Gris escrita por Petit Ange


Capítulo 15
Capítulo 14: Fragments of Sorrow


Notas iniciais do capítulo

Foi quase um mês sem atualizar. Gzuz, como sou podre.

Bom, enfim... Este é o penúltimo capítulo de "GRIS". Sim. O próximo é o último. E depois, somemos um epílogo e deu.

Fico feliz de ter chegado até aqui. E agradeço de coração todas as leitoras, que foram a força-motriz disso tudo.


Eu tinha escrito uma cena super Death Note-ish do Zexy e Xaldin, e uma do Zexy alone. Mas damn. Foram quase 15 páginas. Eu não ia transformar isso em um YSK da vida, que são quase 20 páginas de loucura. Por isso, tive de, infelizmente, resumir alguns acontecimentos.

Peço perdão por isso, mas em essência, o capítulo continuou o mesmo. Espero que gostem dele. /

E por favor, se ao fim dele desejarem me apedrejar, façam.

E façam agora, porque o próximo será bem pior. Sério. -q



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GRIS
Petit Ange

 

Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes o são cada uma à sua maneira.
~ Anna Karenina (Tolstói).

 

 

Capítulo 14: Fragments of Sorrow. [52]

 

A cidade estava sempre cheia de pessoas andando pelas ruas. A qualquer hora. Mas isso, claro, era porque aquela era Nagano. A grande capital.

É claro que cada uma tinha seus problemas; isso era compreensível. E claro que, portanto, ninguém ia ficar inutilmente incomodando a vida alheia, quando a sua já parecia tão incômoda. Isso não era só evolutivo, mas cultural. Principalmente em países orientais, onde a discrição era tão valorizada.

Por isso, talvez, cada olhar que lhes dignavam aumentava ainda mais sua passiva irritação do momento.

Descobrindo da pior maneira o quanto estar cercado de pessoas é mesmo assim estar em perigo é muito pior do que estar sozinho e em perigo, Zexion suspirou, tomando cuidado para que nem este movimento seu despertasse qualquer desconfiança nos dois que o renderam. Ele não podia erguer a voz, não podia correr, não podia usar seu Palm, não podia fazer nada. Frustrante.

O cano da arma pressionou-se me suas costelas, e ele percebeu que diminuíra o passo, distraído em uma espiral de conjecturas. Voltou a concentrar-se num ritmo casual de caminhada, estipulado pelos outros dois para que não parecessem (ainda mais) suspeitos aos olhos de terceiros.

Se tentasse reagir, o que aconteceria?...

Sua mente (e quase que ele próprio) começou a rir. Numa estimativa otimista, seria rendido no chão. Por profissionais. No meio da rua. A humilhação pública ou um braço possivelmente quebrado? Qual doeria mais? Mas, claro, por sua pouca observação, ele tinha muito mais fé na hipótese de que aquele homem de olhos dourados puxaria o gatilho sem hesitar. Para matar ou apenas para imobilizar de dor, Zexion não sabia; e, sinceramente, não queria testar.

...Mas, sinceramente, ele já imaginava isso. Na verdade, estava surpreso é de terem demorado tanto. Tinha suas hipóteses, mas preferia mantê-las só para si.

- Acho melhor conversarmos. – o mais velho disse, de repente.

O outro, de dreads, revirou os olhos.

- Não sei nem porque estamos caminhando. – respondeu, duramente. – É por causa dessas suas decisões inúteis que demoramos tanto assim.

- Calma, Xaldin. Calma. – Xigbar deu de ombros. – Pense que, agora, tiraremos o atraso com tudo que nos é de direito.

Relaxado.

Descontente.

Ótimo. Bela dupla, aquela. Zexion quase fez uma comparação mental com a velha tática do “bom policial” e do “mau policial”.

O tal Xigbar não era um tolo. Relaxado, tanto em suas ações quanto na fala, talvez um pouco estranho, mas definitivamente não era um idiota. Em verdade, o rapaz de cabelos azul-acinzentado até considerava-o mais perigoso que o tal Xaldin, que estava se contendo, aparentemente, para permanecer enquadrado naquele fingimento ridículo. Se fosse por ele, possivelmente, Zexion já teria tido no mínimo quatro costelas fraturadas por aquela mão imensa.

(E, claro – mãe das ironias! – ele ainda era o seqüestrado por ali. Mas as pessoas ao seu redor pareciam não acreditar no fato...).

O que ele planeja? É tão óbvio... Ele quer que eu, instintivamente, me sinta mais inclinado ao ‘bom policial’, usando a própria impaciência do outro como um fator em seu favor, e, prezando minha integridade física, numa variante de Estocolmo[53], confie mais nele. Então, ele poderá me manipular”, pensou, engolindo um sorrisinho de ironia. “Besuntar-se de mel pode fazê-lo domar até os ursos... Irônico. Quanto sentido faz esse ditado, de repente.

Zexion precisava admitir, mesmo que não gostasse nem um pouco disso: era um plano muito bom. O tal Xigbar era um bom estrategista, neste aspecto da situação. Mas, claro, uma tática assim falhava com pessoas como ele, que se lembravam não de agradar seu captor, mas da arma (muito bem escondida para não chamar a atenção) que o mesmo apontava para suas costas.

- Será que não é melhor agirmos como se fôssemos... Não sei, hosts[54]? – o mais velho perguntou-se, então. – Afinal, estamos de terno...

Xaldin revirou os olhos de novo. – Acho que não temos idade para sermos hosts.

O outro sorriu.

- Realmente! – assentiu. – Ah... Mas você... Seu nome é “Zexion”, não é? Você sim poderia fingir ser um host!

Zexion quase sentiu-se revirar os olhos também.

Que raio de conversa era aquela?... Xigbar já devia saber, sendo o cretino que era, que ele não estava caindo naquela patética tentativa de melhorar o clima e providenciar um rápido e digno Estocolmo. Era perda de tempo.

- O quanto pesquisou a meu respeito? – perguntou.

Os seguranças entreolharam-se.

- Bom... A partir do seu carro, tudo. Tivemos bastante tempo para isso.

- Ou seja: vocês podem me matar. Socialmente falando.

- É, podemos sim.

- Mas não farão isso porque sabem que o garoto ainda está vivo.

- É. Podemos dizer que é isso.

