Lado A Lado - A História ao Contrário escrita por Filipa


Capítulo 54
"Resgate"


Notas iniciais do capítulo

Mais uma vez, repito-me mas não há outra forma, muito obrigada pelo carinho de todas. Fiquei surpresa por terem gostado tanto do capítulo anterior. Dedico o de hoje à Manu e à Vivi que há uns tempos me ajudaram a clarificar as ideias quanto aos desenvolvimentos que neste capítulo se propõe.



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De mãos atadas firmemente uma na outra, repousadas no angustiante ninho que o regaço forma enquanto acomodado no banco de trás do automóvel, Constância segue calada mas a mente grita desesperadamente por um discurso coerente que não deite tudo a perder. E há tanto que se pode perder com a decisão que se vira forçada a tomar! A distância que a separa do destino para onde vai dá-lhe o tempo que julga necessário para a formulação do pretexto e, no alto da sua mais pura insensatez, custa-lhe crer que não irá conquistar a compreensão que deveras almeja ainda que a face inundada de lágrimas e o tremor do corpo digam o contrário.

Edgar voltara a casa há instantes depois do importante desabafo com o amigo de longa data que, embora consternado, por força das responsabilidades laborais não pudera acompanhar o caminho de desassossego do advogado vasculhando ruas e hospitais à procura de Laura ou de um mínimo sinal. Ainda assim, abatido e arrasado, o jovem não evita esboçar um sorriso comovido quando a sala lhe revela, em pé, a presença de Sandra, Isabel e Jean-Luc que, uma vez alertados pelo acontecido, acodem à residência dos Vieira prestando desta forma a devida solidariedade. Prostrados no acolchoado do sofá e das poltronas ao redor da mesa de centro da sala de estar, partilham a falta de novidades e a impotência que a incógnita gera em todos.

Isabel: Nunca pensei que algo tão horrível pudesse dar-se debaixo dos nossos olhos. Edgar, eu nem consigo imaginar o que você está sentindo. Se para mim… para nós – corrige desviando um olhar carinhoso na direção de Sandra que lhe devolve o gesto da poltrona em frente – é desesperante, para você… deve ser um pesadelo horroroso – completa apertando significativamente a mão direita de Jean-Luc que, ao seu lado, a fita de soslaio embevecido.

Edgar: Eu não entendo, não consigo entender como isso foi acontecer. Corri a cidade atrás dela, verifiquei nos hospitais, em casa de familiares e conhecidos, apresentei queixa na delegacia mas até agora nada sei sobre o paradeiro da Laura e isso me deixa – declara pausando a fala a fim de recuperar alguma tranquilidade na voz – completamente enlouquecido. Não sei mais o que fazer… como vou dizer aos meus filhos que a mãe deles desapareceu assim, do nada quando ontem eu lhes menti com toda a convicção de que hoje Laura estaria de novo entre nós.

Uma tristeza preocupante flutua por cada canto da sala, em cada palavra e olhar dos presentes que após a breve confissão de Edgar abrem azo a um silêncio que se espera minimamente apaziguador. Sandra é a primeira a romper nova prosa oferecendo seus préstimos e apoio.

Sandra: Meu pai alertou-me assim que você saiu da delegacia. Mal pude crer no que meus ouvidos percebiam. Achei por bem informar a Madre Superiora e aproveitei para pedir dispensa das minhas aulas de hoje. Se você precisar de algo, qualquer coisa Edgar, eu estou à disposição, inclusive, posso ficar com as crianças durante o dia, distrai-las um pouco.

Edgar: Eu agradeço Sandra mas vou ficar por casa, conversar com ambos e a Matilde está por aqui também se eu precisar sair. Caso haja alguma novidade vocês serão os primeiros a saber.

Jean-Luc: Nesse caso, talvez seja melhor nós irmos andando – interrompe avaliando o semblante condizente de Isabel. – Edgar, meu caro, todos nós estamos de prontidão para qualquer desenvolvimento – afirma levantando-se e estendendo a mão direita para cumprimentar o advogado. – Espero verdadeiramente que sua esposa esteja bem e que não tarde a estar de volta.

A despedida não se alonga muito mais e novamente Edgar vê-se sozinho, mirando as paredes que parecem sugar o parco ar que lhe resta, enterrando-o sem misericórdia nas lembranças e na inquietação. Porém, a placidez angustiante que o envolve é de súbito suspensa por vigorosas batidas na porta e, cheio de esperança e curiosidade, o jovem lança-se prontamente sobre ela abrindo-a sem reticências. Com a desilusão estampada no rosto, não evita também um certo aborrecimento pela moléstia que a visita lhe traz mas é o modo abrupto e sem aviso como esta irrompe porta adentro que o deixa visivelmente desconcertado.

