Enclausurados escrita por Ellie Bright


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Escrevi porque eu tava sentindo falta de alguma fic de kuroshitsuji no universo do mangá, então resolvi fazer uma lol Aviso que tem spoilers sobre o final do arco do navio Campana, antes do arco da escola West.
Espero que gostem!



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Enclausurados

As pessoas são pequenos pássaros

Vivendo em uma gaiola de desespero

Se ninguém quebrar a tranca, não poderemos voar.

Hallucination – Matsushita Yuya. (Aka Sebastian dos Musicais)

            Não havia nenhum lugar vazio, nem mesmo diferenciação entre ricos e pobres, tripulação e cliente; todos estavam amontoados naquele navio. Mas o que isso importava? Nada. Estavam vivos. Embora Ciel pensasse que todos ali tivessem afundado um pouco junto ao Campana; ele duvidava muito que alguém pudesse esquecer os mortos rasgando os corpos dos vivos, de todo aquele sangue e gritos de desespero.

            Era impossível esquecer isso.

            Já fazia algumas horas que foram resgatados e navegavam para longe dos corpos que boiavam na água que, onde estavam, já era azul e não rubra. Mães agarravam seus filhos, mulheres choravam e mesmo os mais corajosos homens ainda se recuperavam daquela noite.           O Libre, o barco que lhes resgatou, não era um navio grande e diversas pessoas estavam na proa, enroladas em mantas e abraçadas. Estimava-se que outro navio estava se aproximando para levar os sobreviventes de volta a Londres no dia seguinte, assim como outros navios viriam para recolher os corpos.

            Certamente aquele incidente seria conhecido na história como o maior acidente naval já ocorrido no mundo. Ciel se perguntava quantas pessoas teriam sobrevivido se ele e Sebastian não estivessem ali, já que graças a intervenção deles aproximadamente seiscentas pessoas sobreviveram.

            A luminosidade do dia se extinguia, mas o burburinho dos demais passageiros continuava cada vez mais alto. E o jovem ainda segurava firmemente o pertence do agente funerário que durante tantos anos lhe ajudou e que agora era seu inimigo.  Undertaker... O que ele estaria planejando?

O conde parou de olhar pela pequena janela do quarto onde estava, guardando o objeto no bolso das vestes. O quartinho onde estava não era muito grande, sequer dava para uma pessoa ficar tranquilamente ali, mas o pequeno cômodo agora o abrigava, assim como a Sebastian e Snake, já que ninguém queria ficar ao lado das cobras.

            Os Middleford, como os patriotas que eram, estavam ajudando os demais sobreviventes, oferecendo apoio e auxiliando a tripulação do Libre. Ciel não duvidava de que a vontade de Lizzy era estar ali com ele, visto que dentre todos os resgatados, Sebastian e ele estavam em estado mais grave. Porém Snake, em um lance de brilhantismo inigualável, disse que cuidaria de ambos, já que era um empregado da família Phantomhive. Agora estavam todos em um silêncio confortável após as sucessivas massagens corporais que o criado fez em seu corpo, para minimizar os efeitos da hipotermia.

            Snake também conseguiu trazer para o quarto um pouco de sopa bem quente, ainda assim, Ciel ainda sentia os sintomas da exposição prolongada as baixas temperaturas da noite anterior. Arrepios involuntários, mãos e pés ainda muito gelados e diversos calafrios percorriam seu corpo, mas ele se recusava a ficar deitado. Sebastian foi terminantemente contra deixá-lo tomar bebidas alcoólicas, mesmo que tudo o que ele queria fosse se esquentar, entretanto, dessa vez ele se sujeitou a recomendação do mordomo.

            O demônio ingeriu a sopa e agora fingia dormir ao seu lado, já que ambos dividiam um colchão improvisado com algumas mantas. Por sua vez, Snake estava sentado no chão, abraçando seus joelhos e repousando sua cabeça entre o vão destes; Oscar e as outras serpentes rodeavam seu corpo em busca de calor. A luz do lampião tremeluzia levemente e o dia dava lugar a uma noite gelada, igual a noite anterior.

            Apenas esse pensamento fez com que o jovem conde se lembrasse da temperatura da água; tão gelada como se estivesse lhe espetando com diversas agulhas pequenas e afiadas. Sua perna estava dormente e ele mal sentia o machucado do dia anterior. O capitão do Libre disse que ele tinha sorte por estar vivo.

