Canções de Apartamento escrita por Jade Amorim


Capítulo 2
Vagalumes Cegos


Notas iniciais do capítulo

Música tema do capítulo: http://www.youtube.com/watch?v=u9xca10Qw34



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/459079/chapter/2

Canções de Apartamento

.

.

Vagalumes Cegos

.

Nem sei

Dessa gente toda

Dessa pressa tanta

Desses dias cheios

Meios-dias gastos

.

.

Lembro daqueles dias como quem se lembra de uma alucinação. Distorcido, pirotécnico e distante.

O mundo parecia correr mais rapidamente do que meu cérebro podia acompanhar, ou talvez minha mente que tivesse entorpecida demais para entrar no ritmo acelerado desse nosso século.

Cheguei em muitos lugares sem me lembrar do caminho que havia percorrido, assisti muitas aulas sem me lembrar, logo após ter saído da mesma, uma palavra sequer do que o professor tinha dito.

Vi as horas correrem como areia que nos escapa entre os vãos dos dedos. Passei dias, semanas, em estado letárgico. Deixei tudo o que podia e o que não podia para amanhã, um amanhã que demorou muito a chegar e quase me custou caro demais.

Dentre todos os fins que tive, este foi de longe o que mais me afetou. Talvez porque, pela primeira vez em anos, tinha me disposto completamente de todos os muros e defesas erguidas a este sentimento tão destrutivo. Tinha me jogado de cabeça, sem me preocupar com a queda que fora sua consequência natural e, principalmente, havia superestimado alguém que não valia um terço do que supunha valer.

No meu completo isolamento proporcionado por aquele ritmo lento de quem coloca a vida no modo de espera, foi ele quem me proporcionou os únicos sorrisos, suspiros e momentos de paz. Foram apenas nos dias em que tive o calor e aconchego da sua pele na minha que pude dormir bem, mesmo que as horas fossem a metade do que estava acostumada a dormir na solidão.

E por incrível que pareça, ele nunca entendeu os meus motivos para passar a amá-lo.

.

.

Elefantes brancos

Vagalumes cegos

Meio emperrados

Entre o meio e o fim

Meio assim

.

.

Sempre tive todos os motivos do mundo para acreditar que amá-lo foi um erro. Inclusive as próprias palavras dele dizendo que sentia muito, mas que amar era uma capacidade que ele não mais possuía.

Enquanto com o outro a minha luta era entre mim e uma terceira pessoa, com ele a minha luta era contra ele mesmo. Seus medos, passado, fantasmas e demônios.

E nessa minha batalha constante em que ele representava o prêmio e o vilão, nunca soube discernir se havia conquistado mais seu afeto ou seu desgosto. Só soube, posteriormente, que também havia lutado contra mim mesma e meus defeitos emperrados, tentando ser o herói de nós dois, um herói forçado e errado, distorcido e deturpado.

E acabei pegando desgosto por mim mesma. Ferindo-me, sendo ferida e ferindo os outros. Cansando-me e tentando carregar nas costas todas as necessidades de um relacionamento.

.

.

Vem cuidar de mim

Vamos ver um filme

Ter dois filhos

Ir ao parque

Discutir Caetano

Planejar bobagens

E morrer de rir

.

.

Meu maior erro foi tratá-lo como uma pessoa normal e esperar coisas normais dele. Foi cobrar-lhe as coisas normais de um relacionamento normal e esperar que ele reagisse de maneira normal. Sendo que a normalidade nunca passou sequer perto dessa nossa história.

Suas deficiências psicológicas são maiores do que a maioria das pessoas tem coragem de admitir. São maiores que a minha capacidade de memorizar cada uma delas e conseguir ligar com seus respectivos sintomas. São muito maiores do que eu conseguia lidar.

E o processo de adaptação foi longo, doloroso e nunca ocorreu.

Num relacionamento onde uma das partes era limitada, me obriguei a carregar nas costas todas as mudanças necessárias para fazer com que esse relacionamento desse certo. Mas, como uma romântica teimosa que já carregava muitas decepções nas costas, não ter resultados imediatos frustrava.

