43 - A Divindade Perdida 

Percy meditava de olhos fechados no topo do farol de metal que agora alocava a mais nova oficina de Dédalo. A paisagem congelada estava se tornando mais severa e tempestuosa, os flocos de neve caiam incessantemente, penetrando nas camadas da roupa do homem e molhando toda a superfície do farol. Ventos gelados se confundiam e se colidiam de todas as direções, como se os deuses dos ventos estivessem pelejando uns contra os outros.

O filho de Poseidon mantinha as mãos escondidas nos bolsos das calças cargo que ele tinha encontrado num dos armários de Sextus, os dedos circulavam e tateavam freneticamente a superfície da Pedra de Onfalos, como se ela fosse desaparecer novamente. Apesar de poder viajar a qualquer lugar, Percy estava hesitante em pensar na famosa cidade de Alexandre e sua biblioteca. 

Percy ouviu passos pesados ecoarem no metal dos degraus da escada vertical que dava acesso ao terraço, ele não precisou abrir os olhos para saber de quem se tratava. 

O calor tenro e familiar de Annabeth fez os pelos do braço de Percy se eriçarem, a garota se postou ao lado dele, encarando o fiorde e suas águas escuras se revolverem com violência e se chocarem com as pedras pontudas da modesta enseada.

—Precisamos ir, Percy — ela pousou a cabeça no ombro dele sem se importar com a camada molhada e gelada. 

—Tenho medo, Annie — o homem suspirou imóvel — Um dia nossa sorte vai acabar, e você pode não voltar. 

Annabeth esticou a mão e puxou o rosto de Percy para perto. Ela o fez abrir os olhos e pôde ver o brilho melancólico que tomava conta das órbitas esverdeadas. 

—Você não está sozinho, se perdermos, faremos isso juntos — Annabeth colou as testas dos dois e respirou fundo — E jamais desistirei de você, nem que tenhamos que vagar pelo poço do abismo ou enfrentar todos os deuses, faremos isso juntos também. 

Percy segurou a mão de Annabeth e a aninhou em um abraço apertado. 

—Juntos — Percy parou de mexer com a Pedra no bolso — Vamos. 

O homem se foi em direção à escada e desceu cuidadosamente, eles abriram a escotilha que dava acesso à Oficina e se abrigaram dos ventos gélidos. 

O choque de temperatura fez os pelos do braço de Percy se eriçarem mesmo debaixo de 3 camadas de roupas, Sextus estava no canto da sala se esquentando frente à lareira de pedras negras lustrosas, as chamas iluminando seus olhos.

Os dois semideuses se aproximaram, Annabeth notou algo no colo de seu meio irmão, ela sentiu um calafrio nas costas quando conseguiu identificar perfeitamente a silhueta de uma pistola .45 Colt. Ela logo foi repousando a mão sobre a bainha de sua faca de bronze e trocou um olhar sorrateiro com Percy.

O filho de Poseidon deu um pigarro ao notar que Sextus não viu que eles o encaravam receosos. 

—Obrigado por nos ajudar novamente, Sextus — ele disse e estendeu a mão para o velho semideus — Já estamos de partida. 

O homem ainda encarava as chamas brancas dançando na lareira — Antes de irem, um presente. 

Sextus se levantou e virou-se para Percy, ele estendeu a arma de fogo com as duas mãos. Ela era exuberante e assustadora, dona de um metal preto escovado e com inscrições em grego antigo, empunhadura de policarbonato e alças de mira serrilhadas. 

Percy ergueu uma sobrancelha desconfiado — Já temos armas o suficiente, e você me ajudou a recuperar a Pedra de Reia. 

—Se é a letalidade que o preocupa, sugiro que fuja e se esconda do abismo, pois ele jamais terá misericórdia caso tenha a chance de matá-lo. Além disso, eu embebi as munições no Metal de Têmis, sendo assim elas servirão somente para tentar recobrar juízo à mente dos envenenados. 

Percy ainda demorou um momento para pegar a arma das mãos de Sextus, ele segurou com cuidado, como se ela fosse radioativa. 

—Outra coisa, eu usei toda a amostra que você me trouxe — Sextus se voltou novamente para as chamas da lareira — Faça os tiros valerem a pena. Use somente em último caso.

Sextus mexeu nos bolsos do avental e retirou mais dois carregadores compatíveis com a pistola Colt e jogou-os para Percy — Munição convencional, para mortais. O lugar aonde estão indo é bastante hostil ao nosso panteão, não hesite em usar a arma. 

