Olhos Estreitos escrita por ericalopes


Capítulo 17
17. Planos e Promessas




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Daryl estreitou os olhos timidamente, sua face demonstrava um sinal claro de timidez. Ele bufou disfarçadamente e continuou a andar. Pensei em atirar um porque em suas costas, fazer como ele fazia comigo. Mas o deixei caminhar e manter a certeza de que ele havia vindo por vontade própria. Assim como eu, que havia saído de lá por livre e espontânea vontade.

- Você precisa ir. – eu disse retomando os passos. – Não há outra saída para Portland.

- Como você sabe? – ele questionou.

- Eu andei  4 horas até aqui, e ainda não achei nada. A saída deveria ficar a menos de 2 horas do acampamento. Se não a encontrei ainda, não encontrarei mais. – afirmei desesperançosa.

Daryl continuou caminhando como se não tivesse me ouvido.

- Eu não quero você nisso. – disse exaltando a voz. – E antes que você me pergunte, é exatamente porque eu me importo com você.

Daryl olhou para trás sem parar de andar.

- Apenas continue caminhando. – ele mandou.

Eu suspirei fundo admitindo para mim que não conseguiria faze-lo voltar. Empunhei minha alma e caminhamos a passos iguais pelo trecho da rodovia que eu deveria ter tomado ainda na madrugada. Quando as cenas ruins se formaram novamente em minha cabeça eu senti um vazio nos olhos, como se não houvesse mais lágrimas para brotar. Ou talvez eu estivesse sendo forte interiormente e me forçando a acreditar que nada havia acontecido. A falsa esperança que eu repudiava em Hanna, Glenn e nos outros agora crescia em mim.

E então era verão novamente. O sol ardia e queimava o topo da minha cabeça a cada novo passo.

- Você está bem? – perguntou Daryl enquanto eu mexia o pescoço que doía.

- Não muito. Mas posso continuar. – eu relutei. Ele me deixou passar a sua frente e me observou caminhar alguns metros certificando-se de que eu poderia mesmo fazer aquilo por mais tempo.

- Decidiu voltar? – disse sorrindo ao vê-lo parado. Ele e seu semblante sempre fechado caminharam para a minha frente. Eu apenas os acompanhei. Exausta.

Passávamos pela entrada de um parque natural quando avistamos algumas centenas deles sobre as grades que cercavam o lugar. Estavam presos lá dentro e assim que nos avistaram passaram a chacoalhar a grade ferozmente.

A tela parecia velha e frágil a cada balançar feito por eles. Daryl observou-os enquanto caminhava. Eu acelerei os passos para caminhar ao seu lado. Não pude negar o medo dentro de mim. Corpos magros e vazios, olhos fundos e secos, alguns até mesmo sem. Crianças, jovens, adultos e velhos. Muitos braços passando por entre os fios tentando nos alcançar

Daryl fez um movimento rápido. Sua besta foi apontada para o lado esquerdo do parque onde a grade estava arrebentada e alguns walkers caminhavam para nós.

- Precisamos sair daqui, rápido! – Daryl e eu corremos pela estrada enquanto mais e mais daquelas coisas caminhavam lentamente em nossa direção. Embora lentos eram muitos, e muitos daqueles também significava perigo. Daryl entrou na mata e eu o segui imaginando o porque de seguirmos por um caminho que nos levaria a morte caso eles nos encontrassem.  Caminhamos por um bom tempo até um riacho.

- Porque isso? Estamos mais presos aqui do que estávamos na estrada. – eu perguntei a ele.

- A água disfarça o cheiro. – Daryl empunhou sua arma sobre a cabeça e colocou seu corpo dentro da água calma do rio.

- Ok, mas tenha cuidado. Eles estão em todos os lugares, inclusive aqui. – disse observando uma pequena movimentação na água até então calma. Saquei a Colt do bolso lentamente esperando que um daqueles monstros se levantasse para cima de Daryl. Ele olhava atento para o mesmo lugar que eu enquanto fazia o caminho de volta para a terra.

Eu estava certa. Um grande e deformado zumbi jogou seus braços inchados e decompostos para fora da água em direção a Daryl. Seus dedos caíram assim que entraram em contato com a firmeza da pele dele. Eu atirei imediatamente. Sua cabeça não se fez em mil pedaços, estava num estado de decomposição tão avançado que pareceu uma grande tigela de sopa se desfazendo em meio a água.