-Smile... –murmurou Snake com a voz baixa, pouco mais alta que um sussurro, talvez para não acordar o mordomo que ocupava a única cama do quarto.

            Não que Ciel pensasse que Sebastian fosse capaz de dormir, mas era inegável o fato de que o demônio não estava bem. Daquela vez, Sebastian realmente ultrapassara todos os limites possíveis, pois era a primeira vez que Ciel via o demônio naquele estado lastimável. Não foi uma falha, apenas era surpreendente vê-lo daquele jeito. O conde tinha plena consciência da gravidade dos ferimentos de Sebastian, assim como sabia que suas últimas ordens foram necessárias, mas também exigiram demais. Em momentos como aquele, Ciel se perguntava por que Sebastian desejava tanto a sua alma, arriscando-se até mesmo a morrer no processo. Não que interessasse a resposta, mas era, no mínimo, peculiar.

            -Por que...? –perguntou o lacaio ainda em sua vozinha suave e tímida. –Por que você quis que eu ficasse no seu lugar?

            O conde ouviu a pergunta atentamente, observando os tristes olhos violáceos lhe fitarem com uma velada curiosidade. O que aquele garoto faria, se descobrisse que vivia com os assassinos das pessoas que ele considerava sua família? Mesmo que agora Snake fosse parte da família daqueles assassinos.

            -Eu ainda tinha assuntos a tratar. –respondeu Ciel em voz baixa, porém solene. A franja alva do servo caiu sobre os olhos. -E eu não queria que você ficasse ali. Não menti quando disse que queria salvá-lo.

            Ao menos nisso ele foi sincero. Sua casa estava sempre de portas abertas para bonecas quebradas como Snake, o tipo útil e que não estava irremediavelmente estilhaçada. Era difícil para o seu orgulho admitir isso, mas Ciel conseguia enxergar um pouquinho de si mesmo em cada um de seus empregados. Mais que isso: Ciel conseguia ver em cada um deles o mesmo desejo que ele secretamente possuía. A necessidade de um lar para onde voltar. Entretanto, escolhas foram feitas e algo que se perdia, nunca mais poderia ser revisto.

            O lacaio ergueu seu olhar no tom de Sions e um ligeiro rosado surgiu nas maçãs de seu rosto, enquanto um sorriso singelo brotou em seus lábios. Ciel voltou para se vingar das pessoas que o humilharam, essa era a razão principal. Aquele era o seu maior objetivo, porém se nesse percurso houver alguém gritando por socorro, exatamente como ele gritou um dia, e essa pessoa ainda tiver gana para viver, Ciel faria o possível para salvá-la.

            Ninguém merecia ficar preso em sua própria jaula.

-Obrigado. –disse Snake com sua voz gentil. –Diz Oscar.

            O conde se permitiu um breve sorriso, após checar bem se o mordomo estava mesmo com os olhos fechados. Ferido ou não, o demônio folgado não perdia a língua afiada e principalmente: a capacidade de irritá-lo e rir de si. Snake ficou quieto novamente, se deitando no chão do navio e usando um pequeno monte, feito do fraque negro de seu uniforme, como travesseiro. Oscar e as demais serpentes se aproximaram do dono, enrolando-se em círculos.

            -Boa noite, Smile. –disse Snake, fechando os olhos.

            Foi um longo dia, após uma noite interminável. Iria melhorar depois de um tempo, Ciel sabia disso por experiência própria, mas naquele momento... O conde suspirou baixinho, encontrando forças para engatinhar lentamente até o criado. Seus membros tremeluziam ao menor esforço, felizmente Snake não estava muito longe e Ciel pôde se desenrolar da manta e tirar o fraque de Sebastian e colocá-lo sobre o lacaio. Oscar serpenteou por entre seus pés, não agressivamente, mas como um animal pedindo carinho. Era bizarro, mas Ciel não sentia medo disso.

            -Use isso. –mandou Ciel em tom autoritário, vendo o olhar lilás do criado se abrir. –Ele não vai se importar.

