Enfim, A Liberdade escrita por Trouble


Capítulo 1
Paz




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Eram seis da tarde, e ele a levou para casa para mostrar a boneca falante que comprara para a filhinha, com quem ele prometera que brincaria muito. Aquela de cabelos cacheados, de olhos azuis e chamada Lídia. Aquela que era tão feliz e amada por ele. Aquela que não existia.

Ninguém saberia. Não adivinhariam nem tentariam, na realidade. Ela era tão invisível que era normal as pessoas passarem por ela sem nem olhar. Era tão pequena, miúda, com cabelos claros e pele alva, pernas finas e curtas. Também não queria chamar atenção. A roupa escura e o cachecol grosso e cinzento ao redor do pescoço, tentando não permitir que o frio e o vento a invadissem, evidenciavam isso. As bochechas eram pontilhadas de minúsculas pintinhas cor-de-rosa, que deixavam-na corada devido à invernia. Os lábios eram pequenos e sempre pintados - o único que ela se permitia destacar.

Mas os braços eram tão fracos, tão cansados, enquanto a bagagem que carregava era pesada. Todas as lembranças, todas as memórias que preferiria esquecer. Se pudesse, o teria feito.

"Vamos brincar de marido e mulher, está bem? Primeiro vamos tirar esse vestidinho, é claro."

Criara uma alergia um tanto singular. Não gostava de pessoas, temia e repudiava-as. Pudera. Todas as surras, os abusos que sofrera não a fizeram uma amante da socialização. Arrepiou-se, não devido ao frio, mas sim por causa dos pensamentos que a martelavam. E se não fui longe o suficiente. Ele pode me achar?, outro arrepio. Pensara em voltar para casa - quem não pensaria? Mas sabia que já tinha sido dada como morta. Sabia que ia ter que explicar tudo, recuperar tudo e aquilo era apenas terrivelmente cansativo. Conhecer o irmão que já tinha cinco anos - aquele que a substituira não a entusiasmava muito também. Ele era tão perfeito, tão completo e tão amado sem nunca ter enfrentado nada de ruim além de um tombo aqui e ali. Ela era tão quebrada, tão fodida que tinha medo de contagiá-lo com a sua podridão. Amava-o por ter seu sangue e o odiava pelo mesmo motivo. Além do mais, ela não pertencia mais àquele lugar, nunca voltaria a ser o que era antes.

"Ninguém vai acreditar em você. Pare de agir como uma criança, não vê o quanto te amo? Não vê o quando é sortuda por me ter?"

Ela finalmente conseguiu um táxi. Deu-lhe o endereço e fingiu que estava exausta, recostando-se no banco de olhos fechados, para não ter que conversar com o motorista durante aquela curta viagem. Como pararia de agir como criança? Foram onze anos sendo tratada como tal. E agora, com dezessete anos, não lhe era mais do agrado. Mesmo não a permitindo crescer, mesmo tendo permanecido igual desde os doze, todos enjoam de comer a mesma refeição todos os dias. E ele enjoou depois de um tempo também. Ela nunca pensou que teria como fugir. Mas de algum modo, ela não queria que a matasse. Tirara tudo dela, sua infância, suas oportunidades, suas opiniões. Não permitiria que ele tirasse sua vida.

Um dia viu uma chave enfiada na bolsa - só Deus sabia quanto tempo tinha permanecido lá - e um endereço e, sem se importar de quem seria ou o porquê, esta foi sua deixa. Fugiu dele.

"-Você me ama?

Ela não respondeu e ganhou um tapa forte no rosto.

– Você me ama ou não? - rosnou, impulsionando-se mais entre suas pernas e fitando o filete de sangue que corria no lábio. Tão frágil era a pele dela.

– Amo muito. - disse ela, numa voz calma.

E ele sorriu-lhe carinhosamente."

O automóvel estacionou na frente de um motel, que piscava luzes vermelhas e tinha uma aparência pobre. Mostrou as chaves para a recepcionista, que lhe sorriu e deu passagem. O quarto era mais decadente que a entrada do hotel. Era todo pintado de vermelho e o chão era revestido por um carpete de cor suja. Fedia a sexo e perfume barato, mas em motéis sempre era assim. E de móveis só tinha uma cama de casal e uma cabeceira. Por isso foi tão fácil perceber porque estava ali.

Havia uma folha, uma caneta e um revólver sobre a cama. Sobre o revólver estava um pequeno papel escrito: libertação. Sorriu pela primeira vez naquela semana. Enfim, era isso. Com um suspiro curto, pegou a folha e a caneta e começou a grafar. Depois de terminar, deitou-se na cama com suavidade, e pegou a pistola, destravando-a. Passaram-se minutos, horas. E então, o tiro. E então, a paz.

"Não sei para quem escrevo esta carta. Não sou ninguém, não tenho ninguém. Mas se alguém me encontrar, gostaria de dizer algo que eu ainda sei, algo que nem ele conseguiu fazer com que eu esquecesse. Eis aqui o que penso: ninguém é realmente feliz. Talvez alegre, uma hora ou outra. A felicidade é algo contínuo, estável e inabalável. Dizem que a felicidade em si, é concedido à poucos e por pouco. Uns segundos - minutos se der sorte. Quando uma euforia de tirar o fôlego te assalta, assim, sem mais nem menos. Um tempo tão precioso e tão inesquecível que você passa anos pensando naquele momento singular, naquele exato instante que tudo ao seu redor não parece nada além de nada. Que você se sente tão consciente do quão fantástica é a vida que a cabeça gira, o coração falha uma batida. Isso sim, é encontrar a felicidade. Algo tão grande e tão bom que chega a doer. E dói de um jeito maravilhoso.

Eu nunca a senti. Não tive tempo. Talvez alguém se pergunte: tão jovem, para que fazer isso?. A verdade é que não tem razão. Não existe um porquê, e é esse vazio que incomoda. Poderia viver da solidão. Poderia viver com a culpa, com a tristeza, com a raiva. Mas não com o vazio. Não com o nada, com o pensamento oco. Gostaria de pedir, se puder, que diga a ele que venceu. Fale que eu não aguentei a existência leve. Que ele me fez assim - me fez morrer aos poucos. Me despedaçou, milímetro por milímetro, não deixou nem um sopro de vida. Me sugou todas as forças e todos os sentimentos. Como se eu sangrasse para a morte e não a sentisse vindo. E que, em vez de ser nobre e perdoá-lo como dizem que o tal de Jesus fez, sacrificando-se pelo perdão dos pecadores, a minha morte é um lembrete para ele. Uma lembrança de que ele pode preparar as malas para o inferno. E que lá, quando eu o encontrar, vou fazê-lo sofrer como nunca ninguém o fez. E esse será meu gesto heroico, meu legado. Porque ele pode ter me dilacerado - mas eu o farei lamber minhas feridas."


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Notas finais do capítulo

Caso alguém não tenha entendido, é uma guria que foi vítima de pedofilia e que se mata por não conseguir suportar a "insustentável leveza do ser". Foi meio baseado no livro Living Dead Girl - que eu totalmente recomendo a leitura.



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