar o contrário”.

                Por fim, suspirei, frustrado. É a isso que a minha vida veio a se resumir? Participar de ameaças mortais envolvendo espadas e pessoas bonitas? Pensando bem, alguns diriam que venci na vida.

                -Você é louco- murmurei, ainda que tivesse feito questão de ser alto o suficiente para Kanda ouvir. Ainda assim, comecei a me mover para fora dali- E, só pra deixar claro, eu ia expor a cabeça decepada bem na frente do seu quarto, pro sangue sujar todo seu tapete e você ficar escorregando nele o tempo todo.

                -Você que sabe. Pra mim isso seria ótimo- ele gritou de volta, como o psicopata que era, e parecendo bem contente com sua vitória. Sua voz ficava cada vez mais perdida no vento enquanto me afastava, tentando consumir a vontade de olhar para trás para poder me concentrar no caminho tortuoso à frente.

                A ida, dessa vez, até o vagão seguro não foi tão difícil, até porque já sabia dos empecilhos mais complicados. Mesmo com a dor na perna e as falhas mais numerosas que da primeira vez, tive a sorte de não acontecer mais nenhum abalo e consegui alcançar a porta (ou o resto dela, afinal eu mesmo já havia destruído).

                Desativei a Crown Clown, sentindo uma onda de energia que antes provavelmente estava sendo consumida pela innocence e, internamente, agradeci Kanda por ter me feito ir, porque claramente eu não estava em nenhuma condição de aguentar nem uma formiga lutadora.

                Vi Andy acenar para mim de um canto, abraçado à mãe e rodeado pela família.

                Independente da angústia invejosa no meu peito, correspondi ao aceno com um sorriso, ainda assim feliz porque aquele garoto tinha um lar, um irmão para jogar um jogo de viagem, uma mãe e um pai para segurá-lo.

                Eu tinha apenas a memória do toque paternal.

                Minha dor foi interrompida pela chegada e novas pessoas, Kanda logo atrás, com Tyki no encalço (mesmo que o exorcista parecesse completamente descontente com o fato de este estar ainda respirando).

                Para minha surpresa, ele estava sendo extremamente cuidadoso no trabalho. Ajudava as pessoas pela passagem instável, segurava a mão daqueles que se sentiam desequilibrados e parecia até mesmo estar respondendo ao que alguns falavam.

                Apenas quando a última pessoa foi realocada e Kanda entrou completamente no vagão que percebi que estava encarando por um bom tempo sem me desviar. Tentei disfarçar olhando para outros lugares, mas Tyki, de todas as pessoas, pareceu ter captado minha atitude do outro lado do vagão.

                Kanda parecia cansado quando acionou seu golem de comunicação.

                -Usagi- ouvi ele dizer- eu, o Moyashi e os civis já estamos no vagão seguro.

                -Tudo bem— a voz estática respondeu. Conseguia ouvir os barulhos de uma clara luta ocorrendo ao fundo- Já estou indo.

                A ligação foi cortada, porém seguida por uma sucessão de explosões e tiros em vida real até que Lavi pulou diretamente no vagão também, coberto em suor e sujeira e mesmo assim despontando um sorriso.

                -Acho que é hora de fazer esse martelo crescer de verdade- disse, aparentando confiança apesar de estar claramente sem ar enquanto voltou-se em minha direção para dar uma piscada de olho- Se é que você me entende.

                Antes que Kanda (ou qualquer outra pessoa, sejamos sinceros) pudesse fazer o bom serviço de mata-lo, sua innocence cresceu a um tamanho absurdo.

                Quando ele martelou o vagão destruído e infestado do resto de monstros, porém, o lugar rompeu-se em chamas altas, subindo metros o suficiente para eliminar até mesmo os demônios que sobrevoavam o lugar. A situação seria assustadora se eu não estivesse cansado demais para pensar que CARALHO, ELE FEZ UM LUGAR INTEIRO PEGAR FOGO INSTANTANEAMENTE.

                Tudo que eu queria era um lugar confortável para sentar. O que eu consegui, no entanto, e eu não estou reclamando, foi Kanda me inspecionando.

                -Como está a perna?- perguntou, enquanto as chamas ainda queimavam do lado de fora. Realmente trazia aquele sentimento de estadia no inferno que eu sempre sentia.

                Pelo menos fazia as cores dançarem com beleza pelo moreno.

                -Ainda presa ao meu corpo, acho- eu respondi, ganhando de presente um meio riso. Mais parecia um engasgo, mas eu não sou assim tão exigente.

                Ouvi um barulho ensurdecedor de metais de partindo e o vagão infernal desprendeu-se em explosões, ficando cada vez mais longe enquanto nos afastávamos em grande velocidade.

                Nunca achei que ficaria tão feliz vendo algo pegar fogo dessa forma.

                Kanda apontou com a cabeça para a direção em que o trem ia, me fazendo olhar pela janela ao meu lado.

                Estávamos chegando na estação destino. Descida pelo lado do trem que não está em chamas.


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