Shalom - As Memórias de John Sigerson escrita por BadWolf


Capítulo 9
Capítulo 9: O Presente e o Passado de Esther


Notas iniciais do capítulo

Bem, agora vamos ver como o Holmes vai se sair nessa...

Será que ele escolheu o presente certo? Será que ele vai decepcionar Esther?



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Faltava apenas cinco minutos para o fim do expediente. Um grande alívio era constatar isso. O professor Johnson estava com o pior de seus humores, foi o que ela concluiu. Gritava com quase todos que pudesse encontrar. Que pessoa detestável. Dois alunos apareceram, para entregar trabalho para ele. Um deles, ao saber que ele não estava, acabou desabando em lágrimas. Esther pediu que ele se sentasse, ofereceu um lenço. O rapaz, de uns vinte anos, estava desolado, porque o professor o chamava de imbecil o tempo todo. Enquanto o rapaz chorava como uma criança, Esther se perguntava porque havia professores tão perversos como Johnson no mundo. Sem dúvida, se ela tivesse sido professora, não seria assim. Professora. Não era uma má profissão.

–Miss Katz, eu quero que organize essas provas corrigidas para mim. Agora. – foi o que pediu Johnson, quando Esther já se preparava para sair, deixando uma pasta abarrotada de papéis. Assim que o professor deu às costas, ela bufou. Em plena sexta-feira, como ele ousava fazer uma coisa dessas?

Assim que puxou duas provas, Esther notou uma pequena nota cair no chão, solta entre as provas. Ela se agachou para pegar.

Estou no laboratório da ala D. Preciso te ver. J Sigerson.




Esther sentiu vontade de rir. Como Sigerson conseguiu colocar aquela nota no meio das provas do professor Johnson? Ele era mesmo um homem engenhoso, ela pensou. Engenhoso e criativo, inegavelmente criativo.







Já era perto das seis e meia da tarde, com um pôr do sol que deixava o céu em uma cor rosa azulada, quando Esther atravessava o corredor praticamente vazio da Universidade. Uns poucos professores já saíam das salas de pesquisa, mas ela sabia que os hábitos de Sigerson eram um tanto diferentes dos demais e que aquela hora, ele ainda estaria ocupado com algum experimento. O que será que ele queria com ela, àquela hora?





–Entre, Miss Katz. A porta está aberta. – foi o que ela ouviu, quando estava ainda se preparando para bater a porta. Ela abriu, deparando-se com Holmes, sentado em uma cadeira, de costas para uma mesa repleta de aparelhos que ela jamais poderia identificar, e frascos com substâncias coloridas, que enchiam os olhos por sua beleza e perigo. Ele estava com as mangas dobradas, ela notou, mas rapidamente ele as puxou ao perceber isso, de uma forma que ela achou estranha à primeira vista.


–Aconteceu alguma coisa? – ela perguntou, desconfiada.

–Uma apenas, que eu queria compartilhar contigo. – ele disse, neutro.

Ele virou-se para a mesa, acenando para que ela se sentasse ao seu lado, em um banco, junto a um microscópio. Ele pôs suas mãos sobre alguns conjuntos de frasco, e retirou um deles, que tinha uma curiosa cor verde escura.

–Estive dedicado em meus últimos dias neste experimento. É algo completamente inédito no meio científico, pelo que soube de meus colegas professores. Ontem, antes de voltar para casa e ocorrer aquele “incidente” entre eu e você, eu deixei este experimento em repouso, aguardando o que se resultaria. Nestes últimos dias, tinha fracassado, mas quando cheguei esta manhã, eu percebi que finalmente tinha sido bem-sucedido. Mostrei o resultado aos meus colegas e todos ficaram maravilhados. Suas propriedades podem auxiliar inúmeras doenças de pele dos nossos tempos. Hoje à tarde, eu fu registrá-lo no Conselho de Química, e... Eu não tive dúvidas do nome que escolheria.

Holmes retirou de cima da mesa uma pasta e a entregou para Esther. Assim que Esther a abriu, ela viu um certificado, reconhecendo John Sigerson como “cientista responsável pela descoberta” do...