- Muito bom. – ele disse saindo da água e olhando os restos nojentos do animal se espalhando sobre ela. – Você aprendeu.

Como numa explosão de intuição, eu soube. Eu tive certeza. Então eu sorri e caminhei para perto dele.

- Foi você. Você pediu a Carl que me ensinasse a atirar.

Daryl se desvencilhou do meu toque em seu ombro e apanhou sua besta do chão a colocando sobre as costas. Me olhou estranho, e estreito.

- Precisamos ir. Iam nos achar pelo cheiro e agora pelo barulho. Mergulha. – ele fez uma pose de espera e pareceu não ter dado ouvidos ao que eu acabara de falar. Mas não me importei, não precisava de uma confirmação. Sabia que era ele. Apenas fiz o que ele pedira, me desvencilhei das armas e mergulhei sobre o rio sentindo a temperatura gelada da água penetrar minha pele e meus ossos. Quando minha cabeça retornou a superfície ele estava com a mão estendida para mim, pronto para me ajudar a voltar para o seu lado. Eu agradeci segurando sua mão e quase que propositalmente colei meu corpo ao dele como naquela noite na floresta. Provoquei um novo impacto. Ele me olhou no fundo dos olhos, e eu sorri para sua íris. Ele me soltou e continuou a caminhar com seu olhar estreito, e eu continuei a segui-lo com a minha certeza.

Caminhamos rapidamente por cerca de vinte ou trinta minutos até avistarmos um pequeno rancho sobre uma área plana.

- Podemos ficar lá essa noite. Depois voltamos. – disse Daryl.

- Como assim voltamos?

- Voltamos para Etowah. E de lá seguimos para Portland. – definiu.

Eu me aproximei de Daryl calmamente procurando palavras entre os passos. Eu olhei para o pequeno rancho branco e tentei encontrar naquela cor a clareza que eu precisava para fazê-lo entender.

- Eu não vou. Não vou sair daqui, nem muito menos irei a Portland. Me chame de teimosa, me chame de criança mimada. Mas me deixe fazer a minha escolha. Eu quero que você volte pra lá, pegue suas coisas e viva. – eu recitei olhando em seus olhos e ignorando meus sentimentos por ele. Isso era parte do altruísmo que eu estava começando a construir.

- Não. – sua voz saiu com total definição de palavra.

- Porque você faz isso? Porque veio até aqui e agora não quer ir embora? Porque? – eu perguntei começando a me descontrolar.

Daryl me ignorou e continuou a caminhar.

Você prometeu. – eu disse fazendo-o parar. – Prometeu que não fugiria de mim, assim como eu prometi que não fugiria de você.

- Estou tentando cumprir minha promessa não indo embora.

Eu fiquei parada um tempo vendo sua silhueta diminuir gradativamente. Senti com muita certeza de que convencer Daryl a me deixar seria difícil, o que deveria ser uma grande prova de algum grande sentimento, havia se tornado um grande problema.

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Assim que nos aproximamos dez metros da casa ouvimos o ruído familiar. Daryl fez sinal para que eu ficasse aonde estava e vigiasse enquanto ele entraria e faria o “trabalho sujo”. E fez. Um sinal para que eu o acompanhasse. Entramos no lugar. Pequeno e extremamente confortável assim como a casa que eu e Carl havíamos invadido em Etowah. A semelhança me fez ficar atenta as situações que poderiam se repetir por ali. Me coloquei a frente de Daryl na hora de subir as escadas e varrer o segundo andar. Graças a Deus nada. Não satisfeitos varremos cada canto, armários, banheiros, procuramos buracos no chão. Nada. Depois de quinze minutos podíamos respirar aliviados.

Eu estava na varanda observando a imensidão do lugar. Éramos duas formigas no meio de um grande nada. Um ponto branco mergulhado num mar verdade. Uma linda paisagem para um quadro, eu diria.

- Precisamos colocar madeira nas janelas e nas portas. – disse se aproximando.

- Acha que sobrevivemos essa noite? – eu perguntei afim de confronta-lo.

- Claro. – respondeu como se fosse óbvio.

Eu o ajudei na tarefa árdua de fechar todas as portas e janelas. Encontramos arames farpados e os colocamos no hall de entrada e um pouco ao redor das janelas. O sol já se escondia muito longe quando terminamos.

Entramos e colocamos uma grande pia e uma estante sobre a porta principal. Dei meu melhor suspiro de alívio mas sabia que por dentro ainda havia muito medo.