            O criado apenas assentiu em um gesto breve com a cabeça, pondo o fraque sobre seus ombros. As cobras se aproximaram ainda mais do jovem de olhos fechados, se escondendo por trás do fraque negro usado como lençol. Ciel se afastou, lançando um olhar irritado para o mordomo, mas dessa vez Sebastian não falou nada ou fez qualquer coisa que lhe irritasse. O conde ergueu uma das sobrancelhas, de uma forma apreensiva e só houve o silêncio.

            Sem muita escolha, Ciel se embrulhou novamente na manta e voltou para perto do mordomo, ajeitando-se como pôde no colchão, encostando suas costas no torso de Sebastian e encarando o outro criado em silêncio. Aos poucos, os burburinhos também cessavam e o barco seguia sua rota em um mar calmo.

            Quando relembrava sobre o que tinha acontecido aos integrantes do circo, Ciel apenas podia pensar que eram boas pessoas, mas crédulas. O mundo não era bom com pessoas assim – e isso ele aprendeu do jeito mais difícil o possível, ao ver seus pais sendo mortos. As chamas devoraram cada resquício de sua casa e mesmo isso não era o pior.

            Eles eram os piores.

Não foi apenas a pequena jaula onde ficou, como se ele fosse um pequeno animalzinho de estimação em meio a um circo de horrores. Tampouco foram as cintadas que recebia, quando tentava sair pela portinhola no momento que abriam sua jaula para alimentá-lo. Não, o que fizeram foi ainda pior: o castigo que lhe deram foi assistir

            Dia após dia, ele precisava assistir a aquele espetáculo onde mulheres desfilavam nuas, para em seguida serem possuídas não por um, mas por vários homens, em posições humilhantes e em todos os lugares. Boca, genitália e até mesmo pelo traseiro. Às vezes isso acontecia ao mesmo tempo, sem que nada pudesse aliviar essas mulheres que sangravam e vomitavam no chão. Algumas jovens não deviam ser mais velhas que ele, e não eram apenas elas quem possuíam os corpos marcados pela lascívia dos outros. Alguns meninos também eram tratados assim.

            Os gritos eram a pior parte.   

Por mais que ele fechasse os olhos para tentar não enxergar, Ciel nunca conseguia tampar os ouvidos e se livrar do som. E quanto mais ele se encolhia, implorando para que parassem com aquilo, mais os expectadores prestavam atenção nele, jogando-lhe pequenos pedaços de pão duro por entre as grades e riam. Figuras altas, com togas negras e máscaras de bailes rodeavam sua jaula, cutucavam-lhe com suas bengalas trabalhadas e nobres, ameaçando-o até que ele ficasse com tanto pavor que inevitavelmente perdia o controle da bexiga.

            Alguns meninos da sua idade também eram empalados, sem qualquer preparo ou qualquer chance de defesa. Os homens de togas negras sempre ameaçavam que fariam o mesmo com ele, mandando-o observar o que fariam consigo quando o momento chegasse. Havia outras crianças em jaulas iguais as dele. Meninos e meninas que ficavam em uma jaula com palha de cavalo, uma bacia de água suja e alguns pedaços de pão duro; não havia espaço para urinar ou defecar. Viver literalmente na merda, Ciel sabia exatamente como era – e isso ainda não era tudo.

            As pessoas iam embora, mas os corpos mutilados, o sangue no chão e o cheiro do esperma permaneciam junto das jaulas e da escuridão que ficava. Esses cheiros se misturavam com o da urina das suas vestes, e com o excremento que ficava na sua jaula. Eles eram trancados no escuro o dia inteiro, sem ninguém por perto para ajudar ou ligar a luz, qualquer sussurro parecia que os mortos estavam se aproximando para pegá-lo; Ciel desejava a morte nesses momentos.

            Mas ele viveu.

            Aquele maldito homem que manipulou Joker e os demais... Aquele homem desprezível fazia algo semelhante com todas as crianças desaparecidas. Elas precisavam morrer. A morte era o melhor caminho para elas: não precisavam viver com medo. Não do escuro, nem das lembranças, mas da gaiola. Da jaula que prendia mais do que o corpo, mas também todo o futuro que alguém poderia ter.