- Pretendem, então, me levarem na condição de “cativo vivo”. – e, quanto mais falava, mais tudo fazia-lhe sentido. Estava perdido.

- Bom... O Xaldin atira para matar.

(E o rosto do mesmo, nesse momento, gritava algo parecido com “era o que eu teria feito há muito tempo, na verdade”).

- E você também, senhor... Xigbar, não é?

- Eu somente sigo ordens.

Zexion respirou profundamente, procurando naquele ato um pouco de senso de realidade e, talvez, alguma inspiração imediata. Estava numa situação, em todos os sentidos, perigosa.

Dois loucos furiosos estavam usando-o para alguma coisa (que tinha a ver com Demyx, era certo), e não teriam medo de matá-lo para tal. Eles eram seguranças. Ou seja, foram por alguém contratados. E...

- Veja só, Xaldin! Agora estamos conversando normalmente. – o mais velho disse, despreocupadamente.

- ...Não importa. Ainda parecemos suspeitos. – o outro resmungou.

- Ah, que seja. – continuou despreocupado. – Só precisamos continuar sorrindo assim, naturalmente, e é isso... Vão achar só, no máximo, que somos uns hosts muito estranhos.

O moreno de olhos claros estreitou os mesmos.

- Por que você só pensa bobagens?

- Como você é cruel, Xaldin! Não entende a genialidade do meu plano?! – ele perguntou, quase que dramaticamente.

- ...Tudo que eu entendo é que você está enrolando de novo.

- Em Nikko...

Os dois, então, pararam de discutir.

- Eu esperava que noticiassem nossa fuga do hospital. – Zexion suspirou. – Mas isso não aconteceu. Nunca aconteceu. Foram vocês, não é?

Xigbar deu um sorrisinho. – Bom, tínhamos de interceder.

- ...Um escândalo desses mancharia a imagem de Demyx? Ou a da pessoa para quem vocês trabalham?

- Por tabela, a de ambos.

- Vocês usaram o nome dessa pessoa para vetarem a informação ao público.

- Mentira, também usamos um pouco do método de chantagem infalível do Xaldin. Ele é bem útil nessas horas. – riu.

O moreno apenas assentiu para si, como que deixando claro que poderia usar daquele método com o próprio Zexion, se necessário. Uma ameaça clara.

- ...Um nome poderoso o suficiente para calar definitivamente a boca do Corpo Administrativo do hospital.

- Você é muito espertinho, meu rapaz...

A arma, neste momento, pareceu pressionar-se com mais força em suas costas.

- ...Mas acho melhor parar por aqui.

- Você sabe muito bem que eu não seqüestrei o garoto.

- Eu sei disso. Creio muito mais no fato de que ele é quem te rendeu.

- ...Mas não vai arriscar, não?

- Sem ressentimentos.

O mais novo suspirou. – Não pretendo manchar a imagem de ninguém com esse escândalo.

- O que é estranho, vindo de alguém como você, se me permite. – Xigbar ergueu a sobrancelha. – Achei que a primeira coisa que faria era correr para a delegacia e denunciar essa situação.

- De fato, eu quis fazer isso antes. Mas não fará sentido algum. Faltam provas, faltam motivos... – deu de ombros. – ...E sobram vocês.

- Não precisa necessariamente denunciar o seqüestro. – Xaldin disse-lhe, sério.

- Exato. Você pode querer arrancar dinheiro do garoto usando dessa chantagem. Ele é um frouxo e o senhor sabe. Cairia nisso.

- Estamos numa época difícil, sabe? Não pode haver nenhuma mínima mácula na sua reputação.

- E esta seria uma grande mácula. – concordou o mais alto.

- Você entende, não é? Não vamos te matar (por enquanto – quem sabe o que nos mandem fazer!), mas também não vamos te deixar escapar. Nada pessoal.

- O fato de eu ter “seqüestrado” Demyx foi só uma desculpa?

- ...Quanta intimidade para falar o nome do garoto assim.

Ele estreitou os olhos, sentindo-se perder para sua raiva passiva. – Não entendo porque demoraram tanto, mas é isso, não?

- Muito espertinho...

Um estalo de metal fez Zexion perceber que começaria a suar frio.

- ...Não gosto disso.

Seria o pai do garoto? Algum parente? Algum rival? Não sabia. Mas era alguém que tinha dinheiro o suficiente para controlar, através de dois seguranças contratados, o destino de várias pessoas. A função de várias coisas. Até a sua vida e morte; sentia-se quase como que num filme de mafiosos (e esperava que seu corpo não amanhecesse em alguma baía por aí), como a vítima que sempre morre no final.

Pôs a mão no bolso, esperando conseguir enviar alguma mensagem ou fazer algo a respeito, com seu Palm, para que Demyx saísse dali e fosse embora. Infelizmente, pegar o carro dele era inútil: já sabiam de tudo a respeito do mesmo. O garoto podia pegar todo o dinheiro que sabia possuir e sair do estado. Mas precisava sair, ao menos, da capital.

Zexion não precisou de mover. Antes disso, a arma parou de pressionar sua mente e suas costas. Xigbar sorriu. Tudo acabou...

- É isso.

- O que foi? – Xaldin ergueu a sobrancelha.

- Já consegui o que queria.

- ...De novo isso? – o mais alto bufou. – Você já não é mais só um policial, Xigbar. Pare de ficar confiando demais no seu instinto.

- Dessa vez, eu estou certo. – ele acalmou-o. – Sério.

- ...O que vai fazer?

- Bom, eu vou buscar o idiota. – e, desta vez, quem revirou os olhos foi o mais velho. – Você fica com o rapaz, Xaldin.

O QUÊ?!”, Zexion quase sentiu-se engasgar.

- ...Com prazer.

 

~x~x~x~

 

Demyx olhou para a direita. Pessoas passando, uma noite de lua minguante, um prédio imenso rasgando os céus.

Olhou, então, para a esquerda. Mais pessoas, um beco, um prédio cheio de luzes douradas e vermelhas e uma rua movimentada ao extremo. A boa e velha noite da capital de Nagano.

- ...Sumiu. – sussurrou, incrédulo.