- Lembra minha casa. – ele disse quebrando o silêncio. Sua expressão não era das melhores.

- Podemos nos mudar se você quiser. – brinquei tentando diverti-lo. Daryl continuou com o mesmo olhar e com a mesma expressão. Pensei em alguma outra coisa pra dizer mas resolvi me calar. Poderia até piorar tudo.

Fui para a cozinha e encontrei sorte, muita sorte. O gás ainda estava cheio e o fogão não era elétrico. Mais um suspiro aliviado e dessa vez completamente sincero.

- Macarrão ou ovos? – eu perguntei exibindo para Daryl vários pacotes de macarrão e centenas de ovos numa geladeira.

- Os dois. – ele sorriu gratificado. Pela primeira vez na vida eu havia visto um sorriso verdadeiro vindo de Daryl.

Ele se sentou a mesa e olhou ao redor. Eu ainda estava presa em seu sorriso embora não estivesse mais em seu rosto. Aos poucos minha atenção foi mudando o foco, olhei para onde seus olhos olhavam. Ele observava aquele cômodo com atenção. Era pequeno, muito. E eu já devo ter dito o quanto amo casas pequenas. As pessoas ficam próximas, e ali eu estava próxima de Daryl e em algum momento, também me aproximei das lembranças em minha cabeça. Na fazenda apenas a cozinha era pequena, e era o lugar onde eu passava mais tempo além do jardim. Era onde papai e mamãe ficavam, mamãe cozinhando, papai lendo sua revista mensal de livros. Meu pai era um leitor legítimo. Tinha uma coleção deles. Um tanto quanto curioso para um fazendeiro. Mas éramos assim, com nossas peculiaridades que só alguém que tomasse café todas as manhãs em nossa mesa saberia.

- Gosto de casas pequenas. – eu disse quase que involuntariamente enquanto pensava. – Essa por exemplo é perfeita. Pequena e bem arrumada.

Eu cortava algumas batatas. A medida que as lembranças vinham o ritmo das minhas mãos diminuíam. Talvez aquela casa fosse minha um dia. Pois era como eu sempre imaginava. De repente eu estava presa num pequeno cubículo onde eu sempre havia imaginado estar, tão perfeito quando eu idealizara nos anos que antecederam a minha chegada ali. Mas ao mesmo tempo eu estava no lugar errado. Como se um mundo paralelo tivesse invadido o outro. Beliscões e feridas se abriam me informando que eu não teria uma casa daquelas e nem viveria meus sonhos.

Apenas corte as batatas, coma e tente sobreviver. Sem tempo para sonhar.

- Gosta de batatas? – eu perguntei voltando a realidade.

- Claro. – ele respondeu. Eu continuei meu serviço enquanto Daryl estava sentado a mesa. Eu o vi levantar depois de alguns segundos e caminhar até a geladeira a procurar por algo.

- Têm cervejas no congelador. Com muita sorte estão vencidas a alguns dias apenas. – sorri para ele que não se importou com a minha dica e desceu até a última gaveta dali e sacou um saco de verduras. Despejou-as sobre a mesa e escolheu dentre elas duas cenouras e uma beterraba. Tomou seu assento de volta e sacando a faca da cintura começou a limpa-las. Eu sorri ao ver a cena.

- Amor, pode fechar a porta da geladeira por favor? – ironizei. Daryl olhou para trás e ao ver a geladeira aberta deu um pequeno empurrão com a ponta da faca. Me olhou sério e eu apenas sorri não me deixando intimidar por aqueles olhos que já eram familiares.

- As coisas que eu digo... – ele pausou escondendo o olhar. – Não são ofensas diretas, eu não quero magoar ninguém. São só como palavrões, coisas que você diz quando está nervoso. Eu sou um idiota.

Eu vi um frágil Daryl sentado a mesa rascunhando um pedido de desculpas enquanto batucava a madeira com a ponta da faca. Daryl era tão sútil quando queria ser. Fora um belo momento ao qual qualquer pessoa que o conhecesse gostaria de ter presenciado. Um simples e sincero pedido de desculpas.

- Eu entendo. – respondi com sinceridade enquanto sorria para ele e toda sua confusão.

- Acha que ele ainda está vivo? – disparei depois de lembrar de Dog.

- Claro que está! Que pergunta idiota. – Daryl respondeu novamente como se aquilo fosse extremamente óbvio.