Não havia como perdoar, muito menos esquecer. Era impossível se livrar do desespero que essas lembranças ruins lhe traziam, ou dos sons que ecoavam na sua mente tornando-o quase insano de tanta dor e principalmente medo. Por mais que dissesse a si mesmo que estava fora da jaula, guardando todo o medo em uma caixinha secreta dentro de si, atrás de uma elaborada fachada de indiferença, Ciel às vezes vacilava.

Era inevitável sentir medo pelo simples fato de ter medo.

            O tempo tornou a vida um pouco melhor, ele não esqueceu o que passou. A queimadura em suas costas era a marca que sempre o prenderia a este objetivo, porém, quando ele precisava matar alguém em razão de suas atribuições como cão de guarda da rainha, Ciel se lembrava do medo.

Claro que o seu orgulho precisava ser restaurado e seus parentes mereciam ser vingados, mas acima de tudo, Ciel precisava não sentir medo. Ir para o inferno era irrelevante: ele já vivia no inferno. Todos os dias, todas as horas, todos os instantes. O inferno era ter medo e Ciel tinha medo. Além disso, aquelas crianças não tinham um demônio para lhes ajudar a superar o medo, ao se caminhar pelo caminho escuro da volta.

            Aquelas crianças não poderiam superar o medo: elas estavam irreversivelmente quebradas. Meirin, Finnian, Bard e agora Snake tinham suas cicatrizes de medo, mas ainda podiam ser salvos. Ainda podiam ter a esperança de um lar e Ciel as ajudaria nisso, porque era o único que poderia. Não era piedade: era apenas o certo a se fazer, por toda a dor que sentiu.

            Era o seu meio de seguir em frente, o seu meio de continuar acreditando em algo, mesmo quando tudo mais ruía. Sem acreditar em algo, o medo o dominaria; Ciel temia esse fim mais do que tudo. Talvez por isso ele se agarrasse tanto ao demônio ao seu lado: Sebastian era o meio para superar o medo. Era a lembrança constante de que não poderia fraquejar, se não jamais poderia superar o medo. O demônio era a única peça que poderia garantir a vitória, mas também era a prova de que poderia destruir tudo o que acreditava. Ciel sabia que enquanto Sebastian estivesse ao seu lado, ele sempre estaria alerta: para o mundo ao seu redor, quanto para com o medo que existia dentro dele.

            Sebastian era a chave da gaiola, assim como era a própria gaiola. Ciel o odiava, tanto quanto lhe era grato. No fim, se ele desse a sua alma para esse demônio, não importaria, desde que ele tivesse a certeza que enfrentou seus medos da melhor forma que podia. Não por vingança, nem pelo passado, mas pelo seu próprio futuro. Sebastian poderia ter o que quisesse dele, se Ciel conseguisse seu objetivo e essa sempre seria a única coisa que realmente importaria.

            As horas passavam lentamente, Ciel podia dizer isso por causa do brilho lunar que adentrava vagamente pela janela que crescia no quarto conforme a lua brilhava no céu noturno. O conde se virou para o outro lado e quase gritou quando viu o mordomo com os olhos abertos, ligeiramente avermelhados na penumbra que não ocultava o sorriso desdenhoso que curvava os lábios finos.

            -Por que está rindo? –inquiriu o conde não conseguindo esconder bem o rubor que ornava suas bochechas em razão da raiva.

            -Foi muito doce o que disse agora a pouco. –murmurou o demônio em tom jocoso, seus olhos reluzindo maliciosamente.

            O conde apenas fez um barulho irritado, deitando-se de costas no pequeno colchão para não encarar o sorriso satisfeito do demônio. O garoto estava sem sono, mesmo que todo seu corpo ainda protestasse pelo frio intenso e pelos machucados da noite anterior. Sua mente estava repleta de memórias ruins e se ele dormisse naquele instante, os sonhos o perturbariam da mesma forma que a realidade.

            -Ele, como muitos outros, são apenas bonecas quebradas. –Ciel comentou baixo.

            O silêncio que se seguiu foi tranquilo. Os sons do navio se resumiam a água do mar sendo cortada pela embarcação e milhares de respirações, vez ou outra algum inseto voava ao redor do conde, fazendo suaves sons ao voarem. Sebastian respirava lentamente ao seu lado, a respiração morna batendo na nuca do garoto, quando o mordomo se virou.