Encarou o café que tinha na mão, e pensou que ele iria esfriar. Mas não sabia onde começar a procurar Zexion para entregar-lhe o mesmo e impedir que isso acontecesse. Aliás, não sabia sequer porquê ele saíra de onde disse que ia ficar esperando (e isso que o moreno insistira para que entrasse com ele! Duas vezes!).

A noite da capital era fria, mas não havia escolha, não? Esperaria ali, encostado na parede, até que o outro voltasse.

Provavelmente, fora comprar outro café. Em outro lugar, por causa da demora. Nunca vira nada parecido como aquilo até então!

Eu digo que ele ainda vai morrer de overdose de café, mas Zexy nem me escuta...”, resmungou mentalmente. Mas, realmente, se o mais velho aparecesse com um copo de plástico daquelas máquinas expressas, haveria guerra. E uma bem séria.

Não, melhor! Demyx beberia todo aquele maldito cappuccino que pedira lá dentro ali na frente dele! Iria ficar sem nada!

...Claro, isso seria a vingança perfeita se eles tivessem dez aninhos.

(Aliás, não. Zexion era tão sem-graça que quando  tinha essa idade também devia ser um maldito CDF sem expressão).

Fechou os olhos, suspirando longamente.

E, quando os abriu, uma pessoa estava ao seu lado. Sorrindo.

- Olá, moleque.

Para Demyx, foi uma viagem ao passado. Lembrou-se, num esgar do tempo, num segundo ínfimo, de um passeio que estava fazendo (algo natural para ele, ir à casa dos outros para ganhar pontos e status para seu pai). A limusine brecara bruscamente graças a um pedestre desavisado, fazendo o garoto, até então sem cinto, ser lançado para frente, batendo a testa no vidro que separava o motorista-sem-nome-nem-rosto dos bancos de trás, feitos para o conforto do herdeiro.

A sensação de ter sido lançado sem nenhum aviso foi a mesma. Como se o mundo tivesse brecado como aquele carro, e ele fosse atirado para um abismo, para não sabia onde. Tinha a sensação de estar caindo e de estar de pé ao mesmo tempo.

Porque sabia que conhecia aquele rosto. Aquela cicatriz. Aqueles olhos dourados. Aquele terno. Aquele sorriso. Conhecia todas as promessas que aquela figura alta trazia, todos os perigos, todas as lembranças, todas as ameaças... E todo o passado que veio na forma do pedestre desavisado a agarrar-lhe os ombros e insuflar-lhe sem dó a realidade.

- ...Xiggy... – gemeu. E falar aquele nome foi como dar um corpo à todos seus pesadelos que até hoje evitara.

- Pelo que vejo... – e encarou o pedido do McDonnald’s. – ...Nem precisávamos ter nos dignado a te buscar. Está ótimo.

Tudo na anatomia de Demyx parou. Só havia um pensamento que girava como uma tontura em sua cabeça. Um nome. Uma lembrança. Tudo se misturava, e aquilo era uma dor tão excruciante como a de sua doença.

- Onde ele está...?

- É assim que vai me receber depois de tanto tempo?

- ...Para onde o levaram?

Xigbar apenas sorriu, mortiçamente. – Precisávamos tirar o rapaz de perto de você. Eu o sondei, garoto, enquanto você estava lá dentro. Conversamos um pouco. Muito interessante, o tal Zexion. Ele não sabe de nada.

- ...Eu sei. Só desconfia... – assentiu Demyx.

- Não podia arriscar sua identidade, entende? – explicou-se, num tom calmo. – Ele está com Xaldin. Eu acho que ele não vai fazer nada ao rapaz.

- Com o... Xaldin?! – ele gemeu, transtornado. Tinha tantas perguntas, tantas... Mas aquilo calou a todas. – Por que não quebrou as pernas dele de uma vez?! Se queria tanto assim torturá-lo!

- Fique calmo, garoto.

- “Calmo”?! Eu estou calmo! Muito calmo!

- ...Eu acho que não.

O mais novo quase passou a mão pelos cabelos, mas lembrou-se que ambas estavam ocupadas. Quase jogando o café nas mãos do homem de olhos dourados (que exclamou qualquer coisa como “EI!” nesta hora, por quase ter se queimado), Demyx praticamente bufou.

- Me leve.

- Não seja precipitado, garoto. Você já causou problemas demais por...

- Xigbar. Me leve até eles. Agora.

 

~x~x~x~

 

...Se algo acontecesse a ele, não saberia o quê fazer.

Engraçado. Se fosse o Demyx de quase um mês atrás, ele pensaria, primeiro, no quanto seu pai ficaria irado se aquilo acontecesse. No quanto teria de gastar para calar a boca dos envolvidos, cobrir possíveis gastos, obrigar a poeira a baixar.

Pensaria no quanto sua mãe reprovaria aquela atitude rebelde, no quanto Xigbar iria humilhá-lo ao melhor estilo “seu imprestável”, e em como Axel, mesmo não sabendo de nada disso, só de ouvir duas linhas da história, diria o mesmo (mas claro, no caso de seu amigo, aquilo não tinha um tom tão ofensivo – era apenas algo do qual o herdeiro podia até rir).

Agora, ele não pensava em nada disso. Ou melhor... Passou-lhe, em algum canto obscuro de sua mente, a possibilidade, mas...

Sua integridade física era muito mais urgente do que a integridade da moral de seu pai. Ou da sua própria.

Sabia que aquele era um período difícil, e que provavelmente sua fuga não fora noticiada, estando sob o pretexto comum de “uma viagem inocente, súbita e caprichosa de um adolescente da alta classe”. Mesmo a sua... Mesmo aquilo não fora noticiado aos mais próximos, quem diria ao público. Tudo era feito por baixo dos panos, com médicos que ganhavam quantias absurdas por seu sigilo.

...Era uma vida cruel. Nada que pudesse ser um ponto fraco, uma frágil pedra na estrutura, podia ser dito aos outros.

Sua própria identidade nunca foi alardeada. E, talvez, isso tenha ajudado um pouco no desinteresse por todos os fatores que depois vieram.

Mas acabou.

Demyx compreendera. Tarde demais, é verdade... Foi um erro. Desde o início, sua fuga foi um erro.

Algo que não podia mais ser concertado, uma bola de neve que não podia mais ser parada. Uma parte de si próprio até mesmo respirou com alívio quando encontrou Xigbar. Finalmente... Acabou.

