Dilema Platônico escrita por Metal_Will


Capítulo 43
Capítulo 43 - Ensaio




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    A Praça da Sonhadora era um local próximo, bastante espaçoso, incluindo até uma quadra de futebol e espaço para andar de bicicleta. Um espaço raro no meio de todo o caos paulista. Miguel havia chegado lá bem cedo e, até aquela hora, nem sinal de Danieli. Nada que pudesse reclamar, afinal, era ele que estava adiantado.
    "Bem, antes adiantado do que atrasado...", ele pensa. Todos disseram que essa seria uma ótima oportunidade para Miguel resolver sua situação com Dani, mas ele mesmo já estava certo de que não mudaria nada. Além disso, não estavam em um encontro e sim em uma atividade de ensaio. Ele sabia que Danieli não veria nada mais além daquilo. Mas no meio da conversa não poderia acontecer alguma coisa? Dificilmente. Miguel se senta em um dos vários bancos espalhados pela pracinha e olha no celular. Quinze minutos adiantado do horário combinado. Talvez tivesse exagerado na pontualidade. De qualquer maneira, teria que esperar a mocinha chegar para começar os ensaios, muito embora já pudesse dar alguma lida em suas falas. Mas ler o que? Ele já havia lido aquele roteiro milhares de vezes e já sabia de cor tudo que acontecia. Era uma peça bem simples. O príncipe vê a infelicidade das pessoas, sai de casa (ou do castelo), anda pelos reinos proclamando justiça, ganha o amor da princesa e, no fim, acaba preso junto com ela. Fim. Não se podia esperar mais de uma peça iniciante. Mas ainda não era cedo demais para pensar numa peça? Talvez em nenhum outro curso de teatro fosse assim, mas nem todo curso de teatro tinha um professor doido daqueles.
    Ele deixa o roteiro de lado e dá uma espreguiçada. Sentado de seu banco podia ver todas as pessoas à sua volta, algumas caminhando, só de passagem, algumas correndo ou pedalando em suas bicicletas, crianças brincando sem nenhuma preocupação com o futuro. Miguel suspira e olha para o céu azul acima dele. Em poucos instantes estaria perto da pessoa que amava...ou  pelo menos por quem nutria uma afeição muito forte.
    De onde estava ele podia ver um casal de namorados, o tipo de visão que sempre o irritava, mais ao mesmo tempo o fazia refletir. Ele realmente tinha vontade de andar abraçado e agarrado com sua namorada como aqueles dois? De alguma forma, ele não conseguia ver seu amor por Danieli daquela maneira. Não era aquilo que ele realmente queria. Inconscientemente, Miguel via sua relação com Danieli como algo plenamente mágico e sublime. No fundo, ele sentia um certo prazer em admirá-la a distância, em apenas sonhar com uma relação amorosa. Amar a ideia...foi o que aprendeu na discussão sobre amor platônico. Seria isso? Uma paixão apenas pela ideia do amor, mas nunca querer concretizar aquilo? Ele sabia que uma relação amorosa é sempre cheia de altos e baixos, desafios e discussões. Ele não queria passar por nenhuma crise. Não com a Danieli. Nos sonhos eles nunca passariam por aquilo...mas ele podia dizer que a amava de verdade se não estava disposto a assumir as responsabilidades de uma relação? Quem sabe...talvez isso fosse tão egoísta e impuro quanto o que sentia por Camila. Agora isso não importava mais...Miguel sequer podia imaginar qualquer coisa com a prima desde que o momento que ouviu as dificuldades por que ela passou. Foi um erro, um distúrbio, mas, agora ele só queria pensar na Dani.