            -Como você? –Sebastian disse com leve petulância. Seus olhos adquiriram um tom ligeiramente avermelhado ao perceber que seu mestre fraquejava.

            Por mais forte que o menino-homem fosse, ele fraquejava. Suas decisões continuavam firmes, em um caminho que o levaria a um sofrimento ainda maior –e Sebastian se divertia com isso – ainda assim o jovem conde seguia em frente, sem pestanejar. Sua visão de mundo cada vez mais corrompida, e isso era visível em seu caráter, porém, em alguns momentos, sua alma se revelava tão límpida como era antes de toda a desgraça ocorrer na mansão Phantomhive. Sebastian sempre gostava de ver como essa alma destoava das demais nesse aspecto.

            Em momentos assim, o mordomo se convencia mais uma vez que valia a pena se submeter a todos os caprichos dessa criança tola; pelo deleite de ver o sofrimento em uma alma tão singular.

            -E o que isso importa? –inquiriu Ciel com a voz em um paradoxo constante de firmeza e fragilidade. Dois opostos que combinavam bem com a silhueta frágil e a alma poderosa.

            Sebastian, às vezes, se esquecia como as almas humanas poderiam envolver facilmente demônios em seus mistérios. Não era simples encontrar um humano com essa possibilidade. Humanos se deixavam enganar porque gostavam de viver alienados em suas falsas crenças e no seu falso modo de ser, qualquer demônio perceberia que a “sociedade” forçava com que os humanos abandonassem suas essências individuais pelo todo. Isso começava quando precisavam refrear o instinto do sexo e da violência, e era por isso que demônios como ele existiam em todos os lugares.

            Era para forçar os humanos a serem o que eram. Forçar o caos que existia dentro de cada um deles e rir com o sofrimento causado.

            Humanos precisavam de violência e de sexo para viverem seus pecados. Luxúria e violência eram permitidas porque estavam dentro de cada ser humano vivente, embora cada um fosse egoísta e hipócrita demais para admitir, mas estava lá. Sebastian conseguia enxergar isso muito facilmente. Era tão patética essa sede que os humanos sentiam e em como se enganavam com suas mentiras sociais.

            Ciel reconhecia esses dois atributos nos seres humanos, mas, ainda assim, mesmo convivendo com toda a escória humana, dentro e fora de si, o garoto ainda parecia ter esperança. No quê, Sebastian verdadeiramente não sabia, mas aquela tolice de seu mestre era forte e talvez por isso especialmente bela, de uma forma que o demônio sequer sabia como definir.

            Essa esperança fazia com que Sebastian quase se apegasse ao garoto. Não com falsos sentimentos de “amor”, um conceito humano criado vagamente para evitar a “solidão” e com ela o “enlouquecimento”. Não, o apego de Sebastian por seu mestre não era essa mentira deslavada que os humanos impunham uns para os outros. Sebastian era atraído por esse feixe de luz que alma de Ciel Phantomhive exalava, quanto mais sofria, mais essa luz brilhava. Não importava o quanto o conde visse a sua crença de mundo ser desfeita pelas ações humanas, ainda havia força para seguir em frente.

            Uma força motivadora que o tornava único por conseguir enxergar um caminho em meio ao breu. Caminhando sozinho, sem olhar para trás. Essa força fascinava o demônio.

            -Estar quebrado ou não estar quebrado, nada disso é relevante. –continuou Ciel com a voz determinada, virando-se para encarar o mordomo. -A vida segue.

            Havia medo naquele olhar, assim como sofrimento e muita dor, mas acima de tudo havia muita coragem. Uma determinação fria e inabalável que tornava o menino um homem. Um humano quase tão forte, se não mais forte, do que um demônio ou mesmo um ceifeiro.

Sebastian não se cansava desses momentos.

Adorava ver a fraqueza contrastar com as trevas, e a tolice competir silenciosamente com a bravura. Alguns escritores poderiam narrar que ele estava quase apaixonado pelo jovem conde, Sebastian não pensava que chegava a tanto. Embora, definitivamente, ele estivesse cativado por aquele humano.

Sem que Ciel Phantomhive soubesse, nesses momentos, já entregava a sua alma ao mordomo. Assim como Sebastian inevitavelmente entregava um pouco mais de si, sua essência como demônio, para admirar aquele pequeno humano. Não com o amor humano, muito menos com a luxúria demoníaca, mas como o ser que era e que precisava ser entretido.