Senti aquele chacoalhão interno criar lágrimas nos meus olhos. Peguei a porção de batatas cortadas e joguei-as dentro da água.

- Eu estava aqui pensando. Como você quer que sua vida seja? Digo, ainda mantém os mesmos planos que tinha antes de tudo começar? – aquilo era uma tentativa de trancar minhas dúvidas e dores no fundo do armário, para que nem eu nem Daryl sofrêssemos com ela.

- Uma vida normal. Eu não sei. – ele respondeu.

- Defina. – eu pedi.

Daryl me olhou por um instante. Eu me encostei na pia, cruzei os braços e esperei que ele começasse.

- Quero voltar pra onde morava. Viver na fazenda. É um lugar grande, sabe? Bem grande, dá pra começar um comércio legal de leite e arroz por lá. Eu não quero muita coisa, só quero levar uma vida perto do normal. Porque normal ela nunca mais será. – ele definiu.

- Sem filhos? Sem uma esposa? Só você e você? – eu confrontei inocente.

- Eu não sei. – disse depois de alguns segundos. – E você?

- Uma casa pequena como essa. Um jardim gigantesco. 2 garotos e 1 garota e não me pergunte o porque. 2 cachorros e uma ninhada de filhotes. Felicidade. Risadas e álbuns de fotografia. – e você, como eu gostaria ter dito isso.

Daryl sorriu e retomou seu serviço com as cenouras.

- Mas porque 2 garotos e 1 garota? – perguntou. Eu ri baixo com a dúvida dele.

- Eu disse, também não sei o porque. Não vou mentir, parece um sonho bem distante e apagado agora. Mas eu vou mantê-lo aqui. Como meu único fio de esperança. Talvez eu volte pra essa casa algum dia e more aqui. É algo bom pra se pensar agora. – finalizei.

Daryl concordou com a cabeça enquanto trazia as verduras para a panela de água fervente ao meu lado. Eu o observei caminhar. Observei seu corpo se movimentar até próximo do meu. Pude sentir o calor a 4 palmas de distância. Lutei contra meus instintos. Apertei a madeira entre as mãos e me ordenei que ficasse aonde estava. Disfarcei tudo com um sorriso.

- Vou tomar um banho. – disse fugindo pelo corredor. – Poderia desligar a panela daqui a 10 minutos por favor?

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Subi as escadas atropelando os passos. Eu não sei ao certo o que desregulou tão repentinamente a minha respiração. Os olhos, a boca, os braços? Ou tudo, acho mais correto.

Não podia trocar de plano, não podia manter Daryl ali participando de uma escolha que eu havia feito. Não podia conduzi-lo a aceitar a condição solitária a qual eu me colocara simplesmente por ama-lo e quere-lo junto a mim. Era egoísta demais. E eu, estava sendo altruísta. Ou tentando ser.

As gavetas da pequena cômoda marrom pareciam grandes cofres. Não abriam nem ao mais brusco dos puxões. Levei alguns minutos de delicadeza até conseguir abrir alguma delas por completo. E tamanho trabalho teve um bom resultado, abri a gaveta de peças femininas. Impressionei-me, devo admitir. Apenas ceda e tecidos caros ali. Rosas, corais, azuis e brancos. Cada nova peça descoberta me colocavam ainda mais brilho no olhar. Há muito tempo eu não tinha tempo para admirar coisas assim, de mulher. De me sentir uma, talvez.

Fiquei encantada com uma camisola rosa que encontrei no fundo da gaveta. Seda puríssima, com detalhes em renda nas costas. Eu me dirigia ao banheiro pronta para usa-la quando lembrei que Daryl estava ali. E embora meu corpo implorasse pelo dele, não era uma boa idéia exibi-lo assim. Voltei a cômoda e a guardei com extremo pesar. Peguei um pijama bobo e sem muita coisa, porém aparentemente confortável.

Eu sai do banheiro e caminhei até Daryl que estava sentado numa cadeira próxima a janela. Apenas aquela não tinha madeiras impedindo a visão. O quarto era pequeno, somente uma cama. Um abajur quebrado sobre um pequeno criado-mudo e alguns poster’s com imagens de Paris. Eu olhei tudo aquilo e chutei ser o quarto da caçula, ou da adolescente que acabara de entrar na faculdade.

- Pra você. – eu disse me aproximando e colocando sobre seus ombros alguns pares de camisa e calça que havia encontrado no banheiro.

