Contos De Gaveta escrita por Mamy Fortes


Capítulo 12
Lucas.


Notas iniciais do capítulo

Oi, pessoas. Que saudade!
Olha, eu tenho mais leitores do que conheço, então, fantasminhas, só se apresentem, tá?
Esse capítulo foi corrigido pela linda da Isa Anauate, então palmas pra ela.
Nos vemos lá embaixo, gaveteiros.



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“Quando eu peguei isso, jamais pensei que seria eu a devolver-te…”

Era o que pensava, remexendo as conchas sobre a escrivaninha, enquanto batucava-lhe o tampo com as unhas corais (mais curtas do que gostaria, mais longas do que era fácil deixar). Olhava pela janela o mar desbotando sob a pressão das gotas que caíam, torrencial e incessantemente, quando ouviu uma voz perguntar-lhe:

--Mogno? – Virou-se, e sob seu olhar, o desconhecido completou – A mesa, quero dizer. É de mogno?

                Depois de um curto instante de confusão, respondeu-o, desinteressada, com um aceno de cabeça. O homem, persistindo na conversa, começou:

-- Me lembra um verso, sabe? “Portas de mogno te impedem de ver o bagunçado gramado por detrás das trancas...”

--“... alguém germinou daninhas, que cresceram vorazmente...”—Completou, instintivamente.

-- “... riscos que a terra corre acolhendo toda e qualquer semente.” – Finalizou ele, incrédulo, antes de dizer:

-- Como? Como conhece esses versos?

-- São versos do meu namorado. Como é que você os conhece? – Disse com a devida ênfase na palavra “você”.

-- Lucas? Você namorou Lucas? Não o vejo há tanto tempo... Éramos amigos, eu e ele. – O homem, carregado de saudosismo, dizia, já puxando uma cadeira. E como quem finalmente se lembra, estendeu a mão, que ela aceitou.

                Trocaram os nomes, em meio ao aperto. Ele, Fábio, perguntou-lhe onde estava Lucas, demonstrando interesse em reencontrá-lo. Helena, temendo o risco de a voz embargar, soltou de uma vez.

-- Ele... Faleceu há dois meses.

                O sorriso de Fábio, até então entusiasmado, desfez-se em melancolia. Ele resmungou uma ou duas desculpas, que ela solidariamente aceitou. Fábio confidenciou que ele e Lucas eram melhores amigos nos tempos de faculdade, mas que nunca tinha sido o melhor poeta entre os dois. Que perderam contato quando ele entrou para área de editoração...

                E então, perguntou a Helena como ela tinha conhecido o falecido amigo. Ela, como quem toma fôlego, demorou a responder, remoendo o que doía.

-- Nós nos conhecemos num bar. Eu estava escrevendo de trás para frente, e isso chamou a atenção dele. Lucas me perguntou por que cargas d’água eu estava escrevendo daquela forma, e riu-se quando eu lhe disse que era para exercitar o lado direito do cérebro. Cavalheiro, não ousou dizer que jamais funcionaria. Mas eu sabia. É que eu sempre tive a estranha mania de começar as coisas do fim. E ele jamais questionou.

                Fábio mantinha um sorriso gatunho quando Helena terminou o relato, emocionada. Tinha transparecendo nos olhos uma ideia recém-concebida. E quando interrogado pela face da mulher, começou:

-- Lena... Eu nem sei se posso te chamar assim, mas é importante que me ouça, tá? – Ela concordou com a cabeça, ele continuou – Eu trabalho para o Museu da Pessoa, e estamos dispostos a lançar um livro com uma história que mereça. Sou responsável por encontrar essa história, e mandá-la para aprovação. Creio que achei uma bem digna. Se quiser, é claro.

Apesar do susto, o sorriso de Lena deu o ar da graça por uns instantes, antes de ser oculto por uma mordida no canto do lábio, demonstrando apreensão.

-- Fábio, eu preciso pensar. Você está hospedado aqui?

-- Estou sim. E, pelo que vejo, você também. Não precisa me responder. Nos esbarramos por aí, tá legal?

Ele levantou-se, recolocou a cadeira que ocupava no lugar, acenou e deixou Helena com as mãos fechadas ao redor das conchas e os olhos fechados ao redor de lembranças.  A noite passou sem que os ecos da proposta de Fábio deixassem sua mente, e na manhã seguinte ela já sabia a resposta. Lucas merecia ter sua história terminada.

Abriu a porta do restaurante com a mão desocupada, preocupando-se em não deixar cair nenhuma folha. Procurou, num olhar de águia, Fábio, e ao encontrá-lo no bar, dirigiu-se até lá. Sentou-se, deixando a pasta bem à frente do rapaz, que franziu o cenho interrogativamente.

-- São os papéis dele. Estava... Estava escrevendo nossa história. E se vamos escrever um livro, temos que levar em conta as pistas que ele me deixou. Apenas prometa... Prometa que começaremos pelo final.

