Eu estava trabalhando concentrado na forja, muito depois de todos irem dormir, como eu gostava, só escutando o barulho do martelo no metal e assobio profundo do vento balançando as árvores, as janelas e toda a estrutura de madeira em que eu estava.

            A noite estava fria e estava ficando cada vez mais frio conforme as noites seguiam os dias... Em todo lugar que se ia, as pessoas murmuravam o lema da família Stark como uma profecia: o Inverno está chegando... Todos tinham medo daquele lema agora que o frio não ia mais embora, mas pra mim... Aquele lema só me fazia lembrar... Dela...

            Não conseguia dormir por causa dela... Ficava pensando onde ela estaria, se ela estava bem, se estava protegida, se voltaria a vê-la... Eu dormia e acordava com ela em meu pensamento, eu trabalhava o tempo todo só pensando nela e naquela expressão de decepção que ela fizera quando eu disse que ficaria com o grupo de Dondarrion...

            Era a última vez que eu tinha visto Arya... E eu me arrependia tanto que a culpa me consumia mais do que o frio... Eu daria tudo pra saber onde ela estava... Qualquer coisa pra tê-la de volta... Pra ter a oportunidade de explicar que eu não tinha pretendido magoá-la... Que eu queria que ela entendesse que devíamos nos proteger o melhor que pudéssemos daquela guerra e que a mãe e o irmão dela estavam em meio à batalha e aquele não seria o lugar mais seguro pra ela estar no momento... Eu queria que ela ficasse ali... Comigo...

            Eu era apenas um órfão, bastardo de alguém que eu não conhecia e nem queria conhecer... Nunca tive ambições de me tornar cavaleiro ou coisa alguma... Mas a única coisa que desejei ter de verdade foi ela! E só o que eu era nunca seria o suficiente para uma das filhas da Casa Stark! Eu precisava ser mais... Se fosse conseguir isso com Dondarrion ou com outro, não importava, contanto que ela estivesse comigo! Sem ela, eu não tinha mais um motivo de viver...

            O vento às minhas costas soprou violento, abrindo a porta e eu me virei, parando o que estava fazendo, para ir fechá-la. Mas dois olhos me encaravam fixamente e aquilo me prendeu ao chão: um enorme lobo de pelagem castanho-acinzentado estava bem ali, silencioso como uma sombra... Seus olhos não se moviam, assim como eu também não...

            Àquela altura, todos sabiam que os Stark tinham adotado como bichos de estimação filhotes de lobo gigante, dos quais só se tinha notícia antes para além da Muralha, e eu tinha convivido por muito tempo com uma Stark pra ter certeza de que aquele com certeza devia ser um deles... Mas isso também significava que eu tinha poucas chances de sobreviver àquele encontro...

            Fiquei um longo minuto quase sem respirar ou mover um músculo, mas era quase como se ele pudesse ouvir meu coração batendo... Então, tomei coragem e dei um passo, ainda com o aço quente bem preso em minha mão, caso eu tivesse a chance de me defender...

            Dois passos foram o suficiente para o animal também se mover, sem produzir nenhum som... A porta bateu às suas e ele se aproximou do fogo.

            - Está gelado lá fora até pra você, não é mesmo? – eu disse e seus olhos se voltaram pra mim, como se me entendessem. – Está com fome? – tirei um pedaço do carneiro que eu mal tocara no jantar e me abaixei, esperando que se lhe fizesse aquela gentileza, o lobo não comeria junto a minha mão...

            Ele se aproximou e eu pude ver que se tratava de uma fêmea... Ela pegou o pedaço de carne da minha mão e se deitou aos meus pés para comê-lo. Eu me sentei ao seu lado e fiquei apenas assistindo-a destruir a comida que lhe dera, com uma sensação de felicidade que há muito tempo não sentia...

            Seus olhos tornaram a me encarar e era um olhar quase humano... Afaguei lentamente suas orelhas e ela se deitou no meu colo, me fazendo rir.

            - Onde está sua matilha? – eu perguntei, quase como se esperasse uma resposta. Eu ficara tanto tempo em silêncio que me parecia agradável falar em voz alta, mesmo que fosse com um lobo.

            Seu pelo era grosso e macio, parecia um grande cobertor e estava esquentando muito bem minhas pernas deitada ali, quase como se tivesse adormecido sobre mim.

            - Como foi que Arya disse que chamara seu lobo gigante? - eu lhe perguntei e ela ergueu a cabeça, novamente como se tivesse me entendido. Afaguei suas orelhas, pensativo. – Você quer ficar aqui? Se precisar de companhia, eu também preciso...

            Ela tornou a deitar e eu ri.

            - Vou aceitar isso como um sim... Ninguém quer ficar perto de mim ultimamente mesmo... Acho que me tornei muito mal humorado... Desde que ela se foi...

            A loba se arrumou deitada, parecendo uma pessoa tentando ficar mais confortável.

            - Se você não couber lá dentro, onde os outros dormem, nós podemos dormir por aqui mesmo, tudo bem? Tem o fogo da forja e você também é bem quentinha!