Edgar: D. Constância! – exclama seco e atónito seguindo o rompante da sogra que aflita quase corre para a sala.

Constância: Edgar, eu encontrei a Laura, você precisa vir comigo imediatamente – solta tentando conter meia verdade e o terror que a assola desde que escutara o colóquio do médico.

Edgar: Encontrou? Encontrou como, onde? – questiona aturdido gaguejando nos trejeitos e nas letras.

Constância: No sanatório à saída da cidade – conta a medo e com pressa em poupar-se de maiores explicações.

Edgar: O quê? A Laura está internada num sanatório? Como D. Constância? Isso não é possível, o que a Laura estaria fazendo num sítio desses? – reposta nervoso, pouco crente na revelação da sogra. – Alguém teria que colocá-la lá…

Os pensamentos vocalizados ecoam-lhe não só nos lábios mas principalmente na razão e Edgar ganha consciência da realidade que o encara a menos de um palmo de extensão. Um turbilhão de sentimentos e vontades ganha forma sem sobreaviso personificando-se através dos olhos verdes de Edgar que fuzilam Constância, julgando-se capazes de despoletar uma dor palpável no peito da baronesa.

Edgar: Foi a senhora! – conclui enraivecido e incrédulo levando as mãos aos pulsos da sogra apertando-os com desmesurada certeza. – O que fez com a minha mulher? Fale, onde ela está?

Constância: Não era para ser assim, eu só queria que a Laura descansasse por uns dias, ela estava muito agitada e eu a mantive bem cuidada mas agora eles dizem que a minha menina é louca e não me deixam vê-la – profere em devaneio, alheia à total gravidade das próprias ações mas irrefutavelmente desesperada com o descalabro dos acontecimentos.

A voz interdita pelo choro soluçado que já não controla não permite a Constância dar continuidade às desculpas e explanações e suas sensações aproximam-se perigosamente do apogeu, ao ponto de não sentir sequer a dor que os dedos de Edgar em torno dos seus pulsos lhe provocam. Este, por seu turno, acha-se tão desgovernando que nada mais tolera ouvir.

Edgar: Dê-me o endereço antes que eu cometa uma loucura – berra sacudindo violentamente a elegante senhora que agora se assemelha ao mais frágil dos seres para soltá-la logo a seguir, dando-lhe espaço para retirar da bolsa largada sobre o sofá um curto e amarrotado papel.

Constância: Este é o endereço – fala passando-lhe o papel com a mão que treme desorientada, o qual Edgar recebe com certa violência, dando as costas à sogra pronto para rumar à saída. – Espere Edgar! Eu vou com você, quero ver a Laura – acrescenta indo no encalço do rapaz.

Edgar: Não! – contesta num grito arrepiante volvendo-se para enfrentar Constância pela última vez. – Quem merecia ser internada num sanatório é a senhora que teve coragem de fazer uma monstruosidade dessas com a própria filha, grávida ainda por cima. Eu não tenho ideia do que a levou a isso mas de uma coisa estou certo, eu vou sair por aquela porta sozinho e quando eu voltar com a Laura ai da senhora se ainda estiver por aqui. Esqueça o caminho dessa casa porque a partir de hoje não entra mais nela.

A corrente de ar que escapa pelo bater impetuoso da porta esvoaça os lírios brancos que emergem do alto vaso que decora o canto do hall de entrada e gela a face de Constância onde as lágrimas dão sinais de abrandamento. A genuína preocupação com o estado da filha não se esvai mas no seu íntimo calculista e frio inicia-se um fervilhar irrequieto por todos os segredos que Laura porá, indubitavelmente, a descoberto. Em meio a estas conjeturas, deambula sem rumo pela sala da residência de onde fora expulsa até que os passos lentos de Francisco e Melissa descendo os degraus atrás de si a despertam.

Francisco: Vóvó! – chama sem grande alarido prestes a atingir o patamar da escadaria.

Constância: Francisco! – clama subitamente entusiasmada alongando os braços e agachando-se ligeiramente, preparando-se para receber o abraço que o pequeno não lhe nega apesar do enfado. – Estava com tanta saudade de você meu anjinho, de ver esse seu rostinho lindo e te abraçar assim… bem forte – partilha envolvendo-o com vigor ao redor do peito enquanto, de olhos cerrados, lhe afaga os cabelos com ternura.