Daryl me olhou dos pés a cabeça. Disfarçou assim que seu olhar chegou ao meu rosto.

- Obrigado. – disse timidamente. – A comida estava ótima.

- Estava? Sério, você comeu tudo? – eu perguntei surpresa.

- Claro que não. Ainda têm um pouco. – respondeu irônico.

Eu fingi um suspiro aliviado. Daryl bebia uma das garrafas de cerveja que eu avisara que haviam na geladeira.

- Está boa? – perguntei curiosa.

- Horrível! – ele respondeu com uma breve careta.

Eu sorri para ele e me preparava para descer até a cozinha quando ele me interrompeu.

- Gosto do seu cabelo. – considerei a possibilidade de Daryl ter bebido demais. Mas ao olhar a garrafa em seus mãos constatei que nem metade dela havia sido entornada. Então sorri um milhão de vezes sem nem me dar ao trabalho de disfarçar.

Encarei-o um pouco e depois desci, gargalhando baixo a minha felicidade pelas escadas. Embora o som não ecoasse pela casa eu podia ouvir o barulho da minha felicidade dentro de mim.

Agarrei a panela com a comida, não procurei pratos. A primeira garfada foi misturada ao meu sorriso totalmente aberto e ridículo. Eu passei a mão pelos meus cabelos e os cheirei lenta e profundamente. Sorri, sorri e sorri. Eu também amava meus cabelos, e agora eu os amava ainda mais.

Fui até o congelador, saquei duas garrafas da cerveja e subi com a panela para o quarto.

- Eu estava indo buscar outra. – disse ao me ver entrar. Eu joguei sobre seu colo uma garrafa e abri a outra facilmente com os dentes.

" - Quantas vezes meus olhos já haviam falado por mim? Quantas palavras foram ditas no surdo de um batimento cardíaco totalmente acelerado por uma silhueta? Quantas vezes eu já havia mordido a língua de nervosismo? E quantas vezes eu havia cavado tão fundo procurando somente uma resposta e fracassadamente voltado a superfície sem ela? Quantas?"

A língua começava a fermentar. Procurei dentro da garrafa algo que pudesse indicar que a bebida estava em péssima qualidade, mas nada. Parecia-me perfeitamente normal. Então só o gosto tornando-se amargo não fora o suficiente e eu continuei com os goles. Cada um fechava um pensamento, ou abria outro. Não sei.

Céu e temperatura perfeitos para tomar decisões e uma boa cerveja. Ou quase boa. Eu tentei de inúmeras formas me forçar a situação, uma fila de argumentos pesados sentando-se em cima do meu egoísmo, mas ele os levantava como se fossem penas. A luta era árdua, sempre fora, o que eu queria era sempre mais forte do que eu precisava. E eu precisava ficar longe de Daryl enquanto também gostaria muito de pular em cima dele  beija-lo da forma mais ensandecida possível.

Eu o vi movimentar os ombros e as costas, como se algo o estivesse incomodando. Ele viu meu olhar e respondeu a pergunta que ele fazia.

- Dores. – disse estreitando os olhos a cada movimento. Eu o chamei delicadamente para perto de mim com um movimento de mãos. Ele titubeou um pouco mas acabou cedendo sentando-se no pequeno espaço de colchão a minha frente.

Tomei bastante ar, quase todo o que havia ali. Algumas mechas caiam para baixo de sua nuca enquanto ele se curvava a minha frente. Eu coloquei minhas mãos sobre ela delicadamente, senti a maciez de sua pele ferver em meus dedos. Um choque desceu bruscamente por meus braços até a ponta dos meus pés. Eu quase fechei os olhos para senti-lo, mas me contive. Passei por seus ombros, apertei-os delicadamente. Estavam duros como rocha, tensos. Cuidei daquela parte com muita destreza. Estimulei os dedos ali por longos minutos explorando cada milímetro de pele. Senti que Daryl estava mais relaxado e pouco a pouco se curvava para frente.

Seus ombros ficaram marcados pelo movimento dos meus dedos. Círculos vermelhos brotaram em sua pele branca. Eu desci as mãos por suas costas disposta a continuar meu trabalho, mas ele recuou bruscamente se levantando da cama. Seu olhar assustado, acuado em um canto em meio a tropeços.

- Eu vi. – eu sussurrei baixo. Eu olhei o mais fundo que podia em seus olhos tentando passar a ele a paz da qual precisava.

