O Espectador Fantasma escrita por Yuka


Capítulo 1
Um sentimento


Notas iniciais do capítulo

Essa história eu escrevi tendo várias inspirações, mas especialmente em uma pessoa que conheci recentemente e compartilha comigo vários pontos de vista.
A história é original, não representa nenhum acontecimento, mas é uma metáfora. Não creio que muitos leitores captarão a verdadeira intenção da história a não ser a própria pessoa em quem me inspirei.

Não existe nada de complexo aqui. Imaginei e escrevi; críticas e elogios são sempre bem vindos.



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Devagar, a pianista sentou-se no banco retangular que acompanhava o instrumento. Um grande piano de cauda completa; um belíssimo Steinway, preto. Ela arrumou o cachecol, trazendo-o mais para perto do pescoço e amaldiçoou brevemente o frio das terras suecas.

Uniu as mãos em frente a seu corpo e as esfregou, uma tentativa de esquentá-las. As teclas frias do piano não ajudavam muito, uma vez que logo as pontas de seus dedos já estariam frias e doendo mais que o normal; doendo como não doíam se tocasse piano em um dia quente de primavera.

Antes de começar a música, ela olhou em volta. O piano ficava no palco de um grande teatro, localizado no centro de Malmö, cidade da Suécia onde ficava a ponte de Øresund; ponte que ligava a Suécia a sua irmã nórdica, Dinamarca. A cidade não era muito grande, estava longe de ser tão grande quanto Estocolmo, mas era linda. O inverno era muito rigoroso e a pianista não gostava muito dos dias frios de neve. Suas mãos ficavam geladas e seus dedos, rígidos; era difícil aquecer para tocar uma música difícil ou treinar sua virtuosidade com o instrumento.

A garota adorava aquele teatro. Nos dias à tarde, em que nada acontecia e não havia nenhum ensaio programado, havia pedido ao guarda do local que a deixasse entrar e praticar. Primeiramente o guarda não se sentiu muito seguro a deixar, mas sem demorar muito, permitiu à estudante que viesse nos dias desocupados para tocar.

Ela tinha um piano em sua casa, mas não ligava. O teatro vazio a encantava; o lugar era lindo, e imaginar as pessoas sentadas ali, ouvindo-a, era algo que ela gostava. Sentia medo de espectadores, no entanto. Ouvia as pessoas dizerem "Você é uma brilhante pianista", "Tem muito futuro como concertista" e até mesmo "Como você pode não gostar de ser ouvida?"

Tocava apenas para si mesma. Deixando de contemplar o teatro, olhou para o instrumento, apoiando suas mãos sobre o teclado. O revestimento preto brilhante do piano a permitia ver o reflexo das próprias mãos. Eram mãos de pianista. Mãos pequenas, mas ao mesmo tempo com dedos longos e finos. Unhas curtas. Uma precisão extremamente rigorosa em pressionar teclas. E um amor sem tamanho pelo som que as cordas percutidas faziam.

O próprio instrumento e o modo de tocar a fascinava. O fato de tocar várias notas simultaneamente, as notas melódicas combinadas com as harmônicas; a dificuldade de tocar coisas completamente diferentes em ambas as mãos. A disposição das teclas pretas entre as brancas, o movimento das mãos sobre o teclado, o trabalho de dedilhado. O som forte do piano, seguido dos sons suaves e fracos. A expressão da música.

Respirou fundo e tocou uma escala de dó, simples, em uma oitava, usando as duas mãos. Repetiu algumas vezes o movimento, para tentar aquecer um pouco suas mãos. Ela desejou novamente que os dias mais quentes voltassem e endireitou as costas, assumindo a posição correta para tocar. Com os pés devidamente apoiados no chão, usando o pé direito no pedal de sustentação, ela tocou a primeira nota da música.

A música era Struggle for Pleasure, de Wim Mertens. Ela sorriu ao ouvir o som do piano e percebeu como seus dedos não demoraram para ficar com as pontas geladas e doloridas. Ainda assim, ela continuava tocando.

Ela sentia como se o teatro vazio fosse seu mundo. Um mundo em que não era permitida a entrada de muitas pessoas. Apenas poucas e pessoas que já eram importantes para si podiam entrar. Ela gostava de como o teatro tinha uma acústica incrível e de como o som soava pela construção.