            Ela se levantou e foi até o fogo, me encarando.

            - Você é bem esperta... É uma loba do norte? Se for, é a segunda loba do norte que é assim esperta que entra na minha vida... Pode ser natural de vocês... – ela caminhou até mim e parou ao meu lado, como se prestasse atenção ao que eu dizia. – Não te incomoda que eu fique falando? Você parecia estar querendo dormir... Desculpe...

            Ela esfregou o focinho no meu braço e eu lhe fiz carinho.

            - Certo, então vamos conversar... Eu não estou mesmo com sono... Posso dormir durante o dia... Vai ficar de guarda pra não me acordarem? - eu brinquei, rindo e ela esfregou o focinho de novo no meu braço.

            Acariciei seu pelo e nós ficamos nos encarando por vários minutos em completo silêncio.

            - Você é bastante calma pra uma loba gigante... A que eu conheci era tão agressiva – dei risada, me lembrando de Arya me dando bronca como se não fosse mais nova do que eu. – Não era bem uma loba como você, mas tinha sangue de lobo, com certeza. Era feroz e corajosa... Eu sinto sua falta... – admiti para mim mesmo e ela deitou em minha perna, como se me consolasse.

            Aquela era a maior verdade que eu escondia: eu não queria que Arya voltasse apenas pra me desculpar com ela ou lhe explicar o que eu tinha pretendido. Eu a queria de volta porque sentia sua falta, porque ela era especial pra mim, porque ela tinha sido a primeira pessoa em minha vida que tinha me dado importância... E porque eu a amava...

            - Será que ela está sozinha como você? – afaguei lentamente as costas da loba. – Eu devia estar com ela. Não devia estar aqui. Se eu amo menos soubesse onde ela está ou para onde ela estava indo, não me importava se tivesse de atravessar a Muralha ou o Mar Estreito, contanto que eu pudesse ir encontrá-la!

            Ela ergueu a pata e colocou sobre a minha mão que estava em meu joelho e eu passei o braço por seu tronco, quase num abraço... Com aquele inverno ameaçador chegando, dava pra entender porque o símbolo dos Stark era o lobo gigante: não era qualquer animal que sobreviveria ao frio!

            - Desculpe ficar me lamentando pra você! Vai acabar se aborrecendo de mim também... Vamos pensar em um nome legal pra você... Eu não consigo me lembrar do nome da loba de Arya de qualquer forma... Eu gostaria de ter chamar pelo nome dela ou, quem sabe, de Arry... Mas todos saberiam que é porque eu sinto a falta dela... E só você sabe o que eu sinto até agora...

            Vaguei o olhar, sem ver nada, pensando em um nome que seria bom pra minha lobinha... Ela chegava a ser fofa, apesar do seu tamanho e parecia o tipo de companhia de que eu precisava... Eu sentia um vazio enorme dentro de mim desde que perdera Arya e aquele vazio me sufocava, me matava um pouco a cada dia... Talvez eu precisasse cuidar de alguém outra vez como cuidava dela... Precisava me manter vivo para encontrá-la... Mas eu não queria colocar outra pessoa naquele lugar porque pertencia somente à Arya... Eu era inteiramente dela! Eu era desde o começo e seria até o fim de minha vida, como jamais imaginara...

            - Chamar um lobo gigante de Doninha ou de Pombinha não é digno, né? – dei risada e ela pareceu me acompanhar, fazendo um barulho que nascia em seu peito, mas saía baixo, quase inaudível. – Como foi que ela disse a Bolton que se chamava? Nan? Acho que era isso... Posso te chamar de Nan? – acariciei seu focinho e ela ergueu a cabeça. – Nan é menos comprometedor... Parece muito bom...

            Apesar da noite fria, Nan e eu ficamos lá fora do abrigo, ainda na forja e eu acabei adormecendo e sonhando com a loba do Norte que me fazia tanta falta... O sonho fora tão real que foi ruim demais quando acordei pela manhã. Nan ainda dormia profundamente sobre minhas pernas, então não me movi e fiquei pensando em como explicaria minha nova companhia... Se ela não pudesse ficar, eu também iria embora... Não tinha ido ainda porque sabia que andar sozinho no meio da guerra não seria nada inteligente... Mas com um lobo gigante talvez não fosse uma ideia descartável... Eu queria ir atrás de Arya e nada me faria mais feliz do que encontrá-la! Ela provavelmente ia gostar de Nan!

            - Volte pra mim... – sussurrei, fechando os olhos e sentindo o vazio que ela deixara me consumir. Eu passei a sonhar com ela, todas as noites depois daquela em que Nan apareceu, dormindo em meus braços, aninhada em meu peito, seu calor confortando o meu corpo do frio... Sonhava que a guerra já tinha acabado e que nós poderíamos viver juntos e em paz... Eu sonhava com o dia em que nós não precisávamos dormir em turnos separados, esperando um ataque a qualquer momento... E nem precisássemos dormir sem saber onde o outro está...

            Sonhava com o dia que ela não seria mais só um sonho...