Mas, então, a outra parte de si gritou. Ainda se iludia.

Ele ignorou aquele implorar. Era um destino certo. Lutar contra o mesmo era total perda de energia e tempo. Infelizmente, demorara tempo demais e envolvera coisas demais até dar-se conta disso.

Zexion foi uma delas. E, agora, pagava um preço que não deveria ser seu.

...Um erro que Demyx iria redimir.

Já podia vê-los. Não sabia quanto tempo ficou pensando naquilo, quão longe haviam andado, mas reconhecia aquela figura alta vestida em negro.

Suas pernas correram sozinhas, enquanto algo em seu estômago o fazia pesar. Angústia, talvez...? Quem sabe. Haviam tantas dores em seu corpo. Nem sabia mais diferenciá-las com a mesma destreza de antes.

Elas se misturavam.

Xigbar estava atrás dele. Sentia. Ele pareceu dizer algo, mas Demyx não ouviu; o mundo deixou de ter importância.

O tempo parou. Se não fosse tão sério, ele riria.

...Algo tão dramático parecendo tão simples aos olhos de fora. Ou melhor: algo que deveria ter sido simples desde o começo.

- XALDIN!

O homem de ombros largos virou-se, sem expressão.

Demyx podia entrever sua mão no ombro de Zexion. Sua vontade (se não fosse menor e muito obviamente mais fraco) era de tirar aquela mão com tanta força que iria quebrar. Queria sangue.

- Ele não tem nada que ver com isso! Solte-o agora!

O homem de tapa-olho suspirou.

- Não faça isso, garoto.

- Cale-se. – o mesmo disse, apenas. Tão friamente quanto os seguranças agiram, até então. – Eu, Demyx, filho de Myde, ordeno: solte esse homem imediatamente e o deixem ir. Vocês já me têm. Não há mais necessidade de falar com ele. Liberem-no.

Às vezes, o peso da autoridade é diretamente proporcional ao de quem a exerce.

Isso era algo que, como seguranças, ambos os homens aprenderam muito bem. E aquela era uma autoridade absoluta. O peso máximo naquele momento.

Xaldin soltou o ombro do rapaz mais baixo, que encarou, num choque que mal se processava em seu rosto, o herdeiro.

Demyx soube, ali, que havia dado o ponto final e definitivo.

 

~x~x~x~

 

- Eu voltarei mais tarde, Zexy. – sorriu-lhe. – Vá indo na frente.

O mais velho não precisou de muitas explicações para perceber que era mesmo necessário obedecer Demyx.

Com milhões de pensamentos que o moreno jamais adivinharia passando-lhe pela cabeça, ele sussurrou uma despedida, e retirou-se. Estava ereto e cheio de compostura; afinal, ainda estavam na rua.

Demyx baixou os olhos. O gosto amargo do fim preencheu sua boca como... Café.

E, então, percebeu que não havia dado o cappuccino para ele.

 

~x~x~x~

 

Por um breve momento, algo que não durou mais do que alguns segundos, Demyx sentiu-se outra vez em sua adolescência. Não soube explicar aquela nostalgia nem aquela sensação que classificou imediatamente como “idiota”, mas soube que sentiu-a. E quase viu-se sorrindo por isso.

Talvez fosse porquê, afinal, Nagano não fosse muito diferente de Tokyo pela noite. Os prédios iluminavam-se, brilhavam como estrelas, os carros eram os mesmos, as pessoas as mesmas... Era tudo estranhamente tão igual que ele sentiu-se até um pouco decepcionado. Porque, quando fugiu, esperava encontrar o mundo, ver quão exótico ele podia ser.

E, no fim, tudo o que encontrou foi a frustração de perceber que aquilo não passava de uma ilusão de criança.

Não havia feito nada mais do que uma pequena volta pelos “arredores”. Sequer saíra do seu país. E lamentou; porque não haveria mais tempo de fugir para bem longe, como um pássaro, e observar o mundo de cima. Só lhe restaria olhar para aquele mesmo céu sem estrelas, para os mesmos prédios altos e os sons da noite.

Aquela era uma sensação muito nostálgica...

Ter vontade de voltar no tempo e consertar tantas coisas...

Era algo que Demyx já se acostumara em sentir. Mas esse era o problema: era irritante. Não combinava com ele.

A verdade é que, desde que conhecera Zexion, o rapaz começou a perceber algo que, até então, estava tão preso a si próprio que simplesmente não se fazia notar. Ninguém reclamava, ele próprio não parecia se incomodar... E continuou ali. Só permaneceu ali. Somente cresceu e criou raízes.

Era aquilo. A sensação de ser patético.

Zexion crescera sem depender de ninguém. Pelo que contara de si, foi uma pessoa que desde cedo sabia o quê queria. Teve de criar seu irmão e a si próprio sozinho. Ele não precisava de ninguém.

Por outro lado, Demyx... Era patético. Esteve sempre lá, em sua gaiola de ouro, esperando pelo trotar de um cavalo branco. Pela princesa (ou príncipe mesmo?) que nunca veio. E aquilo era ridículo.

Mesmo quando fugiu, continuou dependente, de uma forma ou outra. E agora, só estava contando os minutos para ter de voltar para sua prisão.

Baixou os olhos azulados, suspirando.

Falando nele... Será que Zexy está muito bravo comigo...?”, pensou. Afinal, escondera aquilo por tanto tempo.

Zexion tinha muitos motivos para estar bravo. Fora posto em uma situação ruim por causa do moreno. Fora quase... Danado. E, agora, descobria aquilo. Eram coisas que, se fosse com ele, Demyx sabia que iriam irritá-lo. Ou, ao menos, iriam machucar bastante; em muitos sentidos.

Mas, pensar que o outro se sentiria assim, como ele achava que deveria ser normal... Doía. Muito. De um jeito que achou que jamais algo em si doeria.

- E então?

Despertando de seus pensamentos pela voz de Xigbar (inconfundível. Ele estava morrendo de raiva também, só por aquele timbre), o outro o encarou.

- ...O que foi?

- Vai ficar aí só calado? – ele insistiu.

Demyx suspirou.

- Eu não sei o que...

Mas o moreno parou imediatamente de falar quando percebeu, com um choque intraduzível, o que o mais velho segurava em suas mãos.