–Katzprunatar?

–A senhorita deve estar reconhecendo o seu próprio sobrenome, e prunatar significa Coltar, em Latim. Significa Coltar de Katz, acho que será assim seu nome no meio acadêmico.

–Adonai! Isso é incrível! Você colocou meu sobrenome em uma descoberta científica!

–É, e ao que parece, muitos cientistas estudarão Katzprunatar, falarão de Katzprunatar, discutirão sobre Katzprunatar ... – Holmes disse com falso desprezo, e depois suspirou com um sorriso no rosto, antes de concluir. – Isso é tudo que eu posso fazer pela senhorita, Miss Katz, ainda mais depois de...

Um abraço silenciou Holmes. Ele ficou, no início, apreensivo e um tanto encabulado, mas parecia sentir que a moça sorria. Enquanto ele ouvia dezenas de “obrigada”, de maneira fervorosa, sair da boca da moça, ele pôs delicadamente suas mãos sobre suas costas, envolvendo-a completamente.

–Você pensou mesmo que o meu presente seria apenas isso?

Esther olhou para Holmes, desconfiada, quase imitando sua sobrancelha levemente arqueada, que ele fazia algumas vezes. Em contrapartida, Holmes riu.

–Acho que isso merece uma comemoração. – ele disse ainda envolto no abraço.

–Seria adorável. – ela concordou.

–Nossos estômagos poderiam se permitir uma folga da péssima comida servida na estalagem. – sugeriu Holmes. – Há boas opções por Montpellier, e ainda não provamos um bom vinho francês, e falo vinho de verdade e não daquela coisa aguada que ultimamente eu ando bebendo.

Ainda abraçado a Esther, ele sentiu seu peito estufar algumas vezes, abafando uma risada.

–Mas Mr. Sigerson, a sua viagem...

–Bobagem, minha cara. – ele a interrompeu. – Uma extravagância não fará mal. Não uma extravagância merecida. Vamos, ainda encontraremos uma mesa boa no... – Holmes se interrompeu.

–O que foi? O senhor não quer me contar para aonde vamos? Está aprontando mais uma surpresa, Mr. Sigerson? – Esther sorriu.

–Quero que veja por si, ou melhor, aprecie. Vamos.

Holmes e Esther embarcaram em um cabriolé. Fazia uma noite agradável, com uma brisa calma a refrescar aquele verão. Muitas pessoas caminhavam pela rua, naquela noite de sexta-feira. Holmes, que era pacato e pouco saía, percebeu que de fato a cidade estava cheia de turistas.

–Um casal de alemães, um português e... Um americano. – foi o que constatou, ao observar as pessoas na calçada.

–O senhor é surpreendente. Como sabe? Sequer falou com essas pessoas...

–O corte do terno, o formato da cartola, o tecido do vestido da moça... Muitas coisas ajudam a reconhecer um estrangeiro quando se está diante de um, não apenas o sotaque ou traços do rosto.

–Impressionante, Mr. Sigerson...

–A senhorita pode me chamar de Sigerson, apenas Sigerson, se quiser. – de repente, Holmes deu dois toques no cabriolé, fazendo-o parar.

–Chegamos. – disse, ajudando Esther a descer.

Ao perceber onde estava, Esther mal pôde se conter. O grafismo da fachada daquele lugar e o aroma que exalava dali só poderia dizer uma coisa: era um restaurante judaico.

–Beit. É um restaurante judaico, como você já deve ter percebido.

–Beit?! – foi a vez de Esther ficar surpresa mais uma vez. – Como você conseguiu achar um restaurante judaico aqui, em Montpellier?

–Na verdade, minha cara, nós praticamente não estamos mais em Montpellier. Esse é um município vizinho, mas estamos perto da cidade. Bem, então vamos logo.

Esther imediatamente sentiu-se familiar com o ambiente. A música, cantada em hebraico, o cheiro de muitos pratos que sua mãe costumava cozinhar e ela já não comia há muito tempo. Aquilo parecia um sonho.