E ele precisava de diversão para continuar existindo.

 -Cada um trilha o destino que escolhe para si e acaba como uma memória vista uma vez por algum ceifeiro idiota. –concluiu Ciel sem pestanejar.

Um sorriso curvou os lábios do demônio, enquanto percebia o suave vinco que se formava na têmpora do mais novo, que o observava atento, possivelmente pensando em uma contra-argumentação. Era sempre assim com os dois. O menino não possuía medo do demônio, embora possuísse medo de tudo. O conde nada mais era que um pirralho medroso e especialmente corajoso.

   Sebastian sempre tinha algo em que prestar atenção no garoto e isso não o deixava entediado. Gostava de ver o desafio brilhar na iris azul, sabendo que ele próprio era um dos motivos para aquela criança tola seguir em frente. Ciel poderia nunca dizer isso em palavras, mas Sebastian sabia.

    -Ora ora... –ele comentou em um tom provocador. -Isso seria mágoa?

   -Não. –assentiu Ciel com a voz firme e determinada, fechando os olhos. -É apenas uma constatação natural dos fatos.

   Sebastian compreendeu que aquele era o fim da conversa, onde tudo foi dito, mas o essencial ainda era mantido em segredo. Ele permaneceu atento, vendo a fadiga finalmente levar seu mestre ao reino de Morfeu. Nada realmente mudou nos últimos anos, sua fome continuava e, às vezes, ele realmente se arrependia de ter contratado com um mestre tão teimoso e irritante. A petulância de Ciel era tanta que até mesmo ele, com toda a calma que adquiriu ao longo de sua existência, era quebrada em dois tempos.

Contudo, na maior parte do tempo, mas principalmente em momentos como aquele, quando o conde se mostrava tão absurdamente fragilizado, Sebastian inevitavelmente pensava que tudo valia a pena. Suas memórias, na análise de um ceifeiro torpe e estranho, eram desinteressantes, mas Sebastian gostava de cada uma delas; ele gostava de exibir seus atributos. Gostava de ser admirado e até mesmo paparicado pelas suas habilidades, esse sentimento nunca se esgotava, muito menos se tornava desinteressante. Quanto maior o desafio, mais animado ele ficava e Ciel Phantomhive era uma criança mimada exigente que o testava a cada segundo, torcendo pelo seu fracasso.

Não, ele não se arrependia de ter prosseguido com o contrato, mesmo quando podia usar sua lábia para rescindi-lo a seu bel prazer; embora Ciel também fosse um bom negociante, graças a ele. Mas o fato era que sua vida como Sebastian Michaelis era simples, uma rotina que se estendia pelas semanas que viravam meses e anos, mas não era entediante de modo algum. Ele se divertia em cada momento, mais até mesmo que em outros trabalhos, pois o desafio estava em cada esquina.

Sebastian vivia por esses desafios. Era o motivo da sua existência.

  Aos poucos a respiração de Ciel ficava mais profunda e lenta, a expressão facial em seu rosto ficando cada vez mais doce e livre de qualquer mazela, revelando apenas uma falsa inocência. Inconscientemente, o conde buscou mais calor junto ao corpo do mordomo, depositando sua cabeça na curva do ombro de Sebastian, um dos braços finos contornando delicadamente o abdome do demônio. A respiração lenta e pausada batia de encontro a nuca de Sebastian, fazendo-lhe um pouco de cócegas.

 -Ora ora... –murmurou o demônio com um tom bem humorado. -Alguém está se sentindo carente?

Ele não recebeu nenhuma resposta, o que significava que o conde estava mesmo profundamente adormecido e Sebastian suspirou, levemente satisfeito. O demônio acolheu o conde em seus braços, abraçando as costas do pequeno e enfiando os dedos de sua mão esquerda nos cabelos do mais novo, acariciando levemente a nuca. Os cabelos de Ciel eram quase tão macios quantos os pelos de um gato e a sensação era bastante agradável. Especialmente quando o mordomo imaginava a indignação que o mestre faria caso soubesse disso. Sebastian sabia que agir assim não era uma atitude de mordomo perfeito, porém, novamente, Ciel não lhe deu nenhuma ordem contrária. Na verdade, foi o próprio conde quem resolveu usá-lo como travesseiro –não que ele estivesse reclamando, era só uma eventual defesa, caso precisasse.