    Dani, Dani...sonhar com ela era intensamente agradável...confessar seus sentimentos poderia levar a duas opções. O mais provável, um não, perdendo qualquer esperança de que ela o amasse da mesma forma e, pior ainda, correr o risco de perder a curta amizade que tiveram até então...ou um sim e finalmente tê-la em seus braços, mas, ao mesmo tempo, ter que assumir as responsabilidades e dificuldades de um relacionamento amoroso. Qualquer das opções geraria algo que Miguel gostaria de evitar. Para alguém de fora, é óbvio que a segunda opção, o sim, seria a melhor, mas Miguel enxergava tudo a longo prazo. Ambos tinham costumes diferentes, hobbies diferentes e pouquíssima coisa em comum. Na visão de Miguel, Danieli era ordens de grandeza superior a ele. Não conseguia imaginar que os dois tivessem uma relação harmoniosa. Talvez nas primeiras semanas...mas e depois? O rapaz racionalizava tudo isso, mas, na visão dos amigos, tudo que ele parecia era um rapaz tímido com vergonha de se declarar. Era um pouco disso, mas era algo mais do que isso. Se Miguel contasse seus pensamentos, provavelmente nenhum deles acreditaria. Quem preferiria viver na ilusão do que ter um relacionamento de verdade? Dizer isso para todo mundo seria loucura! Mesmo assim, a presença de Danieli o confortava muito. Adorava o seu sorriso e seu jeito meigo. Mas, ao mesmo tempo, teria que se conformar em nunca poder tocá-la. Veja, mas não toque. Era o preço a se pagar. Mas, para Miguel, que realmente não sentia um desejo intenso de abraçar ou beijar a ruivinha, isso era muito melhor do que receber um não (e cair totalmente das suas nuvens) ou mesmo um sim e descobrir como uma relação amorosa é difícil (caindo das nuvens do mesmo jeito). Qualquer discurso de romance de esquina ou novela das seis diria que o amor supera todas as barreiras. E é aí que ele realmente chegava a questão mais difícil de sua reflexão. O que ele realmente sentia por aquela garota? Miguel imaginava se poderia descrever seu sentimento em palavras...
    Enquanto pensava nisso e em outros pensamentos aleatórios motivados pela atmosfera bucólica daquela praça, eis que chega Danieli, batendo na cabeça dele de leve com os papeis de seu roteiro.
    - Oi. Que bom. Te achei fácil! - diz ela com um sorriso. Parecia bastante animada.
    - Ah, tudo bem, Dani
    - Tudo - diz ela, cumprimentando-o com um beijinho no rosto - Passou bem desde hoje de manhã?
    - Passei. Passei sim - diz ele, procurando ser o mais natural possível, embora já estivesse conseguindo conversar fluentemente com ela.
    - Você disse que decorou todas as suas falas, não é?
    Ele faz que sim com a cabeça. Isso não era mentira. Suas falas estavam na ponta da língua.
    - Se quiser..
    Ela faz um sinal com as mãos para o garoto esperar
    - Espera um pouco... - diz Dani - Tem um lugar mais tranquilo ali em cima - ela diz apontando para um espaço mais afastado da praça, mas que parecia ser mais discreto.
    - Mais...tranquilo?
    - É. Ensaiar com esse monte de gente passando não é muito legal. Ali passa gente também, mas é bem mais tranquilo do que aqui, bem no meio da praça
    Miguel olha para o local que ela aponta. Bem, Danieli tinha mais experiência nisso do que ele.
    - Mas claro...se você quiser ensaiar aqui mesmo...
    - Não, não. Quanto menos gente, melhor...ainda tenho que treinar muito! - ele diz de imediato, já vermelho de vergonha
    Dani ri e os dois seguem para o outro espaço. Era um local com algumas árvores em volta, tendo só um casal de namorados em um banco, mas aparentemente não estavam nem um pouco interessados no que Miguel e Danieli estavam fazendo.
    - Bem...acho que a gente pode começar
    - Podemos
    - Você primeiro...as primeiras falas são suas...a menos que você quer quer eu faça o narrador antes da sua fala
    - Se você quiser
    Ela dá uma pigarreada e começa a narração
    - "Era uma vez, em um reino distante, um belo e bondoso príncipe que visitava a vila de seus súditos toda semana. Um certo dia, após uma de suas costumeiras visitas, ele chega em seu palácio bastante preocupado e, ao que parecia, nervoso"
    Miguel ouve tudo encantado. Ela realmente sabia narrar e dar voz ao que queria.
    - Sua vez, Miguel - diz Dani, olhando para o rapaz com um sorriso bondoso.
