Contos De Gaveta escrita por Mamy Fortes


Capítulo 35
E eu nem sei se você existe.


Notas iniciais do capítulo

Adoro o fato de que tenho 48 leitores e o último capítulo não teve um fucking comentário. Vou levar isso como o fato de que vocês não gostaram. E agora, vou postar um texto que foi escrito pra Mariah, num amigo secreto. Lá vai.



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Seu pé estava do lado da minha cabeça, e eu tive que cobri-lo com a canga, porque tinha aflição máxima de pés. Fora que o seus eram feios. E eu te disse que se tivéssemos um filho algum dia, ele teria de ter meus pés. Só que você nunca tinha dito que queria filhos, então jogou isso na minha cara, rindo abertamente. Eu também não queria, foi uma constatação, apenas. Querer eram outros quinhentos.

Naquele dia, você viu pelo menos três corações nas nuvens, e disse que era tudo culpa minha. Me culpava até das suas abstrações subjetivas, mas eu não me importava. Você iria embora no minuto seguinte, e não havia muito tempo. É que fingíamos ignorar o fato. E eu fingia muito bem mesmo. Eu devia ter sido ator, quando tive a chance, porque era melhor em mentir do que em muitas coisas que teria que fazer. Aliás, foi essa a desculpa que te dei quando você descobriu que eu era um grande mentiroso. É tão difícil eu ser bom em alguma coisa que quando acontece não posso desperdiçar cada chance de demonstrar.

Sua mãe ligou duas vezes, perguntando por que você não chegava. Você sempre fingia cair a linha. A falta de coragem para enfrenta-la me incomodou, por um tempo, porque sua mãe era legal, e aceitaria o fato de que você estava apenas praticando o ócio, comigo. Sua mãe gostava de mim. Você me disse que era pelo fato de ela ter sido pobre tanto tempo que acabou se apaixonando por tudo que era assim, precário, como eu. Nunca perdeu uma chance de me alfinetar.

Eu não lembro quando foi que te dei meu relógio de pulso. Mas hoje gosto de pensar que foi quando fiquei te esperando por três horas, você chegou como se tivesse sido pontual, e eu joguei o aparelho em cima de você, dizendo que não servia pra nada, como meu pai tinha feito uma vez quando eu cheguei de madrugada. Pensando bem, até meu intestino já tinha digerido o fato de que você se atrasava, e tinha um tempo próprio, porque até ele parara de dar voltas de expectativa enquanto eu te esperava.

Quando cheguei ao apartamento e gritei pelo meu avô, ele não respondeu. Eu corri, pensei que ele tivesse morrido. Mas ele estava só dormindo. E percebi que te deixar tinha me deixado num estado de nervos e espera e ansiedade que eu quase matei meu avô mentalmente porque estava esperando uma tragédia. É que eu fiquei tanto tempo ensaiando nossa despedida como trágica que quando não foi aquele sentimento ficou esperando se prender em qualquer outro ocorrido.

Na verdade, eu sempre complexei as coisas simples. Por isso que sempre fui tão complexo. As coisas complexadas pareciam sempre mais atraentes. Foi desse jeito, inclusive, que comecei a visitar o asilo da sua avó. Os velhos, que não eram como meu avô, porque não tinham mais convívio com a família diariamente, sempre tinham grandes problemas nas pequenas coisas. Ai a gente se conheceu, cê tava passando férias. E era muito mais complexada que os velhos. Fazia carnaval toda vez que o cabelo ventava um pouco.

Eu gostei de você de cara, com aqueles olhos grandes. É que meu pintor favorito, Modigliani, dizia que os olhos eram janelas da alma, e aquelas janelas tão grandes só podiam ter uma casa também grande. Realmente, nesse caso, a coisa se confirmou. Cê tinha a maior alma que eu já tinha visto, e eu tive trabalho em me manter são longe dela, em me manter individuo, sem me tornar parte. Por sorte agora você já se foi, não corro mais riscos.

Meu espelho, hoje de manhã, me acusou de ter te inventado. Porque ninguém além de mim te conheceu por aqui, e o abrigo de velhos fechou. Na internet, diz que fechou há 5 anos. Só que eu sei que não sou capaz de inventar algo tão completo. Minhas histórias sempre foram rejeitadas por serem superficiais, eu não teria me dado ao trabalho de trabalhar tanto assim em você. Mas meu médico diz que a culpa é do remédio, que me faz dormir demais, e me traz alucinações. Ele me disse que no dia seis, quando a gente foi na estreia daquele filme ruim, eu estava internado. Como eu poderia estar em dois lugares? Eu não acredito nele.

O problema é que hoje de manhã eu achei no meu computador uma história igualzinha a nossa. E achei o laudo de que tinha sido atropelado e ficado internado por um mês inteiro. Quando perguntei pro meu avô, ele disse que já era tempo de eu saber que estava escrevendo umas coisas, bati a cabeça, e entrei na realidade que tinha escrito. Não sei se acredito. Não vai fazer muita diferença, porque tínhamos feito um pacto de não nos procurar mais, então qualquer que seja a versão verdadeira, daqui pra frente eu sigo mesmo sem você. Só tô te escrevendo que é pra se um dia eu perder a memória de novo, saber que eu nunca soube qual era a sua. Mas que foi divertido, tenha sido como for. Então te devo um obrigado. Obrigado.

A propósito, talvez eu quisesse filhos. Talvez eu quisesse também ter tirado uma foto sua. Mas talvez eu só quisesse ter feito você ficar, pra poder ter tido certeza de que cê era real. Porque a partir de agora, você sempre vai ser minha maior dúvida.


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Notas finais do capítulo

E ai, o que acham? Comentem, por favor. Até breve.



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