A pianista concentrava-se tanto em tocar que nem percebeu que um espectador se aproximava. Ele ficou ouvindo e observando de longe, fazendo o maior esforço para que a artista não o percebesse ali.

Sozinha, ela conseguia até mesmo fechar os olhos por poucos segundos enquanto tocava. Como passava horas estudando, o ato de tocar piano já havia se tornado algo fácil. Algo que ela havia alcançado ao longo de seis anos, dedicando-se bastante ao instrumento.

Continuou a execução da música. E o espectador fantasma continuava ali, ouvindo-a, com um tênue sorriso no rosto.

Sem demorar muito, ela terminou de tocar a música. Sorriu mais uma vez ao tirar as mãos das teclas e soltar o pedal do piano, finalizando a peça. O espectador manteve-se em silêncio e a pianista pousou as mãos sobre o teclado para iniciar outra música.

O próximo item do repertório foi Comptine d'un autre été: L'après midi. Obra do compositor francês Yann Tiersen, parte do filme O Fabuloso Destino de Amélie Poulan. Ela iniciou e terminou a música, enquanto o espectador continuava em silêncio.

Depois, ela esfregou novamente as mãos. "Maldito frio", ela sussurrou para si mesma, mas de modo que o espectador foi capaz de ouvir e compreender. Ele arrumou o cachecol que usava, envolvendo ainda mais seu pescoço e colocando as mãos nos bolsos.

A próxima música que ela iniciou, com um arpejo de dó maior na mão esquerda, foi Goodbye, de Jan Kaczmarek. O espectador sentiu algo especial por aquela. Ao mesmo tempo que era triste e emocionante, ela tinha mais um tom de esperança. Algo que o fazia acreditar que as coisas seriam boas. O sentimento que ele teve pela última música foi tão grande que, quase sem perceber, ele começou a bater palmas.

A pianista tirou as mãos do teclado, rápida, e virou-se para onde o som vinha. Ergueu uma sobrancelha ao observar o garoto ali, que não aparentava ser muito mais velho que si mesma. Ele continuou com os aplausos por mais algum tempo e depois silenciou. Os dois se olharam sem dizer nada.

— O que está fazendo aqui? Quem o deixou entrar?

— Eu sou escritor — ele respondeu. — Gosto de usar o teatro como inspiração, gosto do silêncio que geralmente tem, parece que isso já temos em comum. Há uns dias eu tenho escrito enquanto ouço sua música, mas nunca te vi. Decidi vir ver de perto.

— Ah... — ela sussurrou, de forma quase inaudível. — Tudo bem.

— Qual é seu nome? — ele disse. Depois, acrescentou, como se temesse estar sendo pouco cortês: — Se me permite perguntar, é claro.

— Anni.

— É um bonito nome.

— Obrigada.

Ele não soube o que dizer por um tempo. Não conseguiu definir se Anni se sentia incomodada com sua presença ali ou só era tímida. O cabelo curto escuro da garota descia até seus ombros, e o cachecol o envolvia de modo agradável. Ela esfregou as mãos novamente.

— Chamo-me Johan — ele disse, já que ela não havia perguntado nada.

— Como Sebastian Bach? — a pianista sorriu, sem conseguir evitar pensar em um de seus compositores favoritos.

— Sim — ele riu. — Terá mais músicas? — ele acrescentou.

— Acho que não.

— Por que não?

— Eu não gosto de espectadores.

Por pouco tempo, Johan pensou no que dizer a ela. De repente, algo veio à sua mente.

— Eu ouvi todas as músicas que tocou até agora — ele disse, em uma tentativa de tranquilizá-la. — A única diferença era que você não sabia que eu estava ali. Agora que sabe, por que é diferente?

— Exatamente porque agora sei.

Anni se levantou devagar do piano.

— Não estou certa — ela disse, surpreendendo a Johan. — Eu não consigo tocar para as outras pessoas como toco quando estou sozinha. Talvez seja porque prefiro ficar sozinha. Considero esse teatro vazio meu mundo. E gosto dele assim, calmo e silencioso.

— Mas a algumas pessoas é permitido que entre, certo?

— Sim... Algumas.