Francisco: A senhora veio ver-nos? A mamãe não está e o papai… – para por momentos ao dar-se conta da ausência do progenitor – estava aqui mas já não está mais – termina sem disfarçar o desapontamento.

Constância: Eu sei, ele acabou de sair para resolver um compromisso inadiável mas eu estou aqui e a Matilde deve estar na cozinha, você não está sozinho Francisco.

Francisco: E tem a Mel, nós estávamos brincando – acrescenta soltando-se matreiro das artimanhas da avó para ir ao encontro da irmã que os observa muda alguns passos atrás.

Constância: Claro, tem a Melissa também… – concorda amarga camuflando o desprezo que sente pela menina e a quem espia, assolada inesperadamente por uma ideia que lhe serve perfeitamente os planos. – Venha querida, venha dar-me um abraço – convida sorrindo com uma meiguice nitidamente cínica.

Embora reticente e sem muita excitação após mais uma vez se ver relegada em prol do irmão no que à atenção da avó materna diz respeito, Melissa cumpre a formalidade e deixa-se levar pelo falso ato afectuoso de Constância, imprimindo-lhe um leve beijo na face.

Constância: Você está cada dia mais bonita – afirma acariciando os cachos escuros que caem pelos ombros de Melissa. – Há de tornar-se uma bela moça quando crescer.

Melissa: A senhora acha? – pergunta contente com o raro elogio. – Quando eu crescer quero ser bonita como a minha mãe e a senhora – confessa inocentemente.

Constância: Ah… você será sim, a réplica perfeita de sua mãe! – replica deixando escapar o pensamento hipócrita que lhe gargalhava na mente ao reconhecer na pequena alguns traços de Catarina. – Francisco vá até à cozinha pedir à Matilde que prepare um chá p´ra vóvó e uns biscoitos com doce p´ra você e sua irmã – pede desejosa por ficar a sós com Melissa. – Assim fazemos um lanche os três enquanto aguardamos que Edgar e Laura regressem.

Porque, por esta altura, a fartura não é de fato evidente e a miragem dos biscoitos sugeridos por Constância lhe atiçam a vontade do deleite, Francisco corre afoito em direção à cozinha, expondo Melissa à crueldade sem limites da baronesa. As derradeiras palavras de Catarina proferidas no abrigo de sua residência no dia anterior, ressoam-lhe ao ouvido, corroborando a decisão que acabara de tomar. Vendo-se com o tempo contado diante do eminente retorno do neto e da empregada, Constância achega-se a Melissa qual hiena farejando a carcaça, esbatendo o espaço que as apartava e, num sussurro hediondo sem desfazer o largo sorriso, principia a ação.

Constância: Vou-te contar um segredinho Melissa. Eu sei onde a Laura está, seu pai foi buscá-la mas eles ainda vão demorar. O que você acha se eu te levar até lá? Só nós duas e assim fazemos uma surpresa a todos, principalmente ao seu irmão já que você poderá dizer que foi a primeira a dar um beijo na mamãe hoje.

Melissa: É mesmo vóvó? Eu quero sim mas o Francisco também pode ir, eu não me importo – retruca alegre diante da possibilidade que pretensamente se lhe apresenta.

Constância: Ah, mas se ele vier não será mais um segredo só nosso e você não levará vantagem sobre ele. Sei bem que seu irmão sempre vence nas brincadeiras, você não ia gostar de ver a Laura antes dele? – insiste forçando o consentimento da menina.

A tenra infância priva Melissa do discernimento imprescindível para ler a maldade exposta na palestra de Constância pelo que, o aceno afirmativo ao convite não tarda a surgir e, pela mão da megera, a pequena deixa-se guiar sem a mais ínfima noção do que está prestes a sobrevir.

Por mais rapidez que imprima às pernas, Edgar tem a sensação de não sair do lugar e o corredor parece-lhe mais longo do que realmente é. Após várias voltas e alguns questionamentos, achara enfim a localização do sanatório e tudo o que lhe ocorre no momento é uma ânsia incontrolável de rever a esposa e levá-la dali. Tanto que nem se detêm analisando as instalações ou as pessoas, progredindo ligeiro somente à espreita de alguém que o encaminhe ao sítio certo e nem isso demora a realizar-se. Uma vez em frente à porta que lhe indicaram, despreza qualquer gesto educado e leva a mão ao punho que roda sem entraves. No interior, o médico que despoletara a descoberta fita-o intrigado, erguendo-se da cadeira que ocupava no exato instante em que Edgar se lança na sua direção.

Médico: Pois não senhor. Posso ajudá-lo?