- Esse aí é o café do Zexion! – bradou, erguendo-se num salto do capô do Audi negro, onde estava sentado. – DEVOLVE~!

Antes, porém, que pudesse chegar ao homem de tapa-olho, uma parede humana, literalmente, interpôs-se, impedindo o rapaz de dar mais um passo sequer. Chocando-se com toda força na mesma e vendo-se obrigado a massagear o nariz dolorido, Demyx ergueu os olhos, encontrando os orbes claros do outro segurança.

- ...Xaldin... – gemeu.

- Deixe o menino, Xaldin. – o mais baixo deu de ombros. – Já acabei o café...

Amassando o copo de plástico da rede alimentícia na frente do herdeiro, o homem de olhos dourados abriu um satisfeito sorriso diante do rosto de pura descrença do outro.

- Você é mau! – ele resmungou.

- ...E você é um maldito pirralho irritante. – devolveu, sem se abalar. – Nos fazendo persegui-lo sem rumo até agora.

- Para dizer o mínimo, garoto, isso foi completamente desnecessário. – Xaldin concordou. Na verdade, Demyx viu, ele parecia até mais irritado que o outro; e talvez por isso tenha se afastado inconscientemente do segurança.

Baixando, então, os olhos, ele expirou:

- Me desculpem...

- Isso já não é mais questão de simples “desculpas”. – bufou.

Ele pareceu encolher-se ainda mais, como que acertado por adagas invisíveis. – Eu... Dei muito problema...?

Xigbar apertou os olhos em irritação:

- “Muito problema”? – repetiu, cheio de cáustica ironia. – Por pouco seu nome não vai parar na TV quando você e aquele outro fogem do hospital.

- É verdade. – concordou Xaldin. – Foi difícil de evitarmos isso. Gastamos muito tempo e dinheiro.

- ...Vocês subornaram o hospital? – gota.

- “Coação” é uma palavra muito mais adequada ao caso. – e o homem de olhos dourados de um sorrisinho. – É o método do Xaldin, afinal.

Demyx suspirou. E deixou-se sorrir também.

- ...Esses são meus guarda-costas, afinal.

O mais velho deles, então, deixou o copo amassado em cima do capô (com todo o cuidado, claro, de não sujá-lo. Já bastavam as tragédias da viagem... Não precisava de mais uma; não dessa magnitude, ao menos) e caminhou até o rapaz.

O moreno percebeu que a raiva que antes havia lá foi diluída; não desapareceu, apenas estava dividindo lugar com algo que fez Xigbar lembrar um pouco... Sua mãe.

(Pelos deuses, ele iria matá-lo se pudesse ler pensamentos).

- Escuta, garoto... – suspirou ele, esfregando a nuca. – Eu fui um segurança do seu pai. E gostava disso. Mas, e sei que você lembra, fui então “promovido” a guarda-costas particular seu. E fui recebido com um “Xiggy” logo no primeiro dia... – ele suspirou, deveras irritado pela lembrança. – Estou nessa a bem mais tempo que o Xaldin. Então, eu sei exatamente como se sente. Eu acompanhei de longe toda aquela história. Mas, já chega, menino... Já chega de causar problemas.

Como descrever?...

Parecia como ser jogado ao mar.

Tudo começava com uma falta de ar. Era como se os pulmões subitamente se esquecessem de como trabalhar e decidissem endurecer-se como pedras. Respirar doía, então, isso quando era possível.

E, assim, uma estranha sensação esgueirava-se pelas veias, ocupando cada pedaço de suas células. Algo que o fazia, ao mesmo tempo, colado ao chão como quem tivesse raízes; mas também com a sensação de que estava caindo a lugar nenhum, num abismo negro como a mais profunda das noites. Deprimente.

- Tem razão, Xiggy... – disse. E aquela não lhe pareceu sua voz.

Virando-se, então, para o outro, sorriu.

- Desculpe, Xaldin... Sei que deve ser muito chato para você. – disse-lhe, num tom quase envergonhado. – Desculpe mesmo...

O homem de olhos claros em questão, talvez ainda surpreso de que fosse assim tão fácil convencer o garoto a voltar (por que diabos Xigbar não fez isso desde o começo, então? ...Era MESMO muito estranho trabalhar por ali), apenas assentiu.

- Apenas vamos voltar.

- ...Como estão eles?

O mais velho apressou-se ao ouvir a pergunta:

- Sua mãe foi bem mais preocupante. Não sei dela desde que saímos de Tokyo, mas quando a vi pela última vez, estava bem mal. – ele revirou os olhos, em algo que parecia descaso.

Demyx sorriu. – Típico dela... E...?

- O senhor Myde lidou deveras naturalmente com sua fuga. Como se já esperasse algo do tipo, eu diria. – mas, claro, como não era nada profissional falar assim do homem que lhe pagava, o homem mudou de abordagem. – Está bem impaciente pelo seu retorno. Acho que você vai ter bem mais trabalho em pedir desculpas a ele.

- ...Espero que mencione os relatórios que tivemos de dar e as mentiras que você contou pelo garoto, Xigbar. – Xaldin resmungou.

O moreno pareceu sentir seu sorriso apenas aumentar.

Melancolicamente.

Ele lembrava-se de uma vez onde fugira para ir com Axel a uma espécie de pub à noite. Seu segurança havia mentido habilmente sobre o fato, contando uma verossímil e completamente diferente versão para sua fuga, e salvo sua pele naquele dia.

- Obrigado, Xiggy... – e, pelo visto, ele o fizera de novo. – Essa viagem realmente representava muito para mim.

- Que seja... – suspirou o mais velho. – Agora vamos, garoto.

- Espera...

- ...O que é agora? – Xaldin, até então quieto, quis matar aquele moleque quando o ouviu falar aquilo.

- Preciso atar uns negócios inacabados por aqui.

Os olhos dourados fixaram-se nos azuis do outro. – Prossiga.

- Então... Será que poderiam me buscar amanhã? Dou meu endereço. – apressou-se em dizer. – Sei que vocês já sabem onde eu estou, mas... Enfim... Eu realmente gostaria de apenas mais algumas horas nessa cidade.

- Tem a ver com o outro que estava com você? – questionou-lhe, sério.

- Também... – assentiu. – Mas não é só ele. – emendou, sabendo que aquilo era, em poucas palavras, uma mentira deslavada.