Helena tinha os olhos rasos d’água, e Fábio percebeu que os seus também represavam lágrimas. Folheou o material a sua frente, prometendo mudamente o que lhe tinha sido condicionado. Encontrou trechos desconexos, que tratou de gravar na mente. Reservou uma mesa pelas próximas duas semanas, e esperou que Lena se sentasse e se sentisse à vontade para começar. Posicionou o gravador.

-- Olha, eu sei que vai ser difícil. Nunca pense que duvido disso. Temos tempo para entregar o projeto, mas quero que seja espontâneo, tá legal?

Lena meneou a cabeça e enxugou as duas lágrimas que ousaram fugir. Propôs que contasse as memórias na ordem que surgissem, e que depois ele ordenasse uma a uma, de modo a deixá-las no sentido inverso. Começou a narrar.

“Numa terça-feira eu estava varrendo o quintal, e reclamando das folhas que faziam do meu esforço inútil. Demorei a percebê-lo na soleira, rindo. Ele então pediu que desculpasse nossas árvores. Que elas estavam apenas perdendo o pudor, e tirando a roupa. Isso foi mais ou menos a síntese de seu otimismo.”

“Ele me acordava todo dia, sabe? Me levava pro trabalho... Eu sempre me encolhia no banco do carro e dizia ser uma bolinha, porque aí ele me deixava ficar por mais cinco minutos naquela posição fetal, já que bolinhas não têm que trabalhar.”

“Quando eu fui conhecer os pais dele, quebrei um cachorrinho brega, sem querer. Ele então ajoelhou e disse que eu, na minha bondade eterna, tinha mandado o cachorro pro céu. Era a cara dele me fazer rir quando eu me fazia tímida.”

Entre um trecho e outro, Helena sempre tratava de explicar o porquê de cada momento, e Fábio sempre o comentava. Mas eram sempre assim, desconexos. Por dias a conversa seguiu assim, e depois de muitos trechos, os dois desenvolviam uma amizade.

Numa manhã, Lena apareceu chorando. Dizia não poder mais. Dizia que nunca seriam capaz de organizar aquilo numa sequência lógica que tornasse capaz a aprovação da história. Fábio então lhe estendeu o projeto de exemplar, que mostrava tudo exatamente como Lucas escreveria. Numa lógica regida pela poesia e pela memória, numa história tão real que beirava a fantasia. E ela disse que estava terminado. Que era assim que deveria ficar. Fábio aceitou, com um sorriso pendurado nos lábios.

No dia seguinte, foram caminhar na praia, e Fábio percebeu, na mão de Helena, as conchas do primeiro dia, apertadas firmemente contra a palma. A certa altura da caminhada, ela atirou-as ao mar. O rapaz exibiu no rosto uma perplexidade, e ela tratou de se explicar.

-- Em agosto viemos passar as férias aqui. Foi quando eu convidei Lucas para morar comigo, e ele então apanhou essas conchas que acabei de jogar. Disse que ele iria, se pudesse levar as conchas. Porque se as levasse, o mar iria buscá-las, e teríamos um pedaço de mar no quintal. Mas eu não quero mais ter o mar no quintal, então vim devolver pessoalmente. Era isso que queria fazer aqui.

Nenhum dos dois conseguiu dizer nada depois de tal declaração, então só continuaram andando. Chegaram ao paredão de rochas que determinava o fim do caminho. Lena se sentou, e bateu na pedra ao seu lado.

-- Sabe Fábio, uma vez, eu vi um menininho com um vidro de perfume quase vazio vindo enchê-lo na beira mar. Não contive a curiosidade, e perguntei o que fazia. Ele era pequeno, mas não se intimidou com a minha pergunta. Me disse que estava completando o vidrinho pra continuar a perfumar o mundo e foi embora, depois de borrifar um pouco em mim. Aquilo me tocou. E eu me apaixonei por Lucas porque ele era exatamente como o menino do perfume, borrifando meu mundo. Agora tudo por aqui começa a feder...

-- Não diga isso, menina. Lucas era melhor poeta que eu, é verdade, mas são as nossas palavras que contaram a história dele. É você quem tá enchendo o vidrinho de perfume, e quem agora é responsável por borrifar o mundo. Não desanime.

Ambos partiram no amanhecer seguinte à conversa na praia. Seis meses depois, o livro de título “Lucas” tinha lugar de destaque nas livrarias. Vendia muito, aquele livro de cronologia estranha. Lena via seu coração acelerar toda vez que identificava um exemplar nas mãos de alguém. Fábio viu sua carreira deslanchar depois disso, e quando o milésimo exemplar foi vendido mandou que entregassem na casa de Helena um frasco vazio de perfume, com a inscrição “Chère amie, continue perfumando o mundo por mim”.


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Notas finais do capítulo

Então, é isso. Amo vocês. Até mais.