–Confesso que sou um completo ignorante quanto à sua cultura, Miss Katz...

–Pode me chamar de Esther, Mr. Sigerson...

–Ah! – exclamou Holmes. – Farei isso apenas quando a senhorita o fizer primeiro, tal como eu pedi.

Esther sorriu. – Eu vou tentar... Sigerson.

Holmes pegou o menu, que estava escrito em hebraico, praticamente indecifrável. Seu conhecimento linguístico a qualquer outra língua que não o inglês e o francês se limitava a frases de intelectuais e palavras como “assassinato”, “morte”, “vingança” ou algo do tipo, que certamente não estariam escritas em um cardápio.

–Hum... O que sugere? – ele disse, com o rosto quase escondido pelo cardápio, deixando à mostra apenas uma sobrancelha arqueada.

–Eu gosto de varênique, ou matzu ball... Acho que você iria gostar mais de varênique.

–Então, será varênique.

Ao chegar o prato, Holmes percebeu o que era o varênique. Parecia uma espécie de panqueca, recheada com batata e coberto com cebola dourada. Embora bem simples, era surpreendentemente gostoso. Foi servido yayin, uma espécie de vinho, leve e também gostoso.

–Eu preciso te confessar uma coisa: eu nunca bebi yayin.

–Oh não? – disse Holmes, partindo para a terceira taça.

–Eu acabei abandonando o preceito judaico, desde que meus pais morreram, quando eu era criança. Não tive a oportunidade. Agora posso ver que é bom.

–Você nunca bebeu qualquer tipo de vinho?

–Não vou mentir. Uma vez, quando eu tinha dezoito anos, eu dei dois goles no copo de David.

Holmes engoliu um riso. Esther contava aquilo como se fosse um grande pecado.

–Você dificilmente iria se embriagar se bebesse um copo completo.

Ambos riram, e Esther encheu mais um copo. A conversa seguia agradável, com ambos compartilhando sobre a rotina de seus trabalhos, conversando sobre as pessoas que frequentavam a Universidade e a estalagem. Durante um tópico, quando ambos falavam sobre neve, Holmes perguntou como era sua vida na Rússia, um país tão frio. Ela esfriou repentinamente, tanto quanto o tema do assunto, e fez uma observação qualquer, bem limitada.

Holmes percebeu que ela sempre agia assim. Afinal, o que ele sabia dela, além do que era necessário saber? Uma moça, de 20 anos, judia, com um irmão, que passou boa parte da vida fugindo de um Conde russo perverso e implacável. Era pouca coisa a se saber de uma mulher com quem Holmes estava dividindo quarto - não, aposentos, ele se corrigiu, encabulado com a mera hipótese. Esther agir de maneira tão limitada sobre seu passado era bom, pois assim ela não teria o direito de cobrar explicações sobre ele mesmo. Talvez por isso sua amizade fosse tão preciosa. Ambos eram perfeitos estranhos, e não estavam se movimentando para mudar isso.

Mas afinal, será que a moça não teria exagerado? Mulheres costumam exagerar em suas narrativas, sinalizou Holmes. Ela poderia ter, de fato, alguma implicação na Rússia, mas nada a ponto de mover os instintos sanguinários de um Conde, a princípio, preocupado demais em agradar o Czar e enriquecer às custas do pobre povo russo. A explicação de que estava prometida a ele era plausível, mas até certo ponto. Um homem russo, da estirpe do Conde, não correira atrás de uma judia para o casamento. E, afinal, que tipo de pai era esse que entregava a filha a um homem sanguinário, assassino de seu próprio povo? Claro, o acordo - se é que houve - não deveria ter sido conivente. Mas ele sabia que qualquer conversa sobre isso seria estéril. Esse, certamente, era um segredo de família que ela jamais iria revelar a um estranho de origens pouco conhecidas.

Suas divagações foram tão longe que ele se viu sendo chamado de volta àquela mesa de jantar pela própria protagonista de seus pensamentos e seus belos olhos claros.

