Naya: Crônicas de Atlas escrita por Antonio Filho


Capítulo 5
Capítulo II: Olhos para um Novo Mundo: Pandora. parte 2




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Logo após acordar na praia e receber a mensagem da rainha pandoriana, Adna seguia para a cidade, aproveitando a brisa oceânica e a água batendo em seus pés gentil e periodicamente. A caminhada se fazia tão restauradora quanto a visão das crianças brincando na areia, cavando e construindo lindos castelos que logo seriam apagados pelas ondas do mar.

Lunara não estava muito distante. Ela já conseguia ver as construções mais altas, além de uma grande movimentação por toda a orla. Nela surgiam cada vez mais quiosques, hotéis e charmosas casas praianas a medida que se aproximava. A atmosfera tomava cada vez mais as feições da cidade comercial.

‒ Uma Cidadezinha charmosa, até.

Apressando-se para chegar cedo, enquanto o sol da manhã ainda tocava agradável, a maga pensou eufórica em conjurar um feitiço simples para correr mais rapidamente. Seria perfeito. Sinandrin havia dito em sua mensagem psíquica que ela conseguiria encontrar Naya em algum lugar da cidade. Então, quanto mais rápido chegasse, mais poderia aproveitar a estadia em Nimphos sem preocupações, além de tentar descobrir uma maneira de como evitar queimar a pele.

Horas atrás, a mágica estaria em seus pés com um pensamento. Mas com o pouco poder que tinha disponível, tocar os membros inferiores com as mãos e desenhar um símbolo rúnico na terra e no ar era necessário.

Disparada. Adna correu sobre a areia morna metros e mais metros, cansando-se após alguns poucos minutos depois do estouro, suando como se tivesse corrido uma maratona e com palpitações que pareciam anunciar um ataque cardíaco. A fada só conseguia pensar numa coisa: “uma princesa não foi feita para correr”.

Finalmente, chegando à cidade e recobrando o fôlego para perdê-lo outra vez, a fada se espantou. Lunara era muito diferente das cidades valerianas. Estas normalmente calmas e pouco movimentadas, devido à população relativamente baixa e bem distribuída, pareciam mais “organizadas”. Essa cidade tratava-se de uma das grandes, cheia de pessoas de todas as raças e cores, feiras por toda parte e muito barulho.

Comerciantes gritavam ofertas, carros e carruagens a toda velocidade pelas estradas às vezes largas e às vezes estreitas. Artistas de rua apresentando-se nas praças e calçadas recebendo chuvas de aplausos pelas magias e ilusões exibidas. Dinamismo, energia.

Reparou meio ao frenesi que o local aos poucos tomava as cores azul e amarelo, infestando-se de faixas e lanternas colocadas pelos próprios cidadãos. Eles cantavam e dançavam pelas ruas, felizes como se nem estivessem trabalhando. Confusão. Adna definiria Lunara com apenas essa palavra. Não no sentido de caótico, mas por esbanjar tanta alegria era quase impossível não entrar na festa. Tantas raças ocupavam as ruas: trolls, centauros, elfos, gnomos, anões... Tão incontáveis os tipos quanto numerosos pela cidade.

A diferença a fascinava. Claro, a Elvellon já havia visitado incontáveis reinos por Magicália e mundo afora, mas sempre os vira pela ótica real. Aquele universo de luxo e exclusividade, isolado por muralhas e guardas, extremamente semelhante em suas mais diversas variações. Tudo perfeito aos mínimos detalhes para criar a ambientação idealizada pelos mais exigentes artistas e decoradores da alta sociedade. Os profissionais incumbiam-se de materializar os sonhos das fadas e elfos, inalcançáveis por sua própria natureza.

Cada pintura, vitral ou lustre. Até mesmo o formato das edificações deveriam ser previamente definidas para que harmonizassem com a paisagem natural. Os jardins escondiam a mais pura geometria em suas variadas configurações para que adequassem a correta mistura de aromas florais. “O ápice da arquitetura”. Tudo para agradar de forma ordenada os sentidos daqueles que detinham o poder absoluto.

Mas agora era diferente. Perceber o mundo plebeu fora das fronteiras de Valerian ocorria de forma inédita. Necessitava-se de algum tempo para se acostumar à confusão que a cidade provocava em seus mais variados estímulos.