— Anni — ele disse. — Eu sou um escritor. Já escrevi várias coisas e as joguei no lixo, porque fazia isso apenas para me livrar de certos sentimentos. Quando você toca músicas para si mesma, não é como se fizesse o mesmo? Você expressa seus sentimentos e eles se perdem depois, dispersos no silêncio de quando sua música termina. Mas eu deixo algumas pessoas lerem meus textos. Tudo bem se você me deixar te ouvir às vezes?

— Sim — ela respondeu, ainda um tanto inexpressiva. — Se você me deixar ler os textos que você escreve e usualmente joga fora.

— É uma boa troca — Johan sorriu. — Mas qual seu interesse nesses, especificamente?

— Quando as pessoas estão sozinhas elas são mais sinceras — respondeu. — Não tem medo de agir como agem e não tem medo de sentir o que precisam sentir. Elas não se escondem. E eu gosto de observar o sentimento verdadeiro das pessoas. Você me ouviu tocar enquanto eu pensava estar sozinha. Eu quero ler o que você escreve quando acha que ninguém mais vai ler.

— Então você é uma observadora? — ele sorriu novamente.

— Sou — respondeu. — Que tipo de escritor você é?

— Sou um narrador. Acho que detalhes são importantes, eles captam a essência das coisas.

Os dois se olharam um tempo em silêncio. Anni gostava de ser sozinha, e achava que eram poucas as pessoas que a compreendiam. Ela não era triste por isso, era algo que ela gostava. Do silêncio, da calma. Mas algumas pessoas eram diferentes.

Ela conseguia captar a essência das pessoas. Quando viu Johan, percebeu que ele era diferente. Pelo modo como agia e pelas coisas que falava. Eles nunca haviam se visto antes, disso ela estava certa; mas sentiu como se já o conhecesse havia anos.

— Parece que já te encontrei, Johan — disse ela. Sua voz era calma e gentil, apesar de seu rosto não expressar simpatia.

— Posso dizer o mesmo — ele respondeu. Sua voz era um pouco mais energética e ele deixava seu sorriso mais evidente. — Acho que somos parecidos.

— Você acredita em amizade verdadeira? Entre duas pessoas que nunca se viram antes?

— Sim. Você acredita?

— Sim.

Ambos permaneceram em silêncio novamente.

— Acho que somos parecidos — os dois disseram, em uníssono. Depois, os dois sorriram.

— São raras as pessoas que entram em meu mundo, Johan. Só as que me compreendem entram, e só as que pensam como eu permanecem. Parece que você é o tipo que permaneceria. Você acredita em magia?

— Sim.

— Você não parece ter perdido sua magia.

Johan manteve-se em silêncio por um tempo. Anni sorriu e depois se aproximou do piano, abaixando a tampa que protegia as teclas.

— Por isso gosto de você e por isso vou te deixar me ouvir.

— Posso dizer o mesmo.

— Devemos ir? — disse Anni. — Deveríamos nos encontrar aqui amanhã.

— Estarei. E trarei um de meus textos.

— Eu adoro ler — ela disse. — E eu também gosto de escrever.

Johan apenas sorriu.

Saíram juntos do teatro, observando a neve que caía fina sobre a terra e os carros. A cidade estava calma naquele instante, e agradável. Logo tomaram caminhos diferentes.

Na maioria dos dias, Anni e Johan passaram a se encontrar no teatro e a ter longas conversas sobre várias coisas. Anni explicava suas teorias da vida a Johan, e ele também explicava as suas. Comentavam sobre acontecimentos e experiências do passado. Os dois realmente eram muito parecidos.

Anni admirava o modo de pensar de Johan e se perguntava se isso era possível. Se era possível admirar uma pessoa que conhecia há pouco tempo e considerava especial apenas pelos pontos de vista. O sentimento não passava de admiração. Anni já o considerava um amigo, mas o sentimento que tinha por ele era puro. Às vezes ela olhava para o céu e se perguntava se isso era possível; admirar uma pessoa e ser admirada, sem segundas intenções de nenhuma das partes. Quando ela lembrava de Johan, imaginava que sim. Era possível.

As pessoas eram todas diferentes. Ao ver de Anni, era isso que as tornava interessantes. Como as músicas. Algumas eram ruidosas e sem sentido, desagradáveis. Outras inspiravam medo, alegria, tristeza, sofrimento; assim era com as pessoas. E algumas eram tão bonitas e soavam tão bem, que pareciam completar o espírito. Se Anni precisasse comparar Johan com alguma música, seria o último tipo.


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