–O senhor me deixou sozinha na conversa... Quando percebi, estava falando para o vento! Onde estava?

–Oh, nada... Só pensando em algumas coisas...

–Decerto algum experimento que deixastes no Laboratório de Química... - ela concluiu, enquanto recolhia outra vez a garrafa.

Holmes ficou um tanto mau-humorado. Não gostava de ter seus pensamentos interrompidos. Aliás, se recordar do fato de que, ultimamente, Esther estava ocupando demais os seus pensamentos foi a causa de sua irritação.

–Já é o seu terceiro copo, Miss Katz. O álcool pode ser perverso com aquele que não sabe administrá-lo.

–“O álcool pode ser perverso com aquele que não sabe administrá-lo.” Parece uma frase pronta. É de quem?

Holmes abandonou o humor rapidamente. – Do meu pai.

–Ah. – foi só o que Esther pôde dizer. Não sabia se falar do pai de Sigerson era algo bom ou ruim, e ela não queria estragar a noite. Mas para seu alívio, o próprio Holmes desviou o assunto.

–Esther, acho que tem alguma coisa na sua mão.

–Na minha mão? – Esther se perguntou analisando, suas mãos. – Não há nada de errado com elas.

–Ah, mas há sim. Dê-me aqui, a mão direita.

Ela o obedeceu, e em um truque de mágica, Holmes fez surgir nas mãos dela um cordão de ouro.

–O que é isso, Sigerson?

Holmes sorria, vitorioso. – Você pensou que meu presente consistia em uma ida a um restaurante ou em dar seu nome em um experimento químico?

–Confesso que você me deixou surpresa, mas eu não...

–Miss Katz, Miss Katz... – Holmes a interrompeu. – Obviamente, eu deixei o melhor para o final. Esse é o seu verdadeiro presente.

Esther parou para analisar melhor o conteúdo em suas mãos. Era um cordão de ouro, com um pequeno símbolo judaico: uma Estrela de Davi. Ela se lembrava que sua mãe tinha algo parecido, e que infelizmente ela se desfez para escapar da Rússia. Tinha sido uma jóia de família, que aquela hora, estava perdida em algum lugar da Rússia, e Sigerson conseguiu um objeto muito semelhante, mesmo sem jamais ter visto a jóia.

–Você não me disse que tipo de jóia a sua mãe precisou penhorar, mas eu presumo que seja algo assim. Os judeus costumam ter jóias com o símbolo da Estrela de Davi e, bem... Não era difícil imaginar que sua mãe tivesse tido uma. Acho, Miss Katz, que é a sua vez de tê-la, já que nunca foi permitido a si que você praticasse a sua religião, ou mesmo se mostrasse uma judaica. Espero que essa jóia represente toda a liberdade que você não teve nestes últimos anos, e que agora pode ter.

Esther estava com os olhos marejados, e em um impulso, apertou as duas mãos de Holmes. – Muito obrigada, Mr. Sigerson. Que Adonai possa abençoá-lo.

Estranhamente, Holmes não se sentiu arredio ou incomodado. Pelo contrário. Retribuiu ao gesto, apertando-lhe as duas mãos.

–Se eu puder ajuda-la nessa transição, Miss Katz.



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Notas finais do capítulo

Hmmmmm... Eles apertaram as mãos... Alguns avanços tipicamente vitorianos...


"Os grandes relacionamentos se constroem com pequenos gestos." (minha autoria)

Ninguém se ligou que o flashback foi uma dica? rs E eu, que pensei que tinha entregado demais...

Ah, e vai haver mais movimentação no próximo capítulo. E um avanço daqueles!! Só o que posso adiantar é: eu não andaria a pé no subúrbio de uma cidade, em uma noite fria, nem mesmo se fosse Sherlock Holmes...


Obrigada a todos que acompanham a história e que não desistiram dessa fanfic. Sua audiência é muito preciosa. Reviews são bem-vindos. Podem dizer o que quiserem na caixinha no final do capítulo.


Regards
BadWolf



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