Sentir o calor do povo, perceber os cheiros que mudavam rapidamente de perfumes doces das mulheres para o fedor extremo de lixo sendo carregado para os depósitos. Ouvia-se de tudo: desde pessoas conversando com variados sotaques e línguas que nem de longe pareciam com élfico ou sílfico, até cumprimentos de desconhecidos desejando bom dia e a benção de Talassar e Pandora em sua vida. O poderoso deus Oceano e a altíssima deusa da Lua eram as divindades da nação de fato. Como Sinandrin já havia mencionado no passado, apenas confirmava as informações das aulas de história.

Entretanto, o mais estranho e divergente era certamente a relação das raças. Adna nunca havia visto tantas raças ao mesmo tempo num só local. As cores e tamanhos tingiam as ruas com uma diversidade que seria invejável, se assim fosse desejado por Valerian e diversas outras nações magicalianas. Gnomos, minotauros, humanos, anões, elfos, ogros, ninfas...

Em casa, o usual se limitava apenas às variações ligadas aos élficos e feéricos. Poucos eram frutos da miscigenação na terra rubra, diferente do que se via aqui. Cultura e lei talvez fossem os fatores que diferenciavam as atitudes de cada povo em relação a assuntos como esse, tema que tornava cada reino único em toda Atlas.

Adna apreciava isso. A diversidade do mundo. Achava hipocrisia da sua parte de sentir mais confortável dentre seus semelhantes, mas a soma de culturas que formavam Atlas faziam parte de seus interesses. Desde as religiões caelanista e sotionista orientais, aos cultos de Nimphos. Quanto mais existisse, mais significa a vida de um feérico valeria.

Valerian não possuía religião. Adorava-se o conhecimento, a magia e a filosofia. A maioria não acreditava numa vida após a morte, diziam que a autossuficiência era o “último passo da evolução”. Adna negava isso em segredo. Não poderia correr o risco de ser alvo de críticas públicas, por isso preferia manter-se calada. Mas o que os outros alegavam abrir os olhos para a verdade causava efeito contrário na fada. O conhecimento que obtivera com décadas de estudo a faziam duvidar. “Como toda essa perfeição pode terminar aqui? Na terra. Nós não pertencemos apenas a Atlas. Somos personagens de uma pintura maior”.

Procurando algum lugar para sentar e pensar numa das praças, Adna sentiu puxarem sua mão. Quando se deu conta, já estava numa roda de dança. Em circunstâncias normais acabaria saindo de lá como se nada tivesse acontecido, morrendo de vergonha, mas que se dane: não faria mal deixar-se levar pela correnteza de vez em quando.

Tentando acompanhar e copiar os passos das pessoas de modo mais autêntico possível, trocando de casal constantemente no círculo de homens e mulheres dançantes, a fada sentia-se fisgada pela simpatia do povo. O tempo passava rápido naquela loucura.

Tambores, violões e cornetas soavam tão aleatórios quanto a dança festiva. Não se precisava de nenhuma técnica, apenas se divertir, estampar um sorriso no rosto e cantar como soubesse, na língua que desejasse. Talvez estivesse precisando disso mesmo: abandonar a formalidade da realeza por um momento e entregar-se aos prazeres que essa viagem poderia oferecer.

Acabou admitindo para si: deveria estar precisando disso tanto quanto Naya. “É mesmo!”. Já havia esquecido o porquê de estar na cidade. No entanto, seria impossível encontrá-la nesse momento. O melhor a fazer era achar um local para ficar enquanto procurava uma solução. Ela não deveria estar sendo atacada por um ogro ou algo do tipo: “não mataria ninguém dançar mais um pouco...”.

Suada, cansada e feliz, Adna andava novamente pelas ruas. Às vezes, quase sendo atropelada pelos numerosos veículos devido sua falta de atenção. Durante o passeio a fada encontrou uma pousada chamada “Repouso Lunar”.

Ela não atraía tantos olhares para si quanto as outras pela qual passara em seu caminho. Nada de letreiros luminosos ou apelações que tentasse chamar muita atenção, apenas a entrada esculpida em madeira e uma imagem de uma sutil lua crescente azulada sobre na porta, ligeiramente corroída nas bordas. A simplicidade a fazia se destacar diante das demais, chamando a atenção da fada justamente por ser a única diferente. Uma simples questão de singularidade que atraía o gosto da fada.

Entrando no estabelecimento, por sinal muito distinto das hospedarias em que costumava ficar quando fugia com Naya para as cidades em Valerian, Adna dirigiu-se até a recepção. O local tinha sua beleza, erguido alto e adorável, lembrando muito mais o aspecto de uma casa interiorana que uma hospedaria de grandes cidades. Decorada em madeira e vitrais transparentes, espantava o calor absorvido pelo teto com orbes encantados e runas aéreas que geravam brisas frias, transpassando uma sensação acolhedora de boas-vindas.