- E eu não vou perguntar nada. Só vou estar aqui se quiser falar. – Daryl involuntariamente passara a segurar sua camisa de forma que colasse em suas costas, impedindo a mim de ver as terríveis marcas que ali estavam. Eu demorei um pouco, busquei delicadeza e novamente o chamei para perto de mim. Ele demorou um pouco mais que da primeira vez, mas veio. Calado e recuado. Levou o último gole da cerveja a boca.

Eu o imitei alcançando a minha que estava no pequeno criado. Sorri para ele que manteve a feição frágil e desconsolada. Bebi meu gole, entreguei a garrafa a ele que seguiu com a bebedeira.

- Meu Deus, isso não é bom! – eu disse após voltar ao meu lugar e perceber que meus olhos começavam a duplicar imagens.

- Não está tão ruim. Tá começando a ficar fermentada. – ele respondeu sem saber do que eu falava.

- Piolhos. – eu disse soltando um longa risada quando ele passou a mão pelos fios queimados bastante assustado. Ao me ver rindo ele sacou a brincadeira.

- Idiota. – xingou baixinho me fazendo corrigir o meu tom alto.

Eu passei a palma das mãos delicadamente por suas costas, senti as elevações das cicatrizes desenharem minha palma. Massageei cada canto com paciência, como se pudesse fazer aquilo por toda a vida. E poderia. O calor dos nossos corpos começavam a se igualar começando pela ponta dos dedos.

- Eu não sei se ele era um cara bom. – Daryl contornava a boca da garrafa com os dedos enquanto liberava os pensamentos, quebrando o silêncio entre nós. Eu mantive as mãos atentas ao seu corpo e os ouvidos a sua voz.

- Eu não tenho nenhuma explicação pra o que ele fazia comigo e com Merle. Não sei se tivesse uma eu entenderia. Eu gostaria de odia-lo, mas eu simplesmente não consigo. São coisas horríveis, coisas que eu não gostaria que nunca acontecessem com ninguém, ainda mais com uma criança como eu era quando ele fez todas elas de uma vez. Com um espeto de churrasco. E uma faca de cozinha. Mas depois de um tempo são somente marcas, não doem mais. São só pequenos machucados morando na minha lembrança. Como se eu tivesse caído de bicicleta ou algo assim.

Daryl falava lentamente, com algumas pausas longas entre as palavras. Um misto de álcool com bloqueios emocionais. Senti dor, não nego. Imaginei tudo aquilo que ele dizia com uma riqueza de detalhes bruta. Então eu suspirei fundo, porém devagar para que ele não se sentisse perturbado pela minha reação.

Eu subi minha mão direita pelo centro de suas costas, senti as curvas de sua espinha. Na nuca, espalmei os dedos e eles entraram delicadamente por entre seus fios de cabelo. Brinquei com eles vendo-os dançar em minha mão. Lisos e agora, um bocado escuros. Senti a sensação nas mãos, a sensação de ter Daryl sobre elas. E era algo totalmente inexplicável.

- Eu acho que agora que quase tudo acabou, temos a opção de escolher o que morre também. Nossos pais morreram, nossos amigos, casas, lugares, um monte de coisas. Acho que as lembranças também podem ser mortas. Se tudo acabou, porque não as lembranças? – eu embora mergulhando cada vez mais naqueles fios e perdendo alguns por centos da visão a cada movimentar de cabeça, podia ainda raciocinar o suficiente para dizer algo a ele.

You have a gun in your hands
You can kill the whole world dear
 You can shoot in any direction, inside your head
 And then walk to a bar, drink some tequila and back without bullets.
 Because now you are free like a wolf, so, so free like a wolf.*

Eu cantei assim, de olhos fechados e totalmente entregue a melodia. Sentindo o mundo girar lá fora enquanto meus dedos enroscavam cada vez mais no cabelo dele. Sorri comigo mesma quando as lembranças tocaram as notas daquele refrão que eu conhecia muito bem. Tio Benjamin a cantava todo dia quando chegava do trabalho. Não se reconhecia a sua chegada de outra forma a não ser pelo canto que  era ouvido desde o começo da rua.

Eu abri meus olhos lentamente. Daryl mantivera os seus fechados enquanto a ponta dos meus dedos tocavam sua nuca lentamente. Ele tinha uma expressão calma e deliciada pelo meu carinho. Um sorriso pequeno no canto dos lábios, que vez ou outra se alternava conforme a intensidade do toque.