Edgar: Minha esposa foi internada à revelia e eu estou aqui para buscá-la. O nome dela é Laura Vieira – informa apressado e pouco cortês.

Médico: Então o senhor é o marido, Dr. Edgar Vieira segundo fui informado, advogado – enfatiza tentando ler a posição do jovem que reconhece de imediato devido ao prestígio de que este dispõe no cumprimento da profissão.

Edgar: Sim, sou eu, agora, por favor, mande trazerem a minha esposa. Eu assino o que for preciso, responsabilizo-me integralmente por sua saída – fala impaciente por acelerar o processo.

Contudo, a reação do médico apanha Edgar desprevenido e a refuta que se segue destempera-lhe definitivamente os nervos e a escassa paciência.

Médico: Tem certeza que é isso que quer fazer, levá-la? Compreendo que estando a senhora grávida complica suas opções mas eu posso prestar-lhe o auxílio e a discrição necessárias para que a sua esposa permaneça em segurança num outro sanatório até ao término da gestação.

Edgar: Laura não é louca e se o senhor insistir mais uma vez eu caço a sua licença e processo esta instituição e o médico que minha sogra subornou para internar minha esposa ilegalmente – ameaça exasperado em clara dificuldade para não apontar o dedo à cara do homem.

Médico: Perdoe-me se o ofendi Dr. Vieira mas, como médico, é meu dever expor-lhe todas as opções. Porém, se assim deseja, acompanhe-me por obséquio.

Ao longo dos escassos passos de que carecem para atingir o quarto que mantém Laura em clausura, Edgar cogita uma infinidade de cenários mas nenhum se aproxima com clareza do assombro que o acomete quando a porta se abre às mãos do médico e as velas quase apagadas revelam o corpo acorrentado da jovem. O choque trava-lhe momentaneamente as forças e o advogado para aos pés da cama, observando aterrado o estado lastimável de sua esposa. Consciente, com os olhos dilatados pelas horas incontáveis que passara mirando o teto num choro contido e pesaroso que entretanto cessara, Laura sente o sangue voltar a pulsar-lhe nas veias e o coração bater acelerado contra o peito quando a voz de Edgar lhe chega aos ouvidos e o olhar encontra o dele na penumbra.

Laura: Edgar… é você? – pergunta incapaz de confiar nos próprios sentidos de tão aturdida que está.

Edgar: Sou eu meu amor – confirma emocionado acariciando-lhe a face com desvelo. – Soltem-na! – ordena num murmúrio desesperado voltando a encarar o médico que continua junto à porta, agora ladeado por um par de enfermeiras que logo cumprem a exigência do jovem.

A cada tira de couro que as duas mulheres desatam dos membros de Laura, algumas manchas arroxeadas sobressaem da pele da jovem, iluminadas pelo feixe de luz proveniente da porta aberta. Ao seu lado, Edgar esforça-se por combater o ímpeto protetor que lhe exacerba uma veia agressiva que até então desconhecia e que de repente sente crescer no compasso da determinação em castigar os carrascos de um ato tão desprezível. Concluída a tarefa e uma vez liberta, Laura faz menção de se mover mas o corpo não corresponde e, num impulso carregado de emoção, Edgar toma-a nos braços, encolhendo-a contra si num abraço que mais se assemelha a um nó impossível de desatar.

Edgar: Laura… o que fizerem com você meu amor?!

Laura: Me tira daqui Edgar, eu quero acordar desse pesadelo – suplica à medida que novas lágrimas brotam dos olhos escorrendo-lhe pela face descolorada.

Edgar: Vai ficar tudo bem, você vai ficar bem, eu prometo – sussurra num tom embargado, beijando docemente a testa suada da esposa.

Não se delongam ali por mais de um par de minutos, os suficientes para Edgar acomodar Laura nos braços que transforma em concha, onde a conserva protegida e segura até, com toda a calma e dedicação, a depositar no aconchego do automóvel que os levará de volta ao lar mas não necessariamente à paz que ambicionam.

Em plena sala de uma residência onde nunca havia estado e cuja decoração despojada estranha, Melissa permanece paralisada no alto da sua pequenez, avaliando os pormenores do espaço e de quando em vez fitando calada Constância que, de mãos dadas, lhe reprime os movimentos. Sempre que os lábios da pequena se movem adivinhando a formulação de qualquer inquirição, Constância sorri-lhe. Um sorriso não esboçado na totalidade, rico em hipocrisia com o qual controla a quietude inconsciente de Melissa enquanto aguarda em camuflada ânsia ser recebida por Catarina cujos passos já se ouvem descendo vagarosamente a escada. Ainda que alertada pela criada acerca das visitas, a cantora não afasta o regozijo quando se dá conta do teor de tais presenças. Seu entusiasmo é tão patente que, ao alcançar o último degrau, pondera o discurso, aproximando-se lentamente do alvo que a observa sorrindo tímida.