O balcão da recepção estava vazio. Aguardando alguns minutos, alguém deveria chegar para atendê-la. Sentando-se no sofá, a maga viu uma sala no fim do corredor. Do melhor ângulo que conseguia observar, enxergou uma mesa e algumas pessoas lanchando. Tratava-se um refeitório ou algo parecido.

Esperou. Esperou. Mais um pouco. Adna percebeu apenas depois de um tempo pelo qual não se orgulhara que o atendente era um gnomo extremamente baixinho para o balcão. “Deveriam dar um banquinho para ele...”.

‒ Olá, bom dia! Gostaria de alugar um quarto?

‒ Sim! ‒ Ao se aproximar, ela notou que ele já estava em um banquinho.

‒ Custam 200 lunis por noite, com alimentação e serviço de quarto inclusos.

Adna havia esquecido. Nas cidades as pessoas precisavam pagar por serviços, e ela não carregava nenhum dinheiro consigo. Havia esperado tanto pelo gnomo, agora se tratava de uma questão de honra. Deveria haver uma solução de emergência... Lembrou-se de suas joias.

Tirando um de seus braceletes dourados, ela o mostrou para o recepcionista. Seus olhos brilharam instantaneamente após examinar o adorno e perceber que se tratava de uma peça de ouro maciço, abrindo um largo sorriso ganancioso.

‒ Muito bem, aqui está a chave de um bom quarto. Fique o quanto quiser e aproveite a estadia!

Satisfeita, subiu ao segundo andar, onde estava seus aposentos. Adna entrou e se deparou com um local assim como imaginara: limpo, espaçoso e organizado, com uma janelinha em formato de losango voltada para a rua, agora ainda mais movimentada que momentos atrás. Tudo o que conseguia pensar era que a poucos metros de distância um chuveiro a esperava e, logo a sua frente, uma cama de casal entupida de travesseiros e lençóis macios até para seus olhos a seduzia.

Numa vistoria um pouco menos ébria, percebeu que havia uma caixinha sobre um dos travesseiros da cama e, a fada, tomada pela curiosidade a abriu. Uma pequena e agradável surpresa: Trufas.

Provavelmente eles não sabiam, mas acertaram em cheio. Ela adorava guloseimas. Na verdade, qualquer coisa doce embriagada com o mais rico açúcar agradaria. Toda vez que se entupia com o que suas servas mais próximas diziam ser “besteiras”, Adna agradecia aos espíritos por ter nascido como uma fada, caso contrário já estaria gorda como um yeti.

Deitando-se na cama, traindo as expectativas do chuveiro derrotado pelas armas de tentação do leito, ela saboreava os docinhos brancos cobertos de coco e bem-casados entupidos de calda. A fada pensava em como contatar sua prima, quando sentiu os olhos ficarem cada vez mais pesados e acabou abatida pelo sono. Nem sequer pensou em resistir ao torpor, pois estava cansada da caminhada e o conforto da cama e dos travesseiros eram muito convidativos.

‒ Chegamos!

O grito rouco interrompeu a conversa de Naya e Ariel, voltando a atenção dos dois para os sons da cidade, ignorados até então. Hora de descer. Com a ajuda do elfo, a fada deveria conseguir realizar a missão sem embaraços e novas escoriações.

‒ Muito obrigada Ariel, agradeça a seu pai por mim. Foi muito bom te conhecer! ‒ Disse Naya, enquanto segurava a mão dele durante a saída. “Cuidado, só mais um degrau...”

‒ Claro, pode deixar que irei. Caso não ache sua prima logo, está aqui o endereço de onde trabalho. Qualquer motorista da cidade pode te deixar lá. ‒ Procurando um cartão de sua loja pelos bolsos da camisa e da calça, o elfo entrega-o para a fada, partindo com o galopar dos cavalos, adentrando novamente na tenda quando perdera a garota de vista.

Após ver a carroça sumindo dentre as ruas cheias de veículos, Naya deparou-se finalmente com a verdadeira cidade, longe de ser minúscula como havia pensado. A entrada de Lunara era aprazível: uma grande praça arborizada e ladrilhada num círculo verde perfeitamente simétrico. Ele circundava uma estátua enormemente chamativa e marmórea. Ao aproximar-se dela, sentindo-se ainda menor, a garota conseguia ler numa escritura o título de “Espírito da Lua”.

