Um Argumento escrita por Goldfield
Um Argumento
– Hei! Senhor! – disse uma voz incógnita. – Senhor!
O sol batia na janela do carro. A voz continuava:
– Senhor...
Marcos acordou de seus pensamentos com a figura do guarda de trânsito ao seu lado. Cochilava.
– Senhor! Você estacionou na frente daquela garagem! – continuou o guarda.
Sonolento, Marcos, jovem de vinte e sete anos, cabelos loiros e olhos castanhos, respondeu:
– E daí?
– Como “e daí?”. No estado de São Paulo é proibido estacionar em frente de uma garagem.
– Mas veja. Não há nenhum carro lá. É uma casa velha, calma, onde possivelmente vive um casal de velhinhos, que possivelmente não tem carro e, se tiverem, são duas e meia da tarde e todos estão no trabalho!
– Mas e se um dos velhinhos passasse mal e necessitasse de uma ambulância?
– Ela pode parar em frente e colocam a pessoa numa maca!
– E se ele estiver com uma insolação e a ambulância precisar entrar na garagem coberta?
– Coloquem um guarda-sol sobre o dito cujo!
– Ora... Fiquei sem argumentos... Aqui está sua multa!
– Que roubo! – disse Marcos, vendo o valor da infração. – Até parece que atropelei alguém!
– Não discuta! Bom dia! Pagará a multa com o imposto do carro! São só alguns pontinhos na carteira...
– Pois saiba que vou bater palmas nesta casa para saber quem mora aí!
– Pois vá! Duvido que concordarão com você.
Marcos desceu do carro, seguiu até a frente da casa e bateu palmas duas vezes, até que, na terceira, uma senhora de uns setenta anos abriu a porta, perguntando:
– Pois não?
– Não disse? – exclamou Marcos. – A senhora e seu marido têm carro? – perguntou à velha.
– Sim. O Epaminondas (nome do jurássico marido) tem uma Brasília 78.
– Não disse? – ironizou o guarda, com um sorriso de triunfo.
Marcos não se deu por vencido:
– E onde está, o senhor Epaminondas?
– O senhor Epaminondas da Silva Costa está no trabalho!
– E no que trabalha?
– É balconista da farmácia lá da esquina!
– E por que vai de carro?
– É a artrite!
Os dois, olhando para a esquina, viram a farmácia, chamada “Drogaria Reis”.
– Viu? – disse Marcos. – O velho trabalha logo ali e não precisa nem usar carro pra trabalhar!
– Nada disso – protestou o guarda. – Vamos até a farmácia para pedir a opinião do velho.
– Tá!
Os dois foram até a farmácia, onde Epaminondas, com a velocidade de alguém que não consegue tomar conta de uma tartaruga centenária assinava uma prescrição médica de uma senhora hipocondríaca.
Após terminar o que fazia e ver a senhora sair do local com três sacolas cheias de medicamentos, pergunta, com voz jurássica:
– Pois não?
– O senhor é Epaminondas da Silva Costa? – perguntou o guarda, coçando o bigode.
– Ao seu dispor!
– O senhor é dono daquela Brasília 78 e mora naquela casa aqui perto?
– Exatamente, mas a Brasília não é minha, e sim do meu filho Pedro, que mora lá em Diadema!
– O senhor pode nos dar o endereço dele?
Marcos bufou enquanto o velho anotava o endereço do filho.
Agradecendo, os dois saíram da farmácia.
– Nós vamos no seu carro! – disse o guarda.
– Tudo bem. Vou provar que estou certo nem se tiver que ir até a Conchinchina!
Os dois entraram no carro de Marcos, um fusca usado pior que a encomenda, e foram até Diadema à procura de Pedro, filho de Epaminondas que tinha pegado a Brasília 78 emprestada.
Na casa do filho de Epaminondas da Costa Silva (acho que inverti o nome), havia grande barulho.
Depois de o guarda fazer um gesto obsceno para Marcos, que se recusava a descer, o autor do argumento bateu palmas no portão da residência.
Após umas cinco batidas, uma mulher feia, com uma verruga na ponta do nariz, e, aparentemente, uns cento e vinte quilos de peso, perguntou a Marcos, que havia ficado paralisado ao ver a bizarra figura feminina:
– O que o senhor quer, bonitão?
Marcos engoliu seco e respondeu:
– É aí que mora o senhor Pedro, filho de Epaminondas da Costa, que trabalha na Drogaria Reis, lá em Osasco?
– Sim, gatão.
No carro, o guarda chorava de tanto rir do infortunado adversário.
A baleia abriu o portão e Marcos entrou, vagarosamente, temendo-a.
Os dois entraram casa adentro, onde estava havendo um churrasco nos fundos.
Após atravessar a cozinha e beliscar uns dois salgadinhos, pois estava com fome, Marcos perguntou:
– Quem é o senhor Pedro?