Catarina: Melissa! Que bom te ver… não vai dar-me um beijo? – pede dissimulada oferecendo o rosto ao cumprimento envergonhado da menina.

Melissa: Essa casa é da senhora? – questiona confusa observando tudo ao seu redor com a curiosidade típica da infância.

Catarina: Sim, e é sua também – afirma imprimindo uma doçura assustadora na voz.

Melissa: A vóvó disse que eu ia ver a mamãe, estou com saudade dela – fala entristecida como se estivesse prestes a desvendar a mentira.

Constância: Ah que pena meu anjinho – lamenta debochada. – Parece que seu pai e sua mãe saíram antes de nós chegarmos – constata diante da perspicácia da pequena.

Melissa: Então eu quero ir embora vóvó – decide detendo o olhar na baronesa.

Catarina: Antes você tem que provar um doce de abóbora, é o meu preferido, você vai gostar – interrompe lançando o isco com o qual pretende ganhar a confiança da criança.

Melissa: Tem biscoito também? – pergunta apropriadamente animada com a oferta da guloseima o que satisfaz Catarina e Constância. – Depois eu posso ir p´ra casa?

Constância: Depois… primeiro vá comer o doce na cozinha – sugere desafogada por ver-se livre da maçada.

Atraída pelo doce cujo gosto amargo ainda não provara realmente, Melissa caminha de encontro à criada que ao fundo da sala de estar a espera. Em pé, de frente uma para a outra, fuzilando-se mutuamente numa troca de olhares que, pode-se dizer, quase faísca, as rivais enfrentam-se naquela que esperam ser a última vez que se vêem.

Constância: Como vê, cumpri a minha parte no nosso acordo. A bastardinha está entregue e até ao final do dia alguém de minha inteira confiança trará a quantia em dinheiro.

Catarina: Não esperava nada menos do que isso de tão correta e ilustre pessoa – zomba desdenhando. – Confesso que a subestimei D. Constância. Não a julguei capaz de cometer mais essa maldade para com a sua filhinha.

Constância: Maldade? Ora minha cara, o que eu fiz será uma bênção na vida de Laura – refuta ajeitando uma mecha de cabelo. – Aliás, algo que eu deveria ter feito anos atrás, em vez de permitir que minha filha, educada para ser uma flor da sociedade, caísse na desgraça de ter que criar uma bastarda debaixo do mesmo teto que o meu neto legítimo.

Catarina: Pois muito bem, pode ir tranquila. No que depender de mim, Laura e Edgar jamais voltarão a colocar a vista em Melissa.

Constância: Assim espero. Agora vou-me que se faz tarde e já me sinto desfalecer de tristeza pelos tantos anos em que tive o desprazer de privar da sua presença. Voe cotovia, voe… e morra, morra longe de mim e da minha família.

Antes que Catarina possa maquinar a resposta ao augúrio, Constância dá-lhe as costas e lança-se ligeira porta fora, aliviada pelo sucesso da missão e ávida por receber em questão de dias a certeza do voo da odiada cotovia, seu noivo cúmplice e a bastarda que sempre desprezara.

Praticamente em simultâneo, impõe-se o contraste nas portas. À saída referida de Constância, Edgar retorna a casa carregando Laura num silêncio aterrador. Tendo passado a primeira curvatura que separa o hall de entrada da sala da residência, ambos atentam ao soluçar que impera vindo do sofá. Sentada na beira do confortável assento, com um semblante aflito e humedecido pelo choro, Matilde segura Francisco que, em seu colo e com os bracinhos envoltos no pescoço da carinhosa empregada, desaba num rio de lágrimas.

Matilde: Dr. Edgar… D. Laura! – exclama enxugando a face com a mão que abraçava o pequeno.

Edgar: Matilde, o que aconteceu? O que houve com o Francisco? – inquere aflito.

Laura: Filho, a mamãe já está aqui meu amor, está tudo bem – solta a custo levantando o rosto do ombro de Edgar onde se apoiava e mirando Francisco a quem deseja sossegar.

Francisco: Mas a Mel não – revela soluçando tão arduamente que as palavras vacilam.

Edgar: Matilde, pelo amor de Deus, diga logo o que houve – solicita impaciente.

Matilde: A Melissa… sumiu.


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