O monumento daquela bela mulher tinha os cabelos brancos e um longo vestido ornamentado: a forma personificada da Lua. Sua mão direita empunhava um cajado, lindo, feito de algum mineral que a Elvellon poderia jurar ser pedra da própria lua. Sua esquerda, um escudo de bronze, espinhoso e rústico. Percebeu que ele formava uma figura do sol meio aos símbolos incrustados. No pedestal, havia inscrições numa língua antiga, hieroglífica. A tradução lapidada em élfico moderno dizia: “Glorificais a senhora da luz e da noite. A lua é o teu reino celestial e do firmamento, abençoais os mortais dessa terra devota à tua divindade”.

Não restavam dúvidas sobre a santidade dos espíritos lunares nessa região. Naya achava intrigante a devoção dos povos do sul, assim como acontecia no norte de Magicália. Em Valerian cultuavam-se apenas o conhecimento e a magia, não uma entidade específica. Talvez há muito tempo, onde os livros de história não alcançam, os valerianos tivessem se apoiado numa força maior, assim como é feito atualmente em Pandora ou mesmo no País do Fogo. Mas seu povo sabia que agora só podia contar consigo mesmo e, por milênios, tem funcionado.

Seguindo para uma vistosa macieira logo atrás da estátua, Naya atrai magicamente uma das grandes e vermelhas maçãs até sua mão: a fome esquecida corroía seu estômago ferozmente agora que sua mente estava desocupada. Encostando-se contra o tronco da árvore ela sentou-se, comendo a saborosa fruta.

A sensação parecia com a de quando estava nos bosques de seu reino. Embora o cenário fosse completamente diferente, Naya conseguia sentir a essência vibrante da natureza adentrar sua alma. Era cidade, mas o natural estava presente. Adultos e crianças dividiam espaço com esquilos que corriam pela grama, um dos engraçadinhos escalara sua perna fazendo cócegas que conseguiram tirar um sorriso bobo da fada. Borboletas coloriam os ares e abelhas carregavam seu néctar para as colmeias. Simplesmente tranquilidade.

Satisfeita, fechou os olhos e concentrou seu poder mágico. Agora provavelmente estaria perto o suficiente de Adna para contatá-la mentalmente com um feitiço básico. A magia era simples: consistia em achar a aura mágica de um indivíduo dentro de certa área. Cada ser emana de si involuntariamente uma quantidade ínfima de mana, um rastro único e pessoal. Essas “migalhas” podem ser usadas para localizar conhecidos e manter uma conexão mental, caso o conjurador e o alvo tenham domínio básico sobre telepatia. Caso contrário, pode-se mandar apenas recados mentais.

“Adna, se estiver me ouvindo, já estou em Lunara...”.

“Naya! Também estou aqui! Numa hospedaria chamada Repouso Lunar, compre com alguma de suas joias a viagem com um motorista!”

“É... só tem um problema, eu não estou usando nenhuma...”.

“Você e suas manias inconvenientes... espere, logo contatarei você”.

Sentindo a conexão mental cortada, a fada abre os olhos e se depara com um gato branco, sentado, olhando fixamente para ela. O bichano balançava a cauda felpuda.

A simpatia foi instantânea; Naya ouvia de sua mãe que muitos magos têm animais ou espíritos menores que os ajudam ou simplesmente os fazem companhia, sendo conhecidos como Familiares. Eles poderiam ser comprados, domados ou simplesmente encontrados, bem diferente das invocações mágicas de batalha dos magos astrais, que traziam seres até de outras dimensões.

Não se precisava de algum talento específico para domesticar ou tornar-se amigo de um familiar, o que a aliviava. Se existia um ramo da magia arcana que a fada poderia se considerar péssima, Invocação Astral era seu nome, além da magia de cura. Inveja a parte, ambas se faziam perfeitamente dominadas pela prima.

Tocando a cabeça do gato com a ponta dos dedos, sentindo o animal, Naya poderia criar um laço harmônico com ele, adotando-o, invocando-o quando quisesse. Contanto que fizesse um pouco de esforço, seu “talento” para invocações levaria o felino para qualquer ligar.

Segurando o gato com as duas mãos e erguendo-o para o alto, a fada diz:

‒ Gatinho, você quer ser meu Familiar?

O gato miou, parecia feliz.

‒ Então, agora somos amigos. Seu nome será Floquinho


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