Sempre tive um problema muito sério com expectativas. Com as que criavam acerca de mim, as que eu criava acerca de mim e a que eu criava acerca de outrem. Tinha como crença absoluta de que tudo que você se esforça, você consegue e que eu poderia ter o controle de tudo.

Não estar no controle me desesperava. Esforçar-me e não ter resultados me angustiava e jamais saberei lhes dizer se as minhas frustrações advindas das expectativas vazias que criavam eram por ele não mudar, ou por eu não ter a capacidade de fazê-lo.

E ao mesmo tempo em que insistia nessa situação, as feridas da relação anterior sequer haviam cicatrizado e as muletas que fiz dele se tornaram um pedestal, onde ele definitivamente era tudo que importava.

A uma pessoa que preferia que ninguém esperasse nada dela, hoje enxergo o erro que cometi em pressionar dessa maneira, mesmo que não voluntariamente. Porque eu esperava tudo, eu queria tudo e ele era tudo.

.

.

Fica bem aí

Que essa luz comprida

Ficou tão bonita

Em você daqui

.

.

Quanto mais eu queria me aproximar, mais o distanciava. Ele era o modelo a ser alcançado, alguém com uma inteligência e uma maturidade que eu queria muito para mim e, por fim, alguém que eu queria a aprovação.

Essa amizade foi usada para suprir as carências, as lágrimas e o desespero proporcionado pelo meu próprio silêncio sufocante. Mas era apenas isso, eu acreditava. Amizade.

Não acreditava ser capaz de me apaixonar estando com o coração espalhado pelo chão. Não achava que os remendos que mantinha ele batendo era o suficiente para bombear algo tão denso quanto um sentimento maior que carinho. Eu não acreditava nessa possibilidade e, por não acreditar, quando vi foi tarde demais.

Ciúmes, medo, cobranças. Tudo veio gradativamente, sem que eu percebesse, misturado com as moléculas do que eu achava que era apenas o bem estar de uma mão estendida e um bom sexo.

E como qualquer pessoa que se recusa a acreditar naquilo que está sendo esfregado na sua cara, me puis a prova.

Com as alegrias proporcionadas por ele, também me foram proporcionadas a capacidade de retomar e estreitar algumas amizades e, consequentemente, dessas amizades vieram bares, bebidas e risadas.

Desses momentos em que ele estava longe de meus pensamentos, fui conhecendo pessoas, pessoas realmente admiráveis e interessantes. E fui capaz de encantar também.

Um show animado, uma música que bombeava seu sangue com mais facilidade que o coração. Posteriormente, ver uma cidade amanhecer sentados na mesa de uma barraquinha de cachorro quente.

Esses momentos são momentos que propiciariam você ceder algumas coisas, mesmo que na sua mente uma voz dissesse que se arrependeria depois. Outro sorriso, outra voz, outro cheiro, outra boca.

Insatisfatório.

Muito mesmo.

Ele era grande demais, agressivo demais, falava alto demais e tinha um tom de autoridade que não agradava. Ou era só porque ele era o oposto de você, sempre calmo e disperso? Não sei, só sei que enquanto queria o seu coração eu machuquei o de alguém. E não me importei.

E quando a verdade me abriu os olhos como um tapa na cara, a minha primeira reação foi olhar pro nada e me indagar:

– Mas que merda que eu estou fazendo?

.

.

Ninguém vai dizer

Que foi por amor

Todos vão chamar de derrota

Vamos esconder nosso cobertor

E vamos viver sem escolta

.

.

Ele não estava bem. Eu não estava bem. Ele tinha os motivos dele e eu estava enfrentando finalmente alguns demônios antigos.

E precisava dele.

Mas ele não podia estar lá.

E mesmo sabendo disso eu pedi, por favor, só um pouco, preciso de conselhos.

Estudávamos na mesma universidade, nos encontrarmos ao fim de uma aula e voltarmos juntos para casa não era difícil. E assim aconteceu. Resolvemos caminhar os cinco quilômetros que separavam minha casa da instituição, ele pegaria o ônibus que passava ali perto e eu me dirigiria a minha residência.