 Não era de sua essência agir assim, tampouco ele tinha qualquer desejo lascivo para com qualquer humano; Sebastian francamente ficava entediado com sexo, pelo menos, naquele século. Ainda tinha algum divertimento em ver órgãos internos expostos, sangue e em estraçalhar seres vivos, mas sexo normalmente era entediante. Sempre a mesma timidez, romantismo ou então as mesmas expressões de desespero quando feito sem consentimento; isso era verdadeiramente frustrante. Sexo poderia ser muito divertido, mas não naquele século graças a rainha Vitória, a quem seu mestre servia.

  Às vezes Sebastian gostaria de saber a opinião de Ciel sobre o verdadeiro sexo, embora ele lamentasse que o menino seguiria com o puritanismo que reinava na Inglaterra. Sexo entre dois homens? Pecado. Mas um pecado extremamente prazeroso, embora sexo com mulheres também pudesse ser bastante agradável, dependendo da mulher (embora fosse terrivelmente raro, graças as normas da sociedade mais uma vez, que obrigava as mulheres a serem servas do seu homem).

Entretanto, em alguns momentos, Sebastian pensava que Ciel teria uma opinião divergente. Sexo era mais um assunto que seu mestre sentia medo, pois naquela noite quando ele o resgatou, o verdadeiro sexo estava por todo o lado e isso deixava uma marca. Um trauma gigantesco e uma curiosidade animalesca, algo que só traria ainda mais sofrimento ao jovem conde e por isso Sebastian ficava ainda mais interessado.

Alguma parte de si desejava ter esse tipo de diversão com seu mestre algum dia, para ver o sofrimento e o prazer marcarem mais um pouco daquela alma já cheia de cicatrizes. E outra parte de si, bem menor, desejava que isso não ocorresse para preservar essa esperança que ainda existia no garoto. Em todo caso, Sebastian desejava aquela alma como nunca antes desejou algo.

   Não apenas para devorar aquela alma, mas pelo simples prazer de fazer parte da destruição daquela pessoa. Ser o único ao lado daquele garoto tolo, observando-o cair para então ampará-lo em seus braços, sugar aquelas lágrimas e vê-lo caminhar ereto, cheio de orgulho, mais uma vez. Pelo privilégio de assistir a esse espetáculo, Sebastian não hesitaria em seguir em frente, por mais doloroso que fosse proteger aquele humano, mesmo que precisasse ir até as últimas consequências por uma única alma, Sebastian sabia que não se arrependeria.

Simplesmente já estava consumido demais pelo desejo para retroceder. Completamente envolvido, com sua liberdade restringida pelos desejos daquele humano tolo.

    O servo passou a observar o luar enquanto o mestre adormecia, ainda acariciando os cabelos do menor que vez ou outra suspirava satisfeito com a demonstração de carinho. Tudo seria esquecido ao amanhecer e novamente Sebastian seria o mordomo perfeito, Ciel o conde Phantomhive.

Ambos seguiriam em frente, sem sequer perceberem as amarras que um lentamente colocava no outro, pelo simples fato de que preferirem ignorar o que estava diante de seus olhos. Eles voltariam a Londres, sem sequer repararem que cada vez mais, um era preso ao outro e que não havia como ficarem livres disso.

A liberdade estava na verdade que ambos relutavam em aceitar.

Ambos preferiam viver esquecidos de tudo o mais que pudesse importar. Alienados pelas suas inverdades, presos em suas falsas ilusões e concepções de realidade porque era o melhor método para se enganar de que eram livres.

Era por isso que viveriam presos um ao outro até o fim.


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Notas finais do capítulo

Eu achei o fim meio tosco, mas não consegui pensar em outra coisa pra concluir o raciocínio xP As vezes eu realmente odeio conclusões. Não sei se que tipo de fics fazer no fandom de kuro, gostaria de saber a opinião de vocês sobre se devo continuar com fics baseadas no mangá ou em realidade alternativa.
Se tiver erros ou personagens OOC podem me dizer, tá? Espero que tenham gostado!



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