Katniss acordou tateando a cama em que estava deitada. Primeiramente ela se assustou ao constatar que não estava no chão, mas logo se lembrou da noite anterior em que Peeta a disse para dormir com ele já que estava frio. As imagens do beijo também voltaram á sua mente e ela choramingou ao mesmo tempo em que sentia o rosto esquentar. Nenhum dos dois devia ter permitido que as coisas chegassem a esse ponto.

Então ela também se lembrou de que tinha uma decisão a fazer: iria embora ou não? Já era o quinto dia, nem sequer valia a pena desistir quando estava tão perto de acabar, mas ao mesmo tempo ela sentia que se ficasse ainda mais tempo poderia se apaixonar pelo rancoroso Peeta Mellark que tinha a intenção de se vingar, mas acabou por beijá-la – e pior, ela acabou por gostar. Peeta podia ser irritante e cínico, mas ele também conseguia ser estupidamente encantador.

Katniss ouviu o barulho da televisão e também ouviu barulho de passos, o que a fez perceber que Peeta estava em casa. Uma pessoa mais segura iria até ele para que conversassem, mas ela ainda não estava pronta para encará-lo, então passou boa parte da manhã deitada fingindo estar dormindo. Quando ela finalmente levantou, foi para tomar banho. Demorou-se mais que o normal na banheira relaxante e em seguida demorou-se muito mais que o normal para pentear os longos cabelos castanhos. Ficou sentada por um tempo, checou o celular – coisa que há muito não fazia -, não havia mensagem alguma nem ligações perdidas, mas ela não estava esperando que tivesse.

A fome e o tédio a venceu e ela saiu do quarto. Peeta estava deitado no sofá assistindo à televisão. Katniss optou por não reparar muito nele, também não queria que ele reparasse nela, então se dirigiu silenciosamente até a cozinha e comeu um donut que encontrou dentro de um pacote em cima do balcão. Como estivera fazendo desde que acordou, se demorou em comê-lo e quando terminou se demorou na cozinha. Ela não queria olhar nos olhos dele, ela não queria reconhecer que aquele beijo não havia sido qualquer beijo.

- Não pode me evitar pra sempre, Everdeen – ela ouviu Peeta dizer, como se ele tivesse lido seus pensamentos, mas a realidade era que sua tensão e hesitação era tanta que ele provavelmente conseguia sentir, ou simplesmente ele estava sentindo o mesmo que ela e sabia como era.

Katniss se rendeu, ciente de que ele estava certo. Peeta, que antes estava deitado, se sentou ao ver que ela caminhava em sua direção. A morena se sentou no espaço vago ao lado dele e timidamente analisou seus olhos.

- Precisamos de uma sessão de perguntas e respostas, Everdeen – Peeta disse a ela. Embora ela não quisesse responder as perguntas que ele lhe faria, ela precisava de algumas respostas, então assentiu – Primeiro as damas.

- Por que me beijou? – ela perguntou, sem pensar duas vezes. Era essa a pergunta que estava em sua mente desde o momento em que foi dormiu até o momento em que abriu os olhos.

- Não sei – Peeta respondeu. Katniss ergueu as sobrancelhas, silenciosamente exigindo uma resposta – Você me intriga com esse jeito “Ninguém manda em mim” – ele fez uma péssima imitação da voz dela e em outras circunstâncias ela teria rido – e estava lá bancando a irritadinha depois de ter enfrentado meu pai pra me defender. Não pude evitar – ele concluiu – Por que retribuiu?

- Porque você me beijou. E você o fez direito – Peeta riu sabendo que era o mais próximo de um elogio que ele conseguiria dela – Sem enrolações, honestidade: por que gostava de mim na escola?

- Você era intocável, inatingível, inalcançável. Tão bonita, confiante, segura de si mesma, se achando melhor que qualquer um a sua volta – ele deu de ombros enquanto falava – Já ouviu falar que as pessoas querem o que não pode ter? – ele pensou por um momento – Por que concordou em vir comigo? Sem enrolações, honestidade.