- Se quiser, nós podemos cuidar dele para você.

- Temos informações e meios o suficiente para esmagá-lo, e...

Demyx quase sentiu-se engasgar. – NÃO! Não, não... Já disse que vocês não precisam cuidar disso, sério...!

Xigbar deu um sorrisinho. – Não vamos matá-lo.

- ...Apesar da vontade. – emendou Xaldin.

- ...É. Não precisamos matá-lo para ter seu silêncio.

- Mesmo assim... Realmente, deixa que eu cuido disso... – gota. – Ele foi uma pessoa legal, me ajudou muito (como vocês puderam ver) e não me ameaçou nem chantageou por nenhuma recompensa em dinheiro ou status às minhas custas. Sério... Fui eu o “vilão” dessa história dessa vez.

Os seguranças se entreolharam.

- Por que não consigo acreditar nisso?

- Me faço a mesma pergunta.

Demyx suspirou, sentindo sobre os ombros o peso de uma batalha perdida. Porque não havia melhor termo para aquela situação.

Tudo que podia fazer era pedir tempo. Mas era só uma ilusão; só mais uma a somar-se às outras que ele já vinha alimentando. Estava encurralado. Eram leões que só pretendiam brincar com sua presa, dar-lhe talvez uma última satisfação, mas não libertá-la. Isso jamais. Era só um acúmulo patético de mais tempo.

Sua batalha fora travada e ele perdeu. Com isso, a realidade desceu até sua mente e fez seu milagre; ele percebera. Demyx percebera o quão idiota estava sendo.

“...Zexy tinha razão em me chamar disso”, pensou.

- Amanhã. – sussurrou, então.

- O que foi? – Xigbar ergueu a sobrancelha.

- ...Eu vou amanhã. Sem falta. Prometo. – separou bem cada frase. – Mas hoje... Só uma última noite... Deixe-me pensar que sou livre só por mais hoje, Xiggy.

Xaldin fechou a cara. – O que pensa que somos?

Por outro lado, o homem dos olhos dourados apenas revirou-os.

- Bem cedo.

Demyx ergueu a cabeça, e assentiu rapidamente. – S-sim! Bem cedo!

- Na frente do hotel.

- ...Ah, claro. – o rapazinho recuperou-se do choque que durou apenas alguns mínimos segundos. – Vocês já sabem onde estou...

- Entendido?

- S-sim!

- Muito bem. – o mais velho assentiu para si. – Mas, só para nos certificarmos... Xaldin, dê ao garoto uma motivação.

Entendendo o recado prontamente, o segurança maior, com aquele seu estranho mas habitual sorriso sadicamente divertido no rosto, pôs a mão no bolso interno de seu terno negro.

Demyx, por um momento, achou que ele fosse tirar alguma arma e apontar para sua testa. Porque, afinal, Xaldin não era nem um pouco tolerante como Xigbar era... Bom, talvez porque o primeiro fosse um funcionário de poucos anos, e desde o começo não simpatizara com a personalidade do herdeiro... Gênios antagônicos, de fato, mas... Mas... Ainda era seu superior, correto? E estavam no meio da rua!

Além disso, se ele morresse, seu pai ficaria uma fera. Despediria os dois... Mas Xaldin não parecia alguém que iria se importar. Aliás, parecia alguém que faria tudo isso parecer suicídio ou acidente – e o moreno sentiu-se engolir em seco nessa hora –, com direito a Xigbar como cúmplice! Eles eram bem capazes de fazer isso, ainda mais com todo o trabalho que tiveram perseguindo ele e Zexion até Nagano, e...

- Se voltar conosco, garoto... – o moreno pareceu divertir-se, lendo as diferentes expressões no rosto do herdeiro. – ...Poderá tomar isso.

E tirou um pequeno frasco dali.

...Ah, sim. Aquilo. O remédio que acabara há mais de uma semana, quando ainda estavam em Ohmachi.

- Sabemos que deve estar morrendo de dor.

- ...Não vou me vender por um remédio. – ele bufou.

- Também sabemos disso. – Xigbar sorriu também. – Mas aconselho a vender-se pacificamente. Não gostaríamos de arrombar seu quarto. É fácil; é só dizer adeus.

Os olhos azuis de Demyx estreitaram-se diante daquelas palavras.

- ...Amanhã, Xiggy.

- Amanhã. – ele concordou.

 

~x~x~x~

 

Não, Xiggy... Não é assim tão fácil.

Porque se fosse mesmo assim...

Eu não me sentiria desse jeito. Jamais.

 

...Então, me diga.

Como eu vou contar para ele...

...Que eu estou...

 

~x~x~x~

 

Zexion tinha a impressão de que estava lendo (e parecia uma obra tão boa – mais de oitocentas páginas de coisas regidas pela velha e boa Física, que parecia, ao menos por ali, ser a única coisa que continuava a fazer sentido –, boa demais para ser desperdiçada daquele jeito) e, ao mesmo tempo, sabia que não o estava fazendo há muitas horas. Mas não havia mais para onde olhar senão para o livro.

A TV de seu quarto de hotel (o qual, ao contrário do quarto de Demyx, era perfeitamente arrumado e nem parecia que alguém dormia ali) estava desligada há tempos. Em verdade, talvez ela sequer fora ligada. O abajur, sempre emitindo sua tênue luz (talvez, pensou de repente, estivesse mesmo explicado o porquê de precisar de óculos para leitura), não parecia sequer que estava aceso. Tudo parecia fora de órbita; o próprio mundo parecia ter desviado de sua trajetória habitual. Ou, quem sabe, ele é que fora tragado para longe da realidade onde até então acostumou-se a estar.

O mais velho encarou o Palm. O bom e velho aparelho. Aquele que, até alguns momentos atrás, estava iluminando com um pálido azul o teto e as paredes, enquanto mostrava os artigos que envolviam o nome

Myde”.

...Era isso. “Myde”.

Ele o conhecia. Oras, quem não conhecia o presidente da mais poderosa das companhias? Era como não saber o nome do imperador do Japão. [55]

Conhecia aquela sensação que se espalhava cada vez que se lembrava de cada página que visitou de longa data. Aquele estranho peso na garganta; algo que não parecia ser feito para ser engolido, mas que estava ali, e que não parecia querer ir embora. Não sufocava, mas ao mesmo tempo, fazia o ar faltar. Era uma sensação muito nostálgica, aquela.