– Sou eu! – respondeu um homem gordo e risonho, empurrando uns outros três magros, que provavelmente era o conjugue da mulher inicial, pois a casa era adaptada, bem espaçosa.
– O que foi? – indagou o filho do farmacêutico.
– O senhor é dono de uma Brasília 78 que emprestou a seu pai, o senhor Epaminondas da Costa Silva? (que memória fraca para lembrar nomes).
– Eu emprestei o carro para o meu pai, mas ele não é meu. Eu só fiz a generosidade, pois ele tinha que levar minha mãe para o hospital Al...Alber...Como é que se chama mesmo?
– Esqueça. E de quem é ela, então?
– Do meu grande amigo, o Laércio, dono do Bar do Jabuti, lá em Guarulhos!
Marcos limpou a testa suada e saiu rapidamente, evitando a gorda criatura que lhe paquerara na entrada. Antes de sair, ainda beliscou outro salgadinho.
Quase pulando o portão da casa, Marcos entrou no carro, onde o guarda tinha os olhos vermelhos pelo riso.
– Então passou apuros?
– Cale-se. Vamos para Guarulhos, pois lá mora um tal de Laércio, que emprestou a Brasília para o Pedro, que emprestou para o Epaminondas.
– Sim, majestade.
O guarda pisou no acelerador do fusca, ainda rindo.
Lá pelas cinco, os dois homens chegaram a Guarulhos. Foi custoso encontrar o Bar do Jabuti, mas, quando já perdiam as esperanças, o encontraram numa ruinha pobre, na beira de um barranco, sem calçamento nem asfalto.
– Agora é sua vez! – disse Marcos, recusando-se abruptamente a sair do carro.
– Poderia até lhe prender, mas quero provar que estou certo!
Imponente, o guarda saiu do carro e entrou no bar.
Ao entrar no recinto, o guarda perdeu toda a coragem. Havia ali gente da pior linha: bandidos, batedores de carteira, vendedores de droga...
E a anta quadrada estava fardada... Escutem só...
De frente para o balcão, observado por olhares soturnos, o guarda de trânsito perguntou a um outro homem, que se encontrava do outro lado:
– É o senhor Laércio, dono da Brasília 78 que emprestou para o senhor Pedro, que emprestou para o senhor seu pai, Epaminondas Silva da Costa? Ou será ao contrário...
O tom de voz de prisão que o guarda usou e sua farda fez um bêbado dizer:
– Ninguém vai prender o Laércio! Mexeu com ele, mexeu com a gente!
Foi a vez do guarda engolir seco.
– Não – respondeu o proprietário do boteco. – Por quê?
Querendo apressar as coisas para sair dali, o guarda respondeu:
– Por nada. Quem é o dono então?
– O senhor Augusto Soares, dono de uma oficina do mesmo nome, que mora lá em Osasco.
Que bom. As coisas estavam voltando para o princípio. O guarda saiu do bar na velocidade de uma bala e entrou no carro, onde Marcos chorava de rir.
– Foi a sua vez?
– Para Osasco!
Os dois seguiram de volta para o bairro onde residia Epaminondas.
Já eram seis. A dupla dinâmica pára o carro em frente da oficina Soares, que, para a surpresa dos dois, ficava a uns dois quarteirões da casa do velho.
Dessa vez, os dois desceram.
Entraram na oficina, perguntaram ao assistente de Augusto pelo patrão e, vendo-o, Marcos perguntou:
– Tu és dono de uma Brasília 78 que emprestou para o Laércio, que emprestou para o Laércio...
– O quê?
– Que emprestou para o Pedro, que emprestou para seu pai, o senhor Epaminondas... Não sei o que mais?
– Sim, mas dei o carro para ele faz uma hora!
– Por quê?
– Ele faleceu faz esse tempo. Foi o último pedido dele. E, por falta de filhos trabalhadores, num testamento improvisado que escreveu no leito de morte, deixou a Brasília 78 para dois homens que vieram à sua farmácia lá pelas três da tarde...
Os dois já corriam na direção da casa do falecido Epaminondas.
No começo, Marcos tinha vantagem, depois, o guarda, mas os dois chegaram juntos, num desespero digno de uma maratona...
Enfim, chegaram à casa do velho, mas não viram nem sinal do carro.
Marcos perguntou à mulher de Epaminondas, que observava tudo pela janela.
– Onde está o carro?
– Meu Deus! Roubaram a Brasília! Esta cidade de São Paulo...
Ao ouvir tal coisa, o guarda jogou o quepe no chão de raiva. Marcos até perdeu o rumo de seu carro.
Moral da história: um argumento pode ser bom, mas, às vezes, pode ser uma dolorosa perda de tempo...
Luiz Fabrício de Oliveira Mendes – “Goldfield”.
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