Azul E Amarelo escrita por scarecrow


Capítulo 1
Capítulo Único.


Notas iniciais do capítulo

Hm, oi?
Well, esse conto foi escrito cerca de um ano atrás, mas só agora estou tomando coragem de postá-lo aqui. Gostaria de agradecer ao Salow por ter betado a fanfic por mim, foi de extrema ajuda ♥
Por fim, espero que vocês gostem (se alguém de fato ler, hehe)



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 Azul e Amarelo

    Quando nada mais importa, descobrimos o valor que damos a cada coisa, o sentido exato daquela caixa de música ou da lembrança mais remota da infância, que teima em voltar cada vez mais nítida, ainda mais quando se sabe o quão próximo a morte está de nós. Eu sabia o quão próximo a morte estava de mim.

      A morte é uma figura esperta, inteligente. Ela chega sorrateira, e você não a escuta. É como um gato — os passos são leves, rápidos, e quando você menos espera...

        Há dez meses, fui a um médico qualquer saber o porquê de minha dor de cabeça; o médico não soube responder e a morte começou a andar em minha direção. Surgiram mais sintomas e meu médico me disse que eu só teria mais seis meses. Desde então a morte vem respirando atrás de mim. Já tem seis meses que eu escuto a morte conversar com minha sombra.

            Eu a escutava, mas não a via, apesar de ter comigo a impressão dela ser azul. Azul. Como os olhos dele.

     Estranho ver que logo após marcarem os dias de meu calendário, eu pensei em mim mesma depois de tanto tempo. Pensei em como eu vinha perdendo minha vida até aqui, com coisas que talvez nem valessem mais a pena. Foi assim que, entre noites mal dormidas e memórias fotografadas, eu decidi viver minha vida em outro caminho. Doei minhas coisas, comecei um regime, vendi meu carro e o conheci.

     Lembro-me que ainda faltavam cinco meses. Estávamos no metrô, ambos de pé. Ambos desmotivados. Ele estava atrás de mim, ofegante por quase ter perdido sua volta para casa, e me lembrava à morte: os dois respiravam em minhas costas, pisavam em minha sombra e brincavam com minha existência. Quinze minutos de metrô e os espaços começaram a aparecer. Sentamos ele, eu e a morte, nessa ordem.

      Não me lembro de qual foi o nosso primeiro contato. Era clichê; eu não respirava, suas mãos suavam e nós sorrimos sem graça.

      No dia seguinte ele também estava no metrô. E no dia seguinte, e no seguinte. A semana do seu lado passou mais rápido do que eu imaginava, e sua presença me preencheu de tal jeito que a morte parecia ter se distanciado. Eram os vinte minutos mais esperados do meu dia desde então.

      Comecei a descobrir, em nossos encontros corriqueiros, várias coisas sobre ele. Descobri que ele sempre descia no último ponto por ser o mais fácil de lembrar, que ele trabalhava na única locadora do bairro e que seu nome era John. Um nome comum, uma vida comum, e os olhos mais belos que já vi em minha vida.

      Quando só me faltavam três meses, os acontecimentos nos fizeram amigos. Uma amizade de vinte minutos todos os dias, de segunda à sexta. E mesmo vendo John todos os dias, meu coração nunca deixou de palpitar forte quando ele entrava no metrô. Às vezes era preciso me lembrar de que meu coração estava apenas batendo, e não querendo sair pela boca.

            E foi nesse mesmo mês que John começou a faltar mais que o comum. Ele faltava uma, duas vezes por semana. Eu sentia sua falta durante todo meu caminho. Falta do seu calor ocupando o espaço ao lado, falta das suas risadas sobre quando eu contava de minha dieta. Falta de suas histórias repetitivas sobre , falta de seus broches na mochila com sua cor preferida: amarela.

      Sentia falta de John nos dias que ele faltava e matava essa sensação ruim nos dias que ele voltava. Voltava John, meus sorrisos, suas histórias, e nossas conversas do cotidiano: os seus dias comuns e os meus dias contados.

      Quando me restavam dois meses, decidi contar para ele sobre minha doença. Ele me olhou preocupado, e me aconselhou "Não se preocupe, Sam. Os médicos nunca acertam o tempo". Eu sorri. Talvez ele estivesse certo, já que não escutava a morte desde o dia em que o conheci.

      Nesse mesmo dia, cinco minutos antes de descer, John me pediu desculpas, e confessou sua estranha paixão por mim. Eu não consegui responder.

      Na segunda-feira, depois de muito pensar, eu decidi responder à sua confissão. John faltou. Não só na segunda, como em toda semana. Fui então procurar a única locadora do bairro já mencionada, e era um final de sexta-feira. Perguntaram-me o que eu queria, e eu demorei um pouco para responder. "Eu quero saber se o John está" eu disse. Eu precisava saber onde John está - eu pensei.

      "Alguns problemas pessoais. Segunda-feira ele já está de volta" foram simples. Voltei para casa sozinha.

      "Olá" a saudades disse por mim. Ele sorriu sem graça, não me respondeu. Não conversamos sobre cores, muito menos sobre Star Wars. Ele foi embora sem se despedir e a morte me cumprimentou.