Daryl levou suas mãos para trás, até a altura da onde as minhas estavam. Em sua nuca. Sua palma tomou meus dedos com facilidade. Me senti tão pequenina e frágil ao assistir um pouco de mim sendo escondido com tanta facilidade.

Fora como ele tivesse colocado fogo em meu braço. Ele abriu os olhos e captou minha face. As luzes do cômodo se apagaram e apenas seus olhos brilhavam. Num azul incandescente e mágico. Um tempo incerto correu até que ele desloca-se os lábios.

- Você me deixa confortável. Obrigada por isso. – fiz milhares de coisas ao mesmo tempo. Sorrio, chorei, tremi, esquentei, ri, e tudo isso mergulhada naquele pedaço de oceano estreito. Daryl era a imagem da perfeição. E eu estava a admira-la a longos períodos. O quanto isso era bom? O quanto ele era meu? Eu não sabia. Eu apenas o tinha e o teria por um tempo ilimitado talvez.

- Você é excelente. – era um dos termos apropriados, mas não o que meu coração queria usar naquele momento. PERFEITO. Era esse o termo que queria saltar de minha boca enquanto os dedos de Daryl se entrelaçavam aos meus num carinho sútil e quase imperceptível. Nossos olhos estavam grudados como imãs, um sobre o outro. Como numa brincadeira de encarar. Onde ambos estavam ganhando, e onde eu estava me perdendo.

Percebi suas íris se movimentando, caindo sobre o canto interno e branco dos olhos, fitando um pouco abaixo da linha dos meus olhos e chegando até a minha boca. Eu fiz o mesmo. Meu coração disparou pelo que estava por vir. Certeza. Me senti como uma criança. Tirei coragem do álcool contido nas veias e disse “é agora!”.

O barulho do vidro quebrando-se em dezenas de pedaços me empurrou de volta a realidade bruscamente. A garrafa que estava sobre a cômoda caira no chão. Meu coração que já batia acelerado, fazia meu peito esquerdo se movimentar para fora do corpo. Daryl agarrou minha mão assim que o barulho foi ouvido. Meus dedos ficaram travados entre os seus.

- Droga! – ele disse se levantando e olhando um pouco do líquido no chão. Ele tirou sua camisa e se pôs a limpar imediatamente. Eu olhei a cena e me dividia entre o susto e a beleza do corpo de Daryl.

Me levantei e retirei de cima de uma cadeira uma camisa longa e preta e a joguei aberta sobre as costas de Daryl. Ele se levantou e se encaixou dentro do tecido preto que caira muito bem pra ele.

Eu fechei a janela. Fazia frio lá fora.

- Posso fazer uma pergunta? – Daryl perguntou.

- Você já fez uma. Mas pode fazer outra. – eu brinquei de braços cruzados encostada a janela.

- Porque não ficou com o garoto? – seu rosto tinha uma expressão extremamente curiosa. Porém muito particular.

- Sou sincera. Não o amava, era apenas gratidão. Não se retribui amor com gratidão. Isso é feio e injusto. – respondi. Minhas unhas estavam na minha boca, denunciando meu nervosismo ao ter que responder aquilo. Eu o olhei colocando um ponto final sútil naquilo que poderia ser o inicio de uma conversa e ele pareceu ter entendido.

- Vou dar uma olhada lá embaixo. – palavras, frases e perguntas me ligavam automaticamente a lembranças. Eu sei, acontece o tempo todo. Mas naquele momento específico eu tentava de todas as formas manter o baú de lembranças recentes fechado. Pois estas além de me fazerem lembrar, também me faziam duvidar da sobrevivência do grupo. Me retirei do quarto a passos rápidos, tentando me desvencilhar das armadilhas que meu subconsciente armava.

Desci as escadas devagar me rendendo as lembranças. Caminhei pelos dois pequenos cômodos, cozinha e sala. Olhei pelas janelas. Nada além de mim, Daryl, poeira e silêncio. Fui até a geladeira e busquei as duas últimas garrafas de cerveja que ali estavam. Teria sido mesmo um beijo caso a droga da garrafa não tivesse caído? Aquele olhar significava algo além de um olhar estreito? Daryl era difícil de decifrar quando não estava falando. Seu rosto não ruborizava. E o único jeito de decifra-lo seria através de seus olhos. Mas o que poderia fazer se toda vez que a maré do seu oceano azul subia até os meus pés eu me afogava por inteira?

