Seis meses depois:

Me acordo no novo quarto da minha nova casa. Ainda a chamo assim porque a Vila dos Vitoriosos não parece meu lar.

Lar é onde minha mãe bufa sorrateiramente enquanto voa pela cozinha tentando fazer receitas que ela leu, trocando os ingredientes com outros mais baratos.

Lar é onde meu pai, coberto em óleo de máquina, entra pela porta com uma risada amorosa e pede jantar e um abraço.

Esta casa não é um lar.

As regras dizem que familiares podem viver com você na Vila dos Vitoriosos, mas nosso Distrito não tem mais quartos para familiares dos vitoriosos. Há três casas, cada uma com dois tributos.

Estou vivendo com um jovenzinho chamado Beetee. O vi vencer os Jogos quando eu tinha seis anos. No começo dos Jogos, ele só conseguiu pegar uma pegar uma pequena mochila na Cornucópia antes de levar uma facada no braço. Ele fugiu como um raio do banho de sangue, e quando estava a salvo abriu a mochila. Além da comida, achou uma faca e um longo rolo de fio.

A arena estava sempre encharcada por uma tempestade de raios constantes. Estava sempre chovendo e relampejava para todos os lados. Já que o chão estava alagado, Beetee preparou um fio de arame, passou por uma área de alto tráfego na arena. Ele pôs a outra extremidade num enorme carvalho e esperou. Logicamente, um raio acertou a árvore e o fio passou a eletricidade pelo chão molhado, matando todos os tributos por perto que andavam sobre a lama.

Depois de três dias e cinco raios, Beetee, cujos patrocinadores os mandaram roupas de borracha e se escondeu numa árvore, foi declarado vencedor.

Ele é gentil, mas é muito reservado e quieto.

Como eu.

Desço as escadas. Beetee preparou o café, como de costume. Torrada com geleia. Nenhum de nós come tanto assim.

Nos sentamos à mesa e nos preparamos para comer. O silêncio reina quando começamos a comer.

Hoje é um dia especial, um dia ruim.

Beetee quebra o silêncio e pergunta se estou pronta. Balanço minha cabeça para responder. Não disse uma palavra desde que voltei pra casa dos Jogos.

Agora talvez eu precise.

A Turnê do Vitorioso começa hoje. Partirei em uma hora com Jadjia.

Beetee me conta sobre suas viagens aos Distritos.

–Todos me amavam, menos as famílias dos tributos. As famílias daqueles que você matou vão odiar você mais que tudo, mas eles não irão mostrar. Tente aproveitar, por mais difícil que seja.

Balanço minha cabeça novamente e como minha torrada.

Alguém bate na porta. Antes que eu me levante para abrir, é arrombada e o companheiro do Distrito 3, Liam, voa para dentro.

Liam é um dos poucos companheiros masculinos que existem, mas ele insiste em ser o pior de todos.

Noto que ele tem um cabelo novo. Um afro amarelo enorme e brilhante.

Isso, somado à sua maquiagem preta e branca no rosto e terno preto, lhe dá a belíssima aparência de uma abelha gigante.

–Bom dia, Wiress! – ele diz num tom tão alto que meus ouvidos doem – E como vai você, Beetee?

Beetee abre a boca para dizer algo, mas Liam já se virou e voltou a falar comigo.

–Adivinhe? – ele diz batendo palmas e pulando para cima e para baixo.

Eu o encaro até que ele se lembra de que eu não falo e ele responde sua própria pergunta.

–Os estilistas chegaram!

Na deixa, meus três estilistas correm gritando e rindo. Eu os odeio profundamente.

Então, minha estilista chefe invade a sala e os outros três recuam, quase que numa reverência.

Illyana Krestilla é indiscutivelmente a melhor estilista dos 48 que vestem os tributos individualmente cada ano. Este ano ela foi trocada do Distrito 1 para ser do Distrito 3.

Boatos correm que ela apostou num jogo de cartas quando estava bêbada.

Ela fez um trabalho decente em mim nos meus Jogos, mas todos sabiam que não era sua obra prima.

Ela provavelmente tinha ressentimento de perder um trabalho para os Carreiristas. Independe, já que eu venci ela terá de fazer algo incrível.

–Wandess, amada, como você está? – ela diz numa voz agoniada.

Ela ainda não sabe meu nome mesmo depois de seis meses.

–Ok, vamos deixá-la sexy! – Liam solta.

Os estilistas literalmente me agarram e arrastam para o quarto. Penso em jogar outro abajur neles... Mas não quero ser furada de novo.

Então começo a calcular e faço um rosto neutro enquanto os estilistas me deixam “sexy”.

Quando eles dão passos para trás, estou coberta numa substância branca com manchas de glitter preto. Meu cabelo está em cascata e estou vestindo um vestido preto para completar a maquiagem.

Sendo gentil, estou abominável. Mas não posso fazer nada.

Todos os estilistas estão literalmente pulando e chiando a plenos pulmões o quanto estou incrível. Até Illyana, normal no dia-a-dia, está chorando por minha aparência.

–Minha maior criação! – ela soluça.

Me viro e deixo meu quarto, e os idiotas, para trás.

Beetee ainda está na mesa, mexendo com eletrônicos. Ele olha para cima e olha de volta para a mesa rapidamente.

Quase abro um sorrisinho, mas decido não o fazer, e saio a encontro de Jadjia.

Jadjia mora com outra vitoriosa, uma mulher velha, na terceira casa. A mulher é Yvette Wisburry e ela venceu os Jogos muitos anos atrás quando os Carreiristas não treinavam.

Muito tempo.

Quando todos tinham as mesmas chances.

Ela viciou-se em drogas para ficar sã depois dos Jogos. Ela foi uma dos poucos vitoriosos que matou o parceiro do distrito para vencer.

Abro a porta e vejo Yvette sentada na cozinha rearrumando pilhas de maçãs sem motivo nenhuma. Ela se vira e me vê. Ela me dá um sorriso desdentado e tenta se levantar para me abraçar.

Ela cai e começa a ter convulsões no chão.

Corro até ela e a ajudo a sentar novamente. As drogas pegaram pesado com seu cérebro e ela é uma vergonha e um fardo para o Distrito 3. Jadjia é o único motivo de ela estar viva.

Nesse momento, Jadjia corre até a sala.

–Oh, Yvette, você está bem?

Yvette concorda com a cabeça. Como eu, ela não fala.

Mas não por opção.

Jadjia me pede ajuda para fechar o zíper de seu vestido. Ela está deslumbrante com seu vestido preto e vermelho.

Liam invade a sala e eu gemo alto o suficiente que até ele me ouve. No entanto, isso não o desacelera.

–Wiress, você não aprende? Temos que ir! Agora! Estamos atrasados! Vamos, vamos!

Repentinamente, uma maçã voa pela sala e acerta o peito de Liam. Ele cambaleia e cai pra trás.

Yvette ri em sua direção e volta ao trabalho com as maçãs.

Liam se levanta e tenta limpar o suco de maçã com seu guardanapo idiota.

–Bruta bárbara. – Ele diz.

Ele sai e eu e Jadjia o seguimos.

Quando chegamos no trem, uma multidão está esperando. Meus pais estão esperando na porta do trem. Corro até eles de braços abertos e os abraço. Eles me dizem que me amam que vão estar me assistindo de casa. Sorrio e beijo-os.

Embarco no trem e a multidão grita e aceno como Jadjia mandou. Foco em meus pais, querendo voltar para casa e ficar com eles.

Sinto um estilista re-ondular um cacho mal feito, e é este o lembrete que a vida não vai ser a mesma nunca mais.

Nunca mais.