- Orgulho e dignidade. Eu sempre pago as minhas dívidas e eu perdi aquela aposta – Katniss respondeu – Por que fez aquela aposta? Quero dizer, você podia ter pedido qualquer coisa, me humilhado publicamente, dinheiro mesmo que você não precise, podia ter pedido para que eu te beijasse na frente de todos e irritar Gale com isso, podia ter pedido que eu dormisse com você ou qualquer coisa. Você sabe que eu não teria negado, eu não mostraria ser covarde.

- Ótima observação – falou Peeta antes de pensar na resposta – Você se lembra de tudo o que fez comigo? Marcamos um encontro e você nunca foi. Eu consegui colocar a gente na lista daquela boate que todos queriam ir, mas você precisava ser importante pra conseguir colocar seu nome na lista e você foi comigo, mas apenas para fazer amizade com outras pessoas e me deixar sozinho lá. Eu carreguei seus livros pra você, eu te defendi infinitas vezes, eu me humilhei por você, eu...

Ele parecia estar sentindo a raiva novamente e Katniss voltou a se sentir culpada, então preferiu interrompê-lo:

- Vá direto ao ponto – ela murmurou e ele assentiu, desconcertado.

- Eu queria te ter a minha mercê pelo menos uma vez, entende? Vingança não era o bastante, eu queria que você sentisse na pele o que era ser inferior a alguém – Peeta olhou para as próprias mãos, desconfortável com o assunto.

Peeta não gostava de reviver as lembranças que tinha de Katniss e ele não gostava de ver a pessoa que ele havia se tornado, afinal, não era muito melhor que ela.

- Você podia ter ido embora quando eu te dei a chance – observou Peeta – Mas você não foi e ontem você não tinha obrigação alguma de ir àquele jantar comigo, mas você foi. Por quê? – ela abriu a boca para responder de imediato, mas ele a impediu: - Não diga que foi por orgulho ou dignidade ou o que for, eu sei que é mais que isso. Eu te disse para ir, quem estava desistindo da aposta era eu naquele momento.

Katniss precisou pensar por algum tempo para responder a essa pergunta, já que nem ela conseguia entender a resposta. Peeta estava começando a achar que ela não iria responder, quando ela começou a falar:

- Talvez você não seja uma companhia tão ruim assim – Katniss admitiu baixinho – Eu estou até que me divertindo aqui. Peeta, há algo que você precisa saber – ela chamou a atenção dele que a olhou com curiosidade – Eu receio não ter mais condições de ficar nessa guerra com você – confessou Katniss hesitante.

- Estou contando com isso – respondeu-lhe Peeta. Seus lábios quase formaram um sorriso.

- Como vai ser quando a aposta acabar? – Katniss perguntou a ele. Peeta pareceu surpreso com a pergunta, mas era algo que ela realmente queria – e precisava – saber.

- É essa a sua pergunta? – ele perguntou. Katniss concordou balançando a cabeça positivamente – Bom, eu não sei, depende de nós dois. Não é como se fossemos ser bons amigos... Não é?

- Tanto faz – ela murmurou, sem saber o que mais responder. Era elementar que a vida dos dois não seria a mesma quando a semana acabasse. Não era como se fossem esquecer aqueles dias e seguir em frente. Já haviam chegado longe demais para isso.

- Por que está com Gale se não o ama? – perguntou Peeta surpreendendo-a.

Katniss abriu a boca, mas não saiu som algum. Ela estava realmente sem saber o que dizer.

- Eu... Eu nunca disse que não o amo – ela gaguejou. Peeta revirou os olhos fazendo-a se sentir estúpida por mentir para ele quando aparentemente ele já a conhecia bem o bastante.

- É evidente que não, então vamos tentar novamente: - ele fez uma breve pausa – Por que está com Gale se não o ama?

Katniss suspirou.

- Você sabe o é estar sozinho, Peeta?

Eles se olharam nos olhos por algum tempo, coisa que ainda não tinham tido coragem para fazer naquele dia. A realidade estava lá, exposta em seus olhos: eles eram o mesmo. Tinham mais em comum do que poderiam imaginar, mas agora eles podiam perceber.

- Sim – Peeta sussurrou mesmo sabendo que era uma pergunta retórica – Eu sei.

Eles ficaram em silêncio por tempo o bastante para que se tornasse constrangedor, mas também foi tempo o bastante para se recomporem.