Carreguei a garrafa junto ao peito. Fiz-me o favor de tropeçar em uma das cadeiras para certificar-me que embora fermentada, a cerveja havia feito um nobre efeito em meu organismo. Subi as escadas sem cambalear, mas com um pouco mais de esforço no olhar do que outrora.

Ao chegar ao quarto, vi Daryl arrumando a cama. Diminui os passos até chegar perto dele enquanto observava o trabalho que havia feito. Ofereci uma garrafa de cerveja, a qual ele negou colocando sobre um canto vazio do quarto. Eu sorri sem me sentir ofendida e me deitei. Apenas uma cama. A outra era infantil e eu muito menos Daryl caberíamos nela.

- Você me fez uma pergunta. Posso fazer outra? – eu não pude controlar, embora muito quisesse. A minha curiosidade era bem maior que o meu pudor naquele momento. Me vi receosa por um lado e pelo outro morria de uma curiosidade escancarada.

- Porque veio? – eu libertei as palavras junto com a curiosidade que me seguia desde o meio dia daquele dia. Meu estado me impedia de voltar atrás e dizer para que ele esquecesse o que tinha acabado de ouvir. Eu tinha uma certeza formada, mas eu precisava confirma-la.

- Me importo com você. Não posso? – Daryl pareceu bravo e incomodado. Se outrora ele dissera que eu o fazia sentir confortável, agora eu havia o feito contradizer sua afirmação.

- Não precisa de preocupações. Apenas de viver. – retruquei.

- Você é tão estúpida! Eu vim, eu salvei você. Agora cala a boca e vai dormir. – eu já disse isso a vocês. A agressividade de Daryl não me fazia sequer cócegas. Naquele momento em que meu sangue parecia apenas um ponto vermelho em meio a um poço de álcool, ela parecera apenas ruídos.

- Não fuja. Você prometeu. – Daryl saia violentamente pela porta quando eu na tentativa de o impedir, lembrei da promessa que havíamos feito.

- Eu disse, não vou obriga-lo a dizer nada. Só saiba que estarei aqui. Sempre. – se Daryl guardaria palavras, eu esgotaria todas as minhas. – Desculpa. – pedi sinceramente por tê-lo intimado de certa forma.

Eu deitei na cama fofa e confortável até então. Pois quando passei a mão direita por baixo do travesseiro e senti o desconforto bater. Não fisicamente, mas mentalmente. Por não ter Daryl ali, quando aquela era a oportunidade de tê-lo junto a mim.

- A cama é pequena. Posso dormir aqui no chão? – Daryl estava na porta novamente. Eu ergui um pouco a cabeça até poder vê-lo.

- Claro. – eu enxugava aos poucas lágrimas que haviam lavado meu rosto nos minutos anteriores. Algumas tinham o gosto de Glenn, outras o de Ellena, algumas de minha mãe e de minha irmã. Dei espaço no colchão para Daryl. Mas ele se deitou no chão aonde estava seu amontoado de roupas.

- Você não vai dormir aí. Está frio! – eu disse quase gritando de tanta surpresa ao ver a cena.

- Fiquei perdido na mata durante 10 dias. Sozinho. Já dormi em lugares piores que esse. – Daryl se encolhera virando sua face para a parede impedindo que eu a visse. Seu corpo todo se relaxou e eu senti sua respiração seguir um ritmo sonolento. Os pelos de seus braços, iluminados pela luz da lua vinda da janela denunciavam o frio em seu corpo.

Eu me levantei. Sem pensar muito. Pois se tivesse pensado, jamais teria feito o que fiz.

Eu apenas me deitei ao seu lado. Joguei a coberta já aquecida sobre nossos corpos. Passei as mãos por cima de seu corpo e colei o meu o máximo possível ao dele. Senti o calor do meu corpo se transpor para sua pele fria e rígida. Fechei os olhos e espantei de mim o medo.

- Você não está sozinho agora. – sussurrei em sua orelha.


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Notas finais do capítulo

Tradução:
Você têm uma arma em suas mãos
Você pode matar o mundo todo se quiser, querido
Você pode atirar para dentro da sua cabeça
Caminhar até um bar, tomar uma tequila e voltar sem suas balas
Porque agora você é livre como um lobo, tão, tão livre como um lobo.