Contos De Gaveta escrita por Mamy Fortes


Capítulo 33
Como é a chuva?


Notas iniciais do capítulo

Oi gente. Ando meio enferrujada em textos que antes me eram de fácil escrita, e por isso os últimos eram de um tipo... diferente. Mas resolvi tentar voltar aos velhos tempos, pra não perder a prática cem por cento. Então só me digam se estiver patético demais, ok?



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Saiu para a varanda, e na primeira brisa perdeu o que pensava, uma ideia que não oferecia resistência. Ali, sentada, com a mente vazia, ela era rainha do mundo, e do próprio nariz. Lá dentro, todos tinham piedade demais, e piedade nunca fez bem a ninguém. Não conhecia as cores, mas podia jurar que piedade deveria ser uma cor difícil de se olhar por muito tempo.

O homem veio em seguida, com o arrastar de pés dedurando a chegada que ela não poderia descobrir de outro jeito. "Que cor está o céu?", perguntou. O céu estava cinzento, meio tempestuoso. Mas ele achou por bem dizê-lo bonito, azul, ensolarado. "Meu filho, está mentindo. Se estivesse ensolarado, como diz, eu sentiria calor. Além do mais, o vento tem cheiro de chuva, já." Dito isso, fez-se silêncio.

O moço matutava, não conseguia entender porque ela perguntara sabendo a resposta. Na verdade, não entendia sequer o propósito da indagação, porque ela nunca entenderia sem ver. Como que lhe adivinhando os pensamentos, ela disse, "Marcos, eu sei que nunca vou enxergar. E eu nunca enxerguei. Mas meu pai, toda manhã, me descrevia o céu, e dizia que para que ele fosse meu bastava uma curva a mais no 'c' e um desgaste no acento, porque é o que muda de 'céu' para 'seu'. Ele era bruto, não sabia que eu nunca veria o 's', o 'c', o acento ou as palavras 'seu' e 'céu' a ponto de entender o trocadilho, mas ele não me tinha piedade, e me passava a mensagem. Aqui todo mundo tem dó demais."

Marcos não era homem bruto. Tinha estudado, feito enfermagem, aprendido braille, se especializado em casos de cegueira, mas nunca tinha tido sensibilidade, como o pai de sua velha amiga. Se deu conta disso no mesmo instante em que a ouviu falar. Aliás, de que lhe adiantava ter assistido "Intocáveis" sem se dar conta da ideia passada pelo filme? Era um péssimo interpretador.

Descreveu, então, o céu como se cada palavra fosse uma pincelada de Renoir no quadro da memória de Edith, usando termos que usaria para descrever ao filho mais novo, caso o menino fechasse os olhos e lhe perguntasse. Sem se preocupar se ela entenderia os termos por serem ou não imagéticos. Por vários minutos ficou falando, descrevendo a nuvem que parecia um elefante enegrecido em lama, o raio que caia mais adiante e iluminava o que parecia um duende, a forma abaloada da cumulonimbus, e cada coisa que ocupava-lhe o olhar. Quando os primeiros pingos caíram em sua face, parou, assustado, como se aquela fosse a primeira vez que visse a chuva.

Olhou para Edith, e, por um instante, não conseguiu decidir se aquilo que a escoria pelo rosto eram gotas de chuva ou lágrimas. Pensou em perguntar, mas a mulher o calou. "Deixe-me aqui. Deixe-me sozinha.". Ao ouvir o arrastar dos passos novamente, e sentir a ausência, ela voltou as angulosas maças do rosto para o alto, e deixou que as molhasse pelo pranto e pela água que caia, sem saber ser observada pelo vidro. Naquele momento, ela tinha visto na memória algo que só podia ser o céu, e tinha se sentido menos cega do que nunca. Queria sempre se sentir assim, então ficou, paralisada, pelo que pareceram horas, se deixando encharcar.

Marcos, com medo de quebrar algo frágil, que ele sentia, mas não podia ver, a deixou ficar, mas não por tempo demais. Temia que se resfriasse. Porém, foi com surpresa que recebeu o abraço mudo da outra. Se encharcou também sem que se importasse. Não precisavam dizer nada, aliás, porque naquele dia ela era menos cega e ele menos cuidador, sendo ambos mais amigos.

Quando o momento acabou, encerrado pelo tempo, sentiram frio, e foram banhar-se. Voltaram a se encontrar cerca de meia hora depois, no jantar. Era frango ao molho de maracujá. Edith lembrou a Marcos da vez em que ele lhe contara que o primeiro livro que lera não tinha palavras, somente dobraduras e figuras que contavam histórias. Disse-lhe que acontecera exatamente o contrário com ela. As palavras é que tinham-se desdobrado como o mais perto de imagens que ela poderia ver. Isso o fez sorrir.

Dormiram em seguida, ouvindo The Writing's On The Wall, que parecia a música mais inadequada para ouvirem. Sonharam que eram o que não eram, e foram felizes. E aquele sentimento bom, que era pra durar, durou. Porque o corpo de Edith, que tinha aquele pequeno defeito, era todo coração. E coração não tem muito tempo pra sofrer, não, arrastando todo mundo nessa coisa de ser feliz.


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Notas finais do capítulo

Bom... É isso. Até os reviews. Estarei ansiosa pra respondê-los.



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