- Por que meu relacionamento com Gale te interessa? – perguntou Katniss. Ela estava começando a pensar que sabia a resposta, mas queria ouvi-lo dizer. Queria saber o que ele sentia.

- Se ele não te faz feliz talvez você devesse dar chances a outras pessoas, quero dizer, você não pode ficar com alguém apenas pelo medo de não ter ninguém – Peeta lhe respondeu desconfortavelmente.

- Não é essa a resposta que eu queria – Katniss falou firmemente ao mesmo tempo em que estreitava os olhos.

- Mas é essa a resposta que eu te dei, conforme-se – Peeta sorriu sarcasticamente. Uma coisa que Katniss havia aprendido em cinco dias era que ele usava a ironia para esconder sentimentos.

- Peeta, você gosta de mim? – Katniss perguntou enfatizando o “gosta”. Peeta umedeceu os lábios.

- Uma pergunta por vez.

- Eu não me importo, cansei desse joguinho da verdade – ela se aproximou dele, querendo olhar em seus olhos azuis enquanto ele tentava a todo custo evitar seu olhar – Você quer me beijar, Peeta? – ela perguntou num sussurro.

Ela estava próxima demais. Peeta podia evitá-la, mas sua respiração descompassada denunciava seus verdadeiros desejos. Então ele constatou que não havia motivo algum para negar. Sem pensar duas vezes, ele a beijou. Katniss intensificou o beijo, segurando com força seus fios loiros. Ela se sentou em seu colo e imediatamente sentiu as mãos de Peeta agarrem suas coxas. Katniss arfou em seus lábios.

- Eu não terminei com você, Everdeen – Peeta disse interrompendo o beijo. Katniss suspirou e gemeu em protesto – Agora você está com Gale porque não quer ficar na sozinha, mas eu tentei de todas as formas estar ao seu lado e você não deixou. Por que agiu daquela forma comigo?

- Olha, Peeta, assim eu posso tirar conclusões precipitadas se você prefere conversar do que me beijar – ela tentou desviar do assunto e se aproximou para continuar a beijá-lo, mas ele segurou seus ombros impedindo-a.

- Então tem mesmo algo errado – ele percebeu – Por que você é assim, Katniss? Eu quero uma explicação.

Ela voltou a se sentar no sofá saindo do colo dele. Ela revirou os olhos e respirou fundo.

- Por que minha vida te interessa tanto? Justo quando estamos ficando bem você resolve estragar tudo! – ela se irritou.

- Para de fugir do assunto! – Peeta elevou o tom de sua voz – Eu pensava que era alguma bobagem, que você simplesmente era mimada demais, mas agora eu percebo que tem algo errado. Não podemos ficar bem se você não se abrir pra mim.

- Não posso simplesmente abrir as pernas? – ela murmurou passando as mãos no cabelo. Peeta teria rido se não estivesse preocupado.

- Sem brincadeiras, Katniss – ele pediu falando calmamente de novo – Por favor, fala comigo.

- Eu nunca fui daquele jeito por ser mimada demais ou ter tudo o que queria – começou Katniss. Peeta observou lágrimas se formando em seus olhos e sentiu vontade abraçá-la, mas hesitou porque a Katniss que ele conhecia o estapearia se ele a abraçasse – Eu sempre agi dessa forma porque queria sentir que eu tinha o controle de pelo menos alguma coisa – ela fez uma pausa parecendo procurar as palavras certas.

- O que quer dizer? – Peeta perguntou confuso.

- Minha mãe está morrendo, Peeta – ela disse num sussurro sem coragem para olhá-lo. Algumas lágrimas escorriam em suas bochechas e Peeta ficou boquiaberto – Ela tem leucemia. Ela reagia bem aos tratamentos, mas recentemente ela parou. Já não há nada a fazer. Tanto que ela deu um tempo nas roupas. Eu deveria ajudá-la para manter a marca, mas eu me afastei dela e todo mundo. Ela, meu pai e minha irmã foram morar em Paris. Mamãe quer literalmente descansar em paz – ela riu sem humor – Primrose está cursando moda na faculdade para continuar o famosíssimo trabalho da mamãe quando... Você sabe.

- Paris – ele murmurou – Você me disse que iria pra lá depois que saísse daqui.