    - T-Tudo bem... - ele gagueja, e não muito confiante começa a balbuciar suas primeiras falas, sem olhar no papel - Eu...eu não acredito...
    - Hmm..
    - O que foi?
    - Não tá convencendo muito...
    - Bem, é que eu...
    - Você tem que dizer: "Eu não acredito! Eu não acredito no que está acontecendo! Pai, onde está o meu pai?" Só que você tem que dizer isso de um jeito mais realista, mais expressivo. Você não está passando muita emoção para o seu personagem
    - É...eu já imaginava
    - Olha, aqui diz que ele está nervoso e preocupado. Tente se parecer com uma pessoa nervosa e preocupada.
    - Tá...eu..eu não acredito! - diz ele, tentando colocar um pouco mais de raiva na sua voz.
    - Não. Ainda não tá bom
    - Não?
    - O que foi? Não precisa ter medo! Só tem a gente aqui!
    Para Miguel isso não era muito confortador. Mesmo que ensaiassem só os dois, não seriam só eles nos ensaios das aulas de sábado...e nem no dia da peça
    - Bem, é que eu não estou muito acostumado com isso
    - Quer um conselho?
    - Hmm?
    - Não seja você mesmo
    - Não ser...eu mesmo?
    - Normalmente te dizem o contrário, né? Mas em teatro ser você mesmo não funciona. Você tem que ser outra pessoa. Essa é a ideia!
    - Ser..outra pessoa
    - Interpretar um papel ou assumir um papel é se colocar no lugar do personagem. Pense no que o personagem faria, como ele falaria, como ele reagiria...mas para isso você tem que esquecer de você mesmo. Quando se interpreta, você tem que sair de si mesmo e tentar se ver como o personagem
    - Uau. Isso foi bem profundo
    - Provavelmente o professor vai falar isso na próxima aula
    - É bem a cara dele
    - Olha. Eu pessoalmente sou uma pessoa bem tímida. Mas eu vejo a atuação como uma forma de sair de mim mesma e me imaginar como uma outra pessoa
    Ele ouve atentamente o discurso dela. Mas, pessoalmente, Miguel não via Danieli como uma pessoa tímida, não se comparada a ele.
    - Sério? Você até me parece bem extrovertida
    - Você acha? Impressão sua. Sou péssima para conversar com as pessoas...acho que nunca teria falado com você se a sua prima não tivesse falado comigo primeiro - ela conta sorrindo
    - Bem, pelo menos você não é uma tímida excessiva como eu.
    - Mas você consegue se expressar muito bem
    - Hã? Você acha?
    - Seu jeito de falar e seu vocabulário são bem ricos. E isso é muito bom. Normalmente, os meninos da sua idade só falam gírias e palavrões
    - Bem...eu não uso muitas gírias mesmo
    - Bom saber que você é diferente
    - Hmm?
    - Toda a minha vida só andei com meninas parecidas comigo. Sempre achei os meninos tão bobos...mas eu estava enganada, você é diferente da maioria dos que eu vejo por aí
    - Bem..diferente pode apostar que eu sou..mas se isso é bom ou não...
    - Acredite. Isso é bom. Você devia explorar mais essas suas qualidades
    - Q-Qualidades?
    - Mas olha eu mudando de assunto...acabei de falar para deixar de ser você mesmo e agora estou falando para você se aceitar mais..desse jeito quem é que entende, né?
    Miguel ri junto com ela. Essa devia ser a primeira vez que os dois estavam tendo uma conversa tão franca. Mas, ao mesmo tempo, quanto mais via a bondade e humildade dela, mais idealizava a menina.
    - Você só precisa achar um jeito de destravar. Se você lembrar dos exercícios de expressão corporal vai conseguir destravar o corpo, mas colocar vida no seu personagem é algo que só você conseguiria fazer
    - T-Tá..deixa eu tentar de novo. "Eu...eu não acredito! Eu não acredito no que está acontecendo! Pai? Onde está o meu pai?" - o rapaz interpreta, agora colocando mais revolta na voz e se destravando um pouco mais. Mas volta a si logo depois que termina a cena
    - E agora?