Por quase todo o caminho caminhamos em silêncio. Ele me esperava falar, e eu não conseguia fazê-lo. Sabia cada uma das palavras que tinha que usar e elas bombardeavam minha mente como um tiro, mas minhas cordas vocais não funcionavam e quando abria a boca... simplesmente fechava ela em seguida.

Sabia que estávamos chegando. Logo teríamos de nos separar e não teria dito um terço do que tinha a intenção de fazer. Ambas as pressões me deixavam agoniada, preocupada.

– Eu gosto de você.

Pronunciei abruptamente, quebrando o silêncio debaixo de uma árvore qualquer enquanto passávamos por cima de suas raízes que lutavam, e ganhavam, contra a calçada de concreto.

– Eu gosto de você. Ouviu?

– Sim.

Um sorriso bobo, um coração nervoso e a ansiedade quase me quebravam.

– E o que você tem a dizer sobre isso?

Silêncio.

– O que...

– Nada.

– Como assim?

– Eu não tenho nada a dizer sobre isso.

E aquelas palavras foram como se ele tivesse arrancado o sorriso do meu rosto com as mãos, jogado no chão e pisado até esmigalhar.

– Por quê? - perguntei, com tudo que sobrava da minha voz. Um fiapo quase inaudível.

– Escuta. O que você quer que eu diga? Que eu te amo? Quer que eu te peça em namoro aqui e agora mesmo?

– Eu não... eu não sou boa o suficiente? O que falta? O que tem de errado?

– Meu bem, eu poderia dizer que sou louco por você, te pedir em namoro, ficar contigo, e continuar saindo com outras garotas que você nunca iria saber. Mas estou aqui sendo sincero com você, e eu te avisei que isso não podia acontecer.

Existe uma teoria que diz que quando se pensa em muitas coisas, não se pensa em nada. E, naquele momento, minha mente estava bombardeando sentimentos e pensamentos tão rapidamente, que eu não consigo me lembrar de nenhum deles e era como se o excesso tivesse se transformado em nada. Porque o branco é a junção de todas as cores.

A esta altura já tínhamos passado pela rua onde deveríamos no separar, mas continuávamos andando.

– Eu posso...

– Mas eu não posso.

O silêncio, ou talvez uma discussão acalorada, permeou a distância de onde estávamos até o ponto de ônibus.

– É por causa dela?

– Não tem nada a ver com isso. Simplesmente não posso. Eu não quero retroceder todo o bem que fiz pra você. Porque se eu tentar é isso que eu vou fazer, eu vou te machucar. Porque é isso que eu faço.

O ônibus dele despontou a algumas poucas quadras de distância. E aquilo que eu estava segurando a meia hora escapou, lenta e dolorosamente até o final do rosto.

– Me desculpe. Mas eu sou seu amigo e não vou enganar você.

Com o indicador ele trilhou o caminho inverso feito pela lágrima, encostou os lábios na minha testa como se com aquele toque pudesse tirar todo o mal estar e abraçou-me cuidadosamente. Por fim, entrou no veículo e partiu.

Não tive tempo para protestar, não tive tempo para chorar e sequer definir o que estava sentindo. Não tive tempo para sentir nada, apenas o abismo negro da alma vazia.

Virei e voltei correndo para casa, tava tarde e perigoso. E enquanto corria, não fazia ideia de que ele estava certo, que ele realmente iria retroceder todo o bem que tinha me feito. A meu ver, naquele momento, essa ideia era incabível porque ele era tudo que eu precisava para ser feliz. Mas isso é história para uma outra música.

.

.

Continua

.

.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Sim, eu sei que demorei horrores pra postar, mas é que essa é uma daquelas histórias na qual você precisa de todo um estado de espirito para conseguir colocar pra fora.

Espero que tenham gostado.

Vi que tive algumas visualizações, e até tem uma turminha acompanhando, mas cadê os comentários, galera? Pra mim é muito importante saber o que vocês sentem e como minhas palavras chegam até vocês, isso me estimula a continuar. Então, por favor, vamos sair da sombras.

Até a próxima.

Beijos.