Ela assentiu e soltou um soluço.

- Você me mudou de verdade – Katniss falou – Eu quero estar com ela e apoiá-la. Tenho sido uma péssima filha. Eu me afastei porque achei que assim sofreria menos, mas fiz meus pais, minha irmã e até eu mesma sofrermos mais ainda. É horrível saber que ela está morrendo e eu sou obrigada a ficar assistindo porque não há nada que eu possa fazer pra mudar isso.

- Então é isso que você quis dizer – ele concluiu – Se você fosse má com todos, mandassem em todos, assim se sentiria no controle de tudo e ainda se pouparia de acabar mais magoada.

- Sim – ela concordou – Isso também explica Gale. Ele é minha distração e ele não sabe da minha mãe. Se eu fico sozinha eu me lembro de que tenho minha mãe, mas logo não vou ter mais e logo me lembro de todas as minhas péssimas escolha e me sinto mal por não ter tido coragem para consertá-las. Isso também explica o porquê de eu estar aqui. Quanto menos sozinha eu ficar melhor. Gale é a única pessoa que eu conheço pior do que eu mesma, de forma que ele é o único que eu não consegui fazer com que me odiasse. Por isso estou com ele.

- E o tempo todo eu te culpando, odiando e julgando, pensando saber demais sobre você sendo que eu não sabia nada – Peeta sussurrou mais para si mesmo do que para Katniss. Ele escondeu o rosto nas mãos, sentindo raiva de si mesmo.

- Peeta, honestamente, você foi a melhor coisa que já me aconteceu em muito tempo – Katniss admitiu. Ele se recompôs e enxugou as lágrimas dela puxando-a para si.

- Pensei que você estivesse aqui para não ficar sozinha e não porque eu sou a melhor coisa que te aconteceu – Peeta falou fazendo com que ele sorrisse.

- Eu também – ela murmurou – Mas de ontem pra hoje você me mostrou o contrário.

Eles não disseram nada por um tempo. Peeta deixou que ela se acalmasse com o rosto enterrado em seu peito. Ele não se importou que ela estivesse molhando sua camisa com lágrimas, apenas deixou que ela ficasse lá e acariciou seus cabelos.

- Peeta – ela o chamou – Já que estamos sendo honestos, eu vi suas coleções esquisitas de curativos e guardanapos – ele gargalhou.

- Eu faço três coleções – ele contou a ela – A de curativos é porque são bonitinhos – Katniss riu – Sempre estão fazendo curativos estampados de formas diferentes, eu queria ter todas elas. E os guardanapos você tem que admitir que foi uma ideia interessante. A todos os restaurantes que eu vou que possuem guardanapos personalizados com o nome do lugar eu pego um e o guardo na coleção. Está quase completa.

- E a terceira? – Katniss indagou.

- Coisas aleatórias – ele respondeu – Eu guardo uma caixa com essas coisas. São coisas antigas, da minha infância e adolescência, mas há coisas recentes também. Tudo o que eu não quero esquecer ou que eu não vou usar, mas quero ter, eu guardo lá.

- Você vai ter que me mostrar isso um dia.

- É claro – Peeta concordou – Ei, então foi assim que você caiu no primeiro dia em que chegou aqui? – Katniss sentiu o rosto esquentar e riu.

- Bom... Sim – ela respondeu. Eles riram juntos – Estava mexendo nos edredons para ver se encontrava algo mais quando caí.

- Se você não tivesse caído teria encontrado a terceira coleção. Mas e você? Alguma coleção?

- Vinho – ela respondeu – E eu não bebo vinho. Mas no meu aniversário de dezenove anos eu ganhei uma garrafa de vinho antiga. Já que eu não ia beber porque não gosto, eu guardei e não vi sentido em guardar apenas um vinho então comecei a colecionar. De qualquer modo, é interessante.

- E nós achando que já nos conhecíamos demais.

- Quando a aposta acabar eu vou manter o meu plano e ir para Paris – contou-lhe Katniss – Mas até eu quero ficar com você.

Peeta beijou-lhe a cabeça. Ela nunca pensou que um dia receberia um gesto de carinho assim dele e ele nunca pensou que ela permitiria isso.

- Então fique.