Tantos nomes ela tinha...

“Vergonha” por não ter imaginado isso antes. Parecia-lhe muito óbvio, agora que tinha acesso a todas as entrelinhas, a todos os mínimos detalhes. “Apreensão” pelo que viria agora. A verdade trazia milhares de conseqüências que ele não medira antes por desconhecer tal vital informação. “Raiva” por si próprio; fora idiota. Tão mais idiota que Demyx.

E não sabia nem mesmo exatamente o porquê, mas sabia que fora estúpido.

Quando foi que ele perguntou-se “o que fazia uma pessoa tão cheia de dinheiro longe de casa?”. Porque, agora, parecia bastante óbvio.

Myde”. O filho de “Myde”.

...Parecia tão ridículo, agora que havia descoberto.

Devia ter imaginado que o filho de Myde obviamente iria ter seus próprios seguranças (trogloditas que estavam precisando urgentemente de aulas de etiqueta social, mas bons seguranças. Talvez o mais baixo deles fosse um pouco desleixado demais – coisa que se refletia até na sua fala – mas, outra vez, eram bons no que faziam). E que eles obviamente iriam considerar o “estranho” com ele o culpado. A TV o tempo todo mostrava casos assim.

Suspirou. E fechou o livro em seguida; afinal, Zexion sabia desde o início que não iria lê-lo. Era apenas perda de tempo.

Pegou seu Palm e, então, abriu o histórico de páginas da internet. Várias pesquisas a respeito de “Myde”. E várias pesquisas sobre... Aquilo.

Aquele joguinho imbecil e tácito.

Desviando os olhos para a janela fechada, ele encarou a noite sem estrelas, e mais uma vez, aquela sensação irritante de uma mão invisível fechando-se em seu estômago, estreitando-o violentamente, alastrou-se. Havia uma coisa que seu cérebro racional não sabia explicar, mas que estava no ar junto com o oxigênio.

O som da porta, abruptamente, fez-se ouvir, e ele se sentou no mesmo segundo.

- Está aberta. – disse, elevando um pouco a voz.

Ela abriu-se devagar, hesitante. Do outro lado, iluminando parcamente o quarto com a luz dourada do corredor, Demyx aparecera.

Ele não tinha nenhum sorriso em seu rosto. Tampouco o pedido do McDonnald’s que, da última vez, fora visto com.

- ...Sabe, você não devia deixar a porta do seu quarto aberta assim, Zexy. – ele disse-lhe, enquanto fechava a mesma.

O mais velho apenas deu de ombros, sem nenhuma palavra.

- Tinha procurado você lá, mas não o achei. Pensei então que estivesse no seu quarto. – ele sorriu. – Acho que acertei...

Zexion só continuou calado.

Demyx assentiu para si, como que entendendo o que nunca seria dito. Sentou-se na beirada da cama, também sem falar nada; estava mais interessado em encarar a TV que sequer estava ligada.

- Desculpe.

- Hum?

- Xiggy pegou seu café. Eu tentei impedir, pegar de volta e tudo, mas... Ele é mais alto, sabe... – sorriu, amarelo.

- Tudo bem. – e, com o canto dos olhos, apontou para a mesa de cabeceira.

Ao olhar para aquele copo de papel, Demyx suspirou. – Você tem de parar um pouco, viu? Sei dos benefícios dele, mas café demais é ruim...

Outra vez, a sensação de que haveria coisas que jamais poderiam ser ditas.

Mas, agora, aquele “jamais” parecia tão próximo. Tão estranhamente real, como se fosse uma pessoa, uma presença física.

Não sabia explicar. Mas soube que – e disto com uma exímia e inquestionável compreensão – aquela coisa em sua garganta apenas cresceu. Perguntou-se se ela iria desaparecer ou se continuaria ali enquanto aquele garoto continuasse consigo.

...Porque parecia que ele fazia aquilo acontecer.

Zexion sentiu-se desgostar. Não de Demyx – e, se fosse há alguns dias atrás, seria do garoto, sim – mas daquilo. Daquilo que acabava por impor uma espécie de parede.

Não “Myde”. Não “Xigbar” ou “Xaldin”, nem o fato dele ser o “filho” daquele homem poderoso, nem tudo o que vinha junto com aquela ciência, tudo o que mudou e o que não mudou... Não, não era nada disso.

Era outra coisa. Aquela que se escondia no histórico de sua internet, quando ele encarava o teto, à noite, e deixava-se pensar.

- Você comeu fora? – perguntou, então.

Os olhos azuis do mais novo surpreenderam-se, antes de se nublarem de novo naquela estranha melancolia:

- ...Sim. Desculpe por isso. – baixou os ombros. – Não conseguimos jantar em paz.

Zexion ergueu a sobrancelha.

- Isso não é problema. Teremos outras oportunidades.

Demyx assentiu.

- Sim. Teremos.

E Zexion entendeu. Foi tão simples e rápido... Foi cruel.

Não houve nenhum coro de anjos, nenhuma música de suspense, não houve nem sequer o som dos carros do lado de fora. Só ouvira a respiração deles, Demyx remexer-se desconfortavelmente na cama e nada mais. Fora tão cruel que nem sequer doeu.

- ...Não teremos mais essa oportunidade, não é, Demyx?

O moreno pareceu hesitar.

Mas não tanto quanto ele esperou. Fora também cruelmente rápido. – Não...

- ...Na verdade, eu já esperava por isso.

- ...Desde quando você já sabia, Zexy?

Nikko veio-lhe à mente no mesmo instante. E os olhos azuis do mais velho pareceram redesenhar a arquitetura branca e asséptica do hospital. Seu corpo parecia lembrar-se da textura do banco onde esteve sentado, esperando, sem nenhuma informação sobre o outro. Enquanto isso, seu inseparável Palm em sua mão, riscando sintomas e procurando respostas.

Fora ali. Ele tinha certeza de que, ali, uma parte de si já sabia que aquilo era um sonho. Uma boa ilusão que iria acabar cedo ou tarde.

E, mesmo assim, ele foi fraco. E não se arrependia de tê-lo sido. Mas nem mesmo seu sentimento iria mudar o fato de que fora uma fraqueza de ambos os lados.