Percy torceu o nariz relutante, mas pegou o presente de Sextus. 

—Algum conselho pra viagem? Algo que se lembre do seu tempo. 

Sextus coçou a barba e se sentou na poltrona, ele fez sinal para Percy e apontou pro sofá ao lado. 

Os dois semideuses se sentaram de frente para o velho instrutor de esgrima do Acampamento. Ele mantinha aquele mesmo olhar melancólico ao alisar os pelos grisalhos devidamente aparados, as chamas iluminavam seus olhos cansados.

“Existe um boato, uma lenda antiga de Alexandria. Uma seita que cultuava Serápis, uma divindade antiga e sincrética adorada pelos povos helênicos habitantes do Mediterrâneo Austral. Há quem diga que eles foram extintos depois da Titanomaquia. De todo modo, quando o senhor do abismo veio na primeira vez, eles ajudaram Perseu e os Olimpianos na luta contra seus seguidores. Vale a pena tentar procurá-los, quando chegarem a Alexandria procurem pela Víbora, ela é um dos símbolos de Serápis.”

Percy memorizou as palavras de seu antigo instrutor de esgrima cuidadosamente, mesmo jamais tendo ouvido falar de um deus chamado Serápis e seus seguidores. O garoto sentiu o peso da arma de fogo aumentar em suas mãos, ele desejou profundamente não ter que usá-la. Ultimamente os presentes que ele recebia só serviam para matar as pessoas, Percy sentiu falta de ganhar um daqueles apitos de gelo para invocar a Sra. O’leary, o mastim negro era menos legal na visão do garoto. 

—Novamente o agradeço, mestre Sextus – Percy se levantou e descreveu uma leve mesura meio desajeitada, as personalidades conflitantes entre o semideus inocente e a arma perfeita de Caos se revezavam para comandar as ações do garoto. 

Sextus olhou meio desconfiado para ele — Diga-me, o que Lorde Caos ofereceu que o mudou tanto a ponto de eu não reconhecer aquele garoto magricela teimoso do Acampamento Meio-Sangue? 

—Se você prometer que irá retornar para lá e nos ajudar, eu te conto — Percy deu um sorriso de lado, Sextus o imitou. 

—Seu senso de humor ainda continua o mesmo, perspicaz jovem Percy. 

Percy novamente o estendeu a mão, mas Sextus o interrompeu dando-lhe um abraço apertado. O velho semideus tinha cheiro de óleo de engrenagem e loção pós barba da Grace’s — Não vou prometer que retornarei, mas essa não será a última vez que nos vemos, Sr. Jackson. 

Sextus pousou a mão sobre o ombro do garoto e o olhou com expectativa, retribuindo a mesura desajeitada de antes.

—Cuide dele, Srta. Chase – Sextus e Annabeth trocaram aquele olhar silencioso dos filhos de Atena — Ele não conseguiria amarrar o sapato sem você. O que me lembra do último presente. 

O velho inventor foi andando até sua bancada e mexeu nas quinquilharias ao lado da bigorna, ele pegou um tablet empoeirado e um celular antigo da Nokia. 

Annabeth estava com a mochila nas costas, ela pegou os aparelhos eletrônicos das mãos de Sextus — Os monstros vão nos rastrear se eu usar esse telefone. 

—À esta altura acredito que não serão o pior dos seus problemas, minha cara — Sextus pousou a mão no ombro dela da mesma forma fez com Percy — Tem alguns projetos e instruções de como usar o Metal de Têmis no tablet, caso encontrem mais dele na sua jornada. O celular tem somente um contato na memória, se precisar ligar, jogue-o longe assim que tocar três vezes.

A garota assentiu com a cabeça e guardou os itens na mochila — Obrigada, Dédalo. Se eu vir a mamãe, mando lembranças suas — ela deu uma piscadela.

—Não nos demoremos mais, Sabichona— Percy pegou a mão de Annabeth e entrelaçou os dedos nos dela, com a mão livre o homem procurou a Pedra de Onfalos nos bolsos da calça.

Ele olhou para Sextus pela última vez e balançou a cabeça com expectativa. Annabeth segurou firme a mão de Percy, eles se olharam determinados. 

O repuxo no abdome veio no segundo seguinte, e os dois foram mergulhados nas sombras.