            No dia seguinte, nós também não conversamos, e ainda assim estávamos sentados um do lado do outro. O "eu te amo" estava entalado em minhas covardias. Olhei em seus olhos azul gelo. O tipo de azul que não se sabe a cor, e não se encontra em nenhuma caixa de lápis. Eu abri a boca para dizer algo, e minha voz não saiu. Foi a pior semana dos últimos meses. E antes que eu pudesse perguntar o que estava acontecendo, ele faltou novamente na sexta-feira seguinte. E na segunda, e na terça. Eu estava me sentindo sufocada — a sensação era de que o desespero estava descascando meu peito como as crianças fazem no outono, com as pequenas árvores. O problema é que não eram dedos macios, e sim unhas grandes e fortes, puxando e deixando meu coração fino de mais.

            A espessura de meu coração estava tão invisível que eu tinha medo de arrebentá-la ao respirar.

       Quarta-feira eu esperei o último ponto para descer. Era a única casa em que todos os números eram pares, ele comentou algumas vezes. Toquei a campainha e esperei ansiosa. Chutei de leve a grama bem cortada.

       "Boa tarde" eu comecei a dizer quando vi uma mulher parada em minha frente. "Eu gostaria de saber se o John está". as palavras estavam apavoradas demais para esperarem qualquer índice de educação, nem fui capaz de perguntar se era ali mesmo que ele morava.  A mulher sorriu triste. Contou-me que era sua mãe, e que ele não poderia falar com ninguém agora. "É um pequeno problema de saúde"

            Olhei confusa, e ela continuou "Nada preocupante."

               "Problema de saúde?" perguntei medrosa. Escutei a morte rir atrás de mim.

             "Um pequeno problema de memória. Como disse, nada preocupante"

              Quinta-feira chegou mais cedo do que o esperado. John entrou no horário normal, e sentou do meu lado. Não nos cumprimentamos e eu achei melhor assim. Era melhor deixar o silêncio corroer minha língua do que ouvir a temida frase de filmes: Quem é você?

       "Hey" o chamei. Ele me olhou vazio, e seus olhos claros demonstravam tanta tristeza que pareciam querer sumir. "Que cor... Que cor você acha que a morte tem?"

       Ele me olhou sem entender. Era uma pergunta estranha, e me conformaria caso ele não respondesse. Agora eu não só ouvia como também conseguia cheirar a morte. Tinha cheiro de café doce, o tipo de café que eu mais amava, porém minha dieta cortou logo de primeira.

       "Amarela" ele me disse antes de levantar e ir.

       Logo, faltavam-me apenas um mês. Trinta dias. Foram todos eles repetitivos demais no hospital, já que meus sintomas pioraram. A minha doença piorava dia após dia, eu estava morrendo. Talvez, de saudades. No final dos meus dias, os médicos diziam já ter feito o suficiente, mas será que eu havia feito o suficiente?

             Eu nunca fiz nada, apenas trabalhava, cuidava de meus pacientes como uma boa psicóloga e não era agora que eu iria fazer. Eu não poderia fazer mais nada com meus cabelos secos, pernas bambas e olhos fundos. O gosto de remédio na boca e o cheiro de hospital.

            Não existia um eu em minha vida, e a melhor coisa que eu fiz por mim foi ter doado minhas coisas, começado um regime, vendido meu carro e conhecido ele. Conhecer e me apaixonar por John. John, o homem que trabalhava e morava em lugares fáceis de lembrar e contava coisas repetitivas, tudo por um pequeno problema de memória. Nada preocupante. John, o homem o qual eu me apaixonei.

O homem que me esqueceu.

        Voltei para casa faltando dois dias, o hospital não poderia fazer mais nada por mim. Eu preciso de um descanso, eles disseram. Peguei o metrô das seis.

        "Olá" eu disse ao ver John entrar no metrô e sentar do meu lado.

        "Oi" ele disse, simples.

        Suspirei. Fechei os olhos lentamente e quando os abri, a enxerguei. A morte é uma figura esperta, inteligente. Ela chega sorrateira, e você não a escuta. É como um gato — os passos são leves, rápidos; e quando você menos espera, ela aparece. A respiração batendo em suas costas, a voz conversando com sua sombra, o cheiro de café e a cor verde oliva.

         Verde. A morte é verde. Não é azul, nem amarela, e sim a mistura das duas cores.

         A morte sorriu. Ela se aproximou, e passou a mão em minha cabeça. Ela brincou com meus fios de cabelo como se fosse o fio da minha vida. Eu fechei os olhos de novo, e me senti pesar para o lado, encostando-me a John. A morte ainda brincava com meus fios, eles dançavam entre seus dedos, prestes a arrebentar.

         Senti um calor confortável em minha mão; era John.

         "Estava com saudades." ele disse calmo, sem olhar para mim. "Eu queria te ver, mas tinha medo de ver você sumir." e riu, sem graça. "Bobagem pensar nisso, não é? Não me lembro de você ter dito algo que te faria sumir. Você parece cansada... Pode dormir se quiser"

         Oh.

         Ele não havia me esquecido, afinal. Era apenas a doença, no meio disso tudo. Era apenas o medo, a falta de coragem. Ele se lembrava de mim, mas esqueceu a doença como já deve ter se esquecido de outras coisas tão superficiais quanto isso. Agora era superficial, e nada mais importava.

         "Boa noite, Samantha" ele disse, por fim. Sorri meu “eu te amo”, e enlacei seus dedos nos meus. Naquele momento, eu percebi que havia feito o suficiente e a morte puxou meu cabelo.

            Meus fios arrebentaram, mas eu estava feliz.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado.
Comentários? 8D