    - Nossa. Muito melhor. Mas não se despede tão rápido do seu personagem. Lembre-se que essa foi só a primeira fala
    Ele se lembrava. Teria que interpretar muito ainda. Ele tenta fazer o melhor possível, travando algumas vezes, melhorando em outras. O ensaio seguia adiante.
    - "Eu renunciei ao meu trono para lutar por vocês. Vocês que estão sofrendo por..."
    - Tá travado, Miguel. Se solta mais
    E assim ia. Realmente era um lugar bem tranquilo e sossegado. Só em um momento que alguns curiosos pararam ali, mas Miguel só percebeu quando tinha  terminado a cena. Mesmo assim, ele até que se deu muito bem.
    - "Mas se vamos morrer...vamos morrer juntos...e por uma causa nobre!" - diz Dani, terminando sua fala e segurando firme as mãos de Miguel, olhando bem dentro dos olhos dele (isso estava no roteiro). Nessa hora ele fica paralisado. Pelo roteiro ele também tinha que olhar bem nos olhos dela e as cortinas logo fechariam. Ele sequer precisava dizer uma única frase. Mas aquele momento parecia muito mais difícil do que todas as outras cenas. Encarar Danieli era como ver sua própria fraqueza no espelho daqueles olhos.
    - E assim termina...Fomos bem, não fomos?
    - Hã? Sim, sim...parece que sim. - diz ele, ainda um pouco estranho com aquela última parte.
    - Fomos sim. É só continuar treinando desse jeito que vamos conseguir fazer uma boa peça
    - Hmm...sábado ele vai decidir o papel dos outros, não é?
    - É verdade. Eles também vão ter bastante influência. Buscar um equilíbrio com todos os outros participantes também é essencial em uma boa peça
    - Você vai mesmo ser uma boa atriz
    - Ai, tomara! É o meu sonho!
    Miguel sorri. O jeito meigo e otimista dela o confortava. Cada vez mais Miguel a via menos como mulher e mais como anjo.
    - E você, Miguel?   
    - Eu? Eu o que?
    - Você tem algum sonho?
    - Na verdade...não tenho meus planos para o futuro muito definidos
    - ahauha. Tudo bem. Você ainda é novo. Tem muito tempo pela frente
    - Eu sonho bastante acordado...se você considerar isso
    Ela dá risada.
    - Sonha acordado? - diz Dani - Então você é mesmo um sonhador
    - Talvez
    - O que você costuma pensar?
    - Um monte de coisas...começa com pensar no que vou fazer hoje e vou imaginando como seria se fosse diferente...sei lá, por que as coisas são do jeito que são? Mas também vem um monte de pensamentos aleatórios
    - Ah, entendi. Vive no mundo da Lua.
    - Pode-se dizer que sim
    - Você é mesmo diferente da maioria dos meninos.
    - Só porque vivo no mundo da Lua?
    - Não, não. Não só por isso. Mas você é diferente no jeito mesmo. Você parece mesmo ter uma cabeça diferente
    - Bem...talvez um pouquinho
    - Hahuhaa. Mas continua assim...só destrava mais na cena. Aproveite o palco para sair de si mesmo.
    "Sair de si mesmo...". Danieli tinha uma filosofia de teatro bem interessante.
    - Bem, eu preciso voltar para casa agora. Prometi ajudar minha mãe numa coisa. Mas, a gente pode ensaiar de novo amanhã, não pode?
    - Como eu disse...estou livre todas as tardes
    -  E eu toda segunda, terça e quinta. A gente se vê amanhã na escola. Valeu pela companhia
    Ela dá uma abraço em Miguel que, pego de surpresa, fica paralisado novamente. Era um abraço leve e agradável. Miguel nunca havia sentido algo assim antes. Já sentiu abraço de amigos, de familiares e até o de sua prima, que, pessoalmente, era o que mais gostava. Mas não conseguia encaixar aquele abraço em nenhuma daquelas categorias. "Será que é assim abraçar um anjo?", ele pensava.
    Danieli se despede e vai para casa. Miguel se senta por uns instantes no banco da praça."A Camila tinha o corpo perfeito", ele pensa, "A Dani tem uma aura perfeita...", ele pensava, elevando sua admiração por Danieli a planos cada vez mais altos.


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