- Desde aquele dia em que você desmaiou. – sussurrou.

Demyx assentiu, ouvindo atentamente.

- “Desmaio”, “visão dupla”, “dor aguda”... Juntar os três sintomas riscava muitas doenças inúteis. Com “morfina”, reduziu-se ainda mais as possibilidades.

E, então, os dois azuis encontraram-se. O azul do mar tranqüilo e sem ondas num dia de verão e o azul profundo do fundo de uma piscina, do céu sem nuvens. Ao encararem-se, tudo pareceu apenas se confirmar.
Demyx sorriu. Ele achara que seria mais romântico. Dramático. Como numa novela; com mais suspense, talvez com lágrimas...

Não houve nada daquilo. Só a crueza do silêncio e de segredos que já não eram mais segredos: só nunca haviam sido externados.

- Lembra-se de que eu perguntei, ontem (Deus, fora ontem? Parecia ser há tanto tempo atrás...), quais foram as suas conclusões? Eu perguntei sobre alguma teoria sua, não é? – o sorriso continuou. Mas ele sequer parecia-se com um sorriso. Era só um esboço de um. – Será que... Eu posso ouvi-las agora?

Zexion concordou, suspirando.

- Infartos, dor severa crônica, complicações de alguma cirurgia passada, infecções... Algo auto-imune, talvez? Mas nada daquilo fazia sentido. Não com morfina. Não com dor de cabeça. Então...

Houve silêncio. Porque ambos sabiam do poder das palavras.

Enquanto aquilo permanecesse no Palm, na mente, naquela coisa presa na garganta, nada precisaria mudar. A parede continuaria ali, mas a situação também: a situação onde eles encontraram-se e que os fez estarem onde estavam.

Porém, se ousassem falar, tudo aquilo desmoronaria como um castelo de cartas pelo sopro travesso de alguma brisa. Não haveria, nunca mais, volta.

- ...Então? – mas Demyx já sabia disso.

- ...Sobrou apenas “câncer”. – e Zexion também.

O moreno riu, encarando o teto.

- Droga... Zexy é sempre o Zexy! Eu devia ter imaginado!

O outro continuou calado. Era óbvio, muito óbvio, que “visão dupla” e “dor de cabeça” eram sintomas de um tipo específico de “câncer”.

- ...E chegou a uma conclusão? – Demyx, então, perguntou-lhe. Porque, sim, ele sabia que Zexion já havia descoberto isso.

- Li sobre todos, mas... Não. Não sou médico nem adivinho.

- Está tudo bem. Você conseguiu mais do que achei que conseguiria...

O mais novo colocou a mão sobre a de Zexion. Ele quase sentiu seu corpo contrair-se numa ânsia inexplicável, mas não enojada. Era apenas... Uma ânsia. Uma vontade desesperada de algo que ele não sabia o quê era.

- ...Está tudo bem, mesmo.

- Não. Não está.

Demyx sorriu de novo.

- Você pode me emprestar o seu...?

No segundo seguinte, a máquina estava nas mãos do moreno, que parecia procurar alguma coisa, enquanto a luz da tela mudava em nuances suaves de branco.

O rapaz de cabelos azuis encarou a capa do livro que estava lendo anteriormente por alguns instantes, esperando. Ele achou que ficaria chocado; talvez satisfeito consigo próprio por já ter descoberto antes; talvez, irritado. Ele considerou tudo aquilo. Mas não achou que ficaria daquele jeito: apático. Era essa a palavra. “Apatia” pura e simples. Nada entrava em sua mente e nem nada saía.

- Você leu sobre todos os tipos, Zexy? – a voz do outro elevou-se, de repente.

- Sim. – assentiu.

- Entendo... – ele também o fez. – Então, você já deve saber sobre meu problema.

Suspirando, Demyx estendeu o Palm para o dono.

Havia uma página de web aberta ali.

- É isso, Zexy. Certamente você já deve ter pesquisado sobre esse tipo, então você já sabe, não é?...

Zexion sequer assentiu desta vez.

Apenas encarou a tela e aquele título. Um velho conhecido.

 

Ele limpou as primeiras lágrimas, sentindo o rosto queimar de vergonha.

Ouvia Axel chamar seu nome, forçar seus ombros para que se erguessem, para que seu rosto se levantasse e pudesse ser visto, mas...

Demyx queria evitar exatamente isto. Não queria mostrar. Não queria que vissem o quão patético era; o quão ruidoso estava sendo aquele desmoronar.

Algo agudo pressionou um recanto profundo em sua cabeça, e ele estremeceu.

Era aquilo, não...? A dor da morte. Sua contagem regressiva. Seu derradeiro fim.

Sentiu mais lágrimas caírem-lhe, e quanto mais ele pedia para si próprio para parar, mais se lembrava das palavras de sua mãe, de seu médico, de todos... De que já não havia mais nada que se pudesse ser feito.

- Acabou, Axel...

- O que? – ele perguntou, confuso. – Acabou o quê?

Demyx, então, ergueu o rosto, limpando a última e mais teimosa das lágrimas. Respirou profundamente, e encarou os olhos esmeraldinos.

- Já estava desconfiado, mas só hoje recebi a confirmação. Não havia te contado...?

Axel, aparentemente ainda chocado com a cena (a ponto de ter tirado das mãos do outro – que nem percebeu – o refrigerante), apenas negou.

- Não... Não sei nem do quê está falando.

Ele sorriu. E lhe doeu como nunca sorrir. A primeira vez que fazer aquilo lhe doera de verdade. – De...

 

- ...Que eu vou morrer?


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Notas finais do capítulo

[52] Faixa 8 do terceiro CD da OST de Kingdom Hearts II.

[53] Síndrome de Estocolmo: uma síndrome desenvolvida por aqueles vítimas de seqüestros, onde uma vítima se identifica emocionalmente, como mecanismo de defesa, com seu captor. Na antropologia cultural, é relacionado, por exemplo, aos casos como a “captura da noiva”.

[54] Hosts são homens bem-vestidos e de bom papo que trabalham, no Japão, em bares especializados para atender somente o público feminino. Não são, porém, michês, nem garotos de programa.

[55] Que, por